'... o livro não é uma granada que explode na vitrina, não brilha na escuridão, não se desloca do lugar onde é posto, não faz nenhum rumor e só revela o próprio conteúdo a quem o toma entre as mãos e, página por página, o desvenda." (Osman Lins)
Tomei conhecimento de Deolindo Tavares por meio do também pernambucano Osman Lins, especificamente, por estar referido no ensaio de 1969, Guerra sem testemunhas: o escritor, sua condição e a realidade social. Lins faz um resgate da memória desse poeta recifense esquecido da crítica, cuja menção aguçou a necessidade de uma maior profundidade acerca da sua história pessoal e dos seus escritos.
Deolindo Tavares viveu pouco, nasceu em 21 de dezembro de 1918 e faleceu precocemente em 6 de maio de 1942, antes de completar 24 anos, mas deixou uma produção com mais de 160 poemas postumamente reunidos em Poesias, livro publicado em 1955 sob a organização, prefácio e notas de Fausto Cunha, e mais tarde reeditado pela Cepe, em 1988. Além dessas duas primeiras, temos uma antologia, Poemas, de 1949, com seleção de Manuel Bandeira, Murilo Mendes e Gilberto Freyre, o prefaciador do livro, publicado pela Casa do Estudante do Brasil (RJ).
A julgar pelos jornais e revistas, Deolindo Tavares viveu intensamente a sua época. Participou de movimentos nos mais diversos meios e integrou uma juventude que despontava no Recife e que viria a contribuir de forma definitiva para os campos da literatura, da política, do jornalismo e das artes em nosso país. O número de vezes em que o seu nome é mencionado pelos jornais e revistas nas mais diferentes situações mostra como eram intensas as suas atividades, revelando ser alguém pulsante de vida e de atitudes resolutas, cujo desejo expresso era o de se envolver com os acontecimentos culturais da cidade.
É importante que se diga que a dedicação e o desejo de Deolindo Tavares em escrever poemas acabou por delinear a sua maneira de ser e configurou as suas relações com tudo e com todos que o cercavam. A sua verdade era a poesia, e desejoso de compartilhá-la com o mundo, viveu cadenciado pelo ritmo da urgência. Urgência em marcar presença, participar de eventos, publicar o que escrevia e encontrar um lugar ao sol para os seus projetos literários, horizonte absoluto de sua existência. À distância, passa a sensação de que o jovem precisava acelerar os acontecimentos como a pressentir que não disporia de tempo para todos os seus empreendimentos.
No poema “Nasci para semear Poesia...”, essa plenitude transparece:
Nasci para semear Poesia
sobre a raça dos homens nascidos tristes.
Nada desejo deste mundo aflito e louco
senão repartir a noite e o dia
com aqueles que ainda vivem
na sombra dos primitivos mundos.
Nasci para semear Poesia
sobre a raça dos homens nascidos tristes.
As sementes já lancei à terra, ao mar e ao céu,
e quando flores cobrirem a terra, o mar e o céu,
eu poderei morrer mais uma vez.
Neste momento somos homens
vivendo perfeitamente mortos, perfeitamente inúteis.
tudos básicos, cursou o pré-jurídico no Ginásio Pernambucano e o concluiu em 1937, para se habilitar ao ingresso na Faculdade de Direito do Recife, que só ocorreu em 1941, dado que foi antes para o Rio de Janeiro. Em 1939, prestou o vestibular para a Faculdade de Direito de Niterói, demonstrando a intenção de permanecer um longo período por lá, mas, no entanto, retorna ao Recife, em 1940.
Nessa fase, as experiências pessoais não foram das mais promissoras, as propostas e incentivos que recebeu para publicar e ter um livro ilustrado não se concretizaram, e acabou por conhecer o mundo como secamente se apresentava, sem sonhos e ilusões. De volta à casa, e tendo ingressado na Faculdade de Direito do Recife, Deolindo Tavares se deparou com situações que deixariam marcas e definiriam os rumos da sua história. Uma delas foi a reprovação no exame de segunda época, em Introdução à Ciência do Direito, a outra, as perseguições vexatórias, bullying, por parte de colegas no ambiente acadêmico. Essas duas experiências se avolumaram e interferiram em sua vida a tal ponto, que decidiu por deixar outra vez o Recife para continuar o seu curso em Niterói, cuja vaga estava reservada.
O poema “Testamento” diz de perto a sua preparação para a partida, em despedida tristemente irônica compatível com as questões vividas naquele momento:
A meu pai deixo minhas dívidas,
e a guarda da mulher amada que nunca me foi fiel
um só minuto de sua vida;
a meu irmão deixo minhas roupas e sapatos,
e que ele nunca ande pelos caminhos que eu andei;
a minha irmã deixo a dentadura da pianola,
para que ela se alimente pelo resto da vida
com a ilusão de que é uma grande artista;
a meus amigos deixo meus travestis de palhaço,
porque os seus já estão bem estragados;
às tias solteironas deixo minha memória
que elas imortalizarão num monumento de lágrimas histéricas.
Agora que dei tudo e só possuo meu corpo inútil,
peço que sobre ele plantem madressilvas e gerânios vermelhos
da cor dos gerânios vermelhos como sangue, de Lawrence.
E já que vivi deste céu, deste mar e deste mundo,
deixo a este céu, a este mar e a este mundo,
a estas paisagens que encheram meus olhos e que muito amei,
uma gaveta onde estão trancados poemas imortais.
Não esqueçais de plantar sobre meu corpo perfeitamente inútil,
madressilvas e gerânios vermelhos
da cor dos gerânios vermelhos como sangue, de Lawrence.
O que se deduz é que diante da situação insustentável, Deolindo buscou uma alternativa para concretizar seus objetivos em ambiente mais favorável, reencontrar Jorge de Lima, de quem muito se aproximou no Rio de Janeiro, quando esteve lá na primeira experiência, e outros intelectuais que o haviam incentivado a escrever e a publicar seus poemas. Voltar ao convívio também de Murilo Mendes, Manuel Bandeira, Mário de Andrade, Yone Stamato, Adalgisa Nery, Percy Lau, José Cesar Borba. Quem sabe, o livro tão sonhado sairia da condição de projeto.
Dessa forma, com seus escritos na bagagem e o coração abarrotado de esperança, Deolindo Tavares embarcou, em abril de 1942, novamente para o Rio de Janeiro. No entanto, entre a saída do Recife e a chegada para a nova experiência, os acontecimentos foram inesperados. Deolindo, ao embarcar no navio, já apresentava um quadro de indisposição agravado durante a viagem; ao fim do deslocamento, logo após ter chegado à então capital federal, foi para a casa de familiares; alguns dias depois, para o Hospital Evangélico, e acabou por falecer de septicemia. As pessoas de sua intimidade e os parentes que ali residiam lhe deram assistência e realizaram o seu sepultamento, cujos despojos encontram-se no Cemitério de S. Francisco Xavier, campa nº. 5883, quadra 45.
A cidade do Recife no início do século XX
Para melhor se aquilatar o estilo de vida em que se desempenhou Deolindo Tavares é preciso lançar os olhos pela história do Recife no início do século XX, quando a cidade foi o palco de grandes transformações em sua infraestrutura, o que reconfigurou os espaços públicos e privados. Nessa época, a cidade foi embelezada, com a definição das grandes avenidas, dos bairros, das praças, construção de mercados públicos, implantação das redes de água e de saneamento, modernização que acontecia de forma ampla. Foi uma época de maior acesso à luz elétrica, ao cinema e ao telefone, provocando mudanças no ritmo da cidade que se alterava pelo movimento dos automóveis e dos bondes, imprimindo uma nova agitação urbana.
Outro fator de interferência no conjunto de hábitos da população foram os jornais. Ao final da década de 1920, os periódicos se multiplicavam: A Província, o Diario de Pernambuco, o Jornal do Recife, o Jornal Pequeno, Jornal do Commercio, Diário da Manhã, Diário da Tarde, A Noite, A Rua, A Notícia e outros de menor abrangência. As publicações punham as pessoas a par desde o que ocorria na política nacional e internacional, na economia, no desempenho dos times de futebol à programação dos cinemas, aos eventos dos clubes, à cidade em seu dia a dia, desvelando, assim, a existência de uma nova vida em movimento e propiciando, desse modo, que assuntos de toda ordem passassem a ser debatidos no ambiente urbano mais corriqueiro, com as pessoas optando por estarem mais ao ar livre e menos encerradas nas casas e casarões.
A esquina do “Lafayette”
Um fator de aglutinação social importante foram os Cafés daquela época, eles assumiram papel preponderante na vida das pessoas, transformando-se em pontos de encontro, a exemplo do Lafayette, que foi muito significativo para o Recife e para o grupo que Deolindo Tavares frequentava. Permanentemente aberto, quase tudo acontecia por lá, desde o fechamento de um grande negócio até reuniões de intelectuais, semelhante ao que acontecia nos grandes centros europeus, como na França o La Coupole, Rotonde, Deux Magots, Flore – centros de profusão de muitas ideias, movimentos culturais e encontros. Pernambuco tinha orgulho de estar inserido nessa agitação de ideias, em que se formava uma intelectualidade que movimentava os locais onde se reunia.
Pode-se dizer que o Lafayette funcionou como uma referência dos encontros – o que permite imaginar os primórdios da vida intelectual e o processo de formação dos nossos admirados escritores frequentadores daquele local. No Café Lafayette se reuniam, sob a liderança de Willy Lewin e Vicente do Rego Monteiro, Mauro Mota, Esmaragado Marroquim, José Otávio de Freitas Junior, Eros Gonçalves Pereira, Hélio Feijó, João Cabral de Melo Neto, Haydn Goulard, Breno Accioly, Antônio Rangel Bandeira, Benedito Coutinho, Gastão de Holanda, Hermilo Borba Filho, Deolindo Tavares, Lêdo Ivo, entre muitos outros nomes significativos.
Para além do movimento e das contribuições locais, o Lafayette abrigava também aqueles que voltavam de viagem e transmitiam as novidades bebidas diretamente das fontes europeias. Eram figuras que ricamente relatavam acerca de Paris e outras cidades que impressionavam o mundo cultural de então. Os nossos jovens ansiavam por notícias vanguardistas, as quais os fortaleciam no desejo de expandir o talento que os estimulavam a cultivar a rebeldia própria da mocidade. No campo da cultura literária, aquela juventude irrequieta se congregou em torno das ideias de poetas e escritores como Novalis, Rainer Maria Rilke, Arthur Rimbaud, Paul Verlaine, Charles Baudelaire, Friedrich Nietzsche, que contribuíam para fermentar ainda mais as ousadias latentes daqueles que amadureciam intelectualmente – não foi sem propósito que o 1º Congresso de Poesia do Recife escolheu para homenagear uma figura como Rimbaud, por sugestão de Willy Lewin. As leituras desses autores foram tão determinantes para Deolindo Tavares, que eles ecoam espraiados pelas páginas de Poesias em franco diálogo poético.
Darcy Attanasio é doutora e mestre em Letras, na área de Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP). graduada e licenciada em Filosofia, pela mesma instituição. E-mail: darcyattanasio@gmail.com