Traduzir o desassossego

Seu livro é como um filme de Kurosawa, onde as cores indicam o tom das almas envolvidas

A editora tinha voltado de Paris e nos encontramos em um café. A mulher, objetiva, direta, simples, decidida, cheia de esperança, vinha carregando uma grande sacola cheia de livros. Nós nos sentamos e, antes que nos trouxessem os cafés, ela levantou a sacola, com notável dificuldade, e abriu o zíper. Começou a depositar alguns livros sobre a mesa.

Em dois minutos, já não havia onde colocar os cafés que tinham chegado em pequenas xícaras de vidro. Um a um, ela pôs os livros sobre a mesa, formando o que parecia um zigurate babilônico. Eu, o tradutor, deveria sugerir dois ou três volumes para traduzir ao hebraico.

Estávamos na segunda metade dos anos 1990, e já não me lembro quais livros estavam empilhados diante de nós. Mas a verdade é que, assim que ela mostrou o pesado volume em francês, minha mente apagou todas as capas anteriores. Pedi que parasse. Eliminei todo o excesso de peso desnecessário, tentando apontar os objetos literários de forma que caíssem no mesmo lugar de onde haviam sido retirados, e disse: “Este. Apenas este. Este, nada mais”.

Era o Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa. A editora, tão honesta quanto ousada, apenas pôde afirmar que se falava muito desse livro e me perguntou se valia a pena e do que se tratava. Eu devo ter dito alguma coisa, algumas frases da contracapa. É o que imagino. Mas o que sei, com absoluta certeza, é que disse a ela, taxativo: “Este, só este”.

Assim começou uma “era” pessoal. Terão sido dois, três, quatro ou cinco anos? Não sei. Já não me lembro quanto tempo levei para traduzir o Livro do Desassossego. Mas sei que foi uma viagem. Uma forma de viver, ou de morrer, ou talvez de reescrever uma vida que já nem me pertencia. Em total inquietação, com grandes momentos de ternura e carinho, e acessos daquele tipo de riso que Paul Simon soube tão bem descrever quando se referiu a certo riso das mulheres: when it's late in the evening and all the music's seeping through (“quando é tarde da noite e toda a música está se infiltrando”: Da canção “Late in the evening”. N.E.).

Traduzi o livro por fragmentos, um por um, nunca supondo um continuum, navegando por aquela paleta agradável, inteligente e necessariamente falsa da edição montada por Jacinto do Prado Coelho, a única a que eu tinha acesso, na época. Prado Coelho – abençoadas sejam suas mãos –, montou um livro, um livro, um entre muitos, seguindo um critério muito humano, que merece ser chamado também de indulgente, dado o conteúdo. Seu livro é como um filme de Kurosawa, onde as cores indicam o tom das almas envolvidas. No caso desta obra-prima de Pessoa, entre as almas envolvidas está sempre a do leitor, talvez o personagem principal da obra.

Assim vivi o Livro do Desassossego, durante aqueles anos que foram uma vida inteira. Como não se trata de uma metáfora, parece que morri, ao terminar o trabalho, quando escrevi a introdução para o público leitor. Nela falei da minha identificação com o autor e com tantos momentos do livro (no sentido temporal e musical do termo). Ficamos tatuados mutuamente.

Pessoa, que já tinha uma pequena presença em hebraico, começou a crescer rapidamente, como aconteceu em tantos países, culturas e línguas. Textos por toda parte, traduções minhas e de outros, ecos na cultura e, até mesmo, um tradutor que representava o autor português como se ele tivesse simplesmente se retirado para suas tarefas, deixando o palco para a adulação, o espanto, o assombro, as inúmeras perguntas, para todo aquele império tão português que ele ergueu como se o resto não existisse.

Fernando Pessoa se transformou em ícone, em mercadoria, em meme, motivo da foto em frente ao A Brasileira, no Chiado lisboeta (café que evito religiosamente e, quando não é possível evitá-lo, passo com o olhar voltado para outro lado). Desde então, acumulei alguns quilômetros pessoanos, descobrindo mil e uma facetas de seu mundo, que já nos engloba, tendo mergulhado em tanta pesquisa, interpretação e texto encontrado.

Se entendemos o significado da expressão Deus sive natura (Deus ou Natureza), de Spinoza, em termos modernos, e afirmamos que “tudo é Deus”, o paralelo que diz respeito a Fernando Pessoa é que tudo é Pessoa, e Pessoa é tudo. Porque é. Se levarmos esse “tudo” com a seriedade que merece, não nos resta mais do que admitir que se trata de uma grande variedade – de heterônimos, de personagens, de estilos, línguas, atitudes, influências, motivações, motivos, contextos, bem como de qualidades. Nessa matéria viva, qualquer leitor, e mais ainda se for um tradutor de Pessoa, reconhece que tudo muda, que nada é como parecia, nem como era, nem como será. Portanto, ao somar 30 anos – o mesmo número de anos que Fernando Pessoa passou em Lisboa, entre seu retorno e sua morte –, o próprio Pessoa mudou.

Atualmente, estou imerso na tradução das suas cartas de amor a Ofélia Queiroz. Oscilo entre o texto e o contexto, esforçando-me por traduzir as cartas como se fossem a única coisa que Pessoa escreveu, como se ele não tivesse sido nada mais do que aquele indivíduo patético, assustado, cheio de humor, inteligente, infantil, arrogante e miserável, ao mesmo tempo, que nunca deixa de ser um homem que persegue o amor de uma mulher. Assim, creio eu, ele merece ser traduzido. É um direito conquistado, nestes 30 anos em que compartilhamos nossas vidas.

Seu grande Desassossego continua vendendo muito bem em hebraico, e não por ser a língua de uma cultura e uma realidade gravemente carentes de sossego. A editora continua ativa, provavelmente carregada de outras sacolas com outros livros. Por outro lado, mais de uma vez, me vem à mente que, agora, precisamente agora, melhor do que nunca, com todo o peso que já carregamos, é, seria, poderia ser o momento perfeito para traduzir o Livro do Desassossego. Já podemos, Fernando, já podemos, longe da agitação e da confusão, dando as costas àquela maldita estátua.