O futebol-poesia do melhor escrete brasileiro

Escalar o escrete brasileiro de futebol de todos os tempos é meio complicado; dependendo da escalação, injustiças involuntárias são cometidas

O grande diretor de cinema e poeta Pier Paolo Pasolini, em sua vida universitária, foi capitão da equipe de futebol da Faculdade de Filosofia e Letras de Bolonha, formando com Heidegger ‘‘una fantasiosa ala destra”. Não se conformando com a mera prática (“do popular esporte bretão”), escreveu uma verdadeira antologia existencial do futebol, “um jogo eterno sem ganhadores e perdedores – a última representação sagrada que nos resta em nossos tempos”, invadindo e conquistando antigos espetáculos de massa como “a ópera e o teatro.”

Pasolini conclui: “Se os melhores goleadores e jogadores do mundo são os brasileiros, o futebol brasileiro é um futebol poético.” – Portanto, – prossegue ele – tem uma ‘‘capacidade monstruosa de driblar (coisa que na Europa é repudiada em nome da prosa coletiva)’’; e resume: ‘‘O poético futebol brasileiro derrotou o prosaico futebol italiano na final do Mundial do México de 1970’’. Arremata, convicto: ‘‘O futebol-poesia é a coisa mais bonita do mundo’’.

Dito isso, vamos ao nosso escrete brasileiro de todos os tempos. Escalar o escrete brasileiro de futebol de todos os tempos é meio complicado, porque mexe com muitas gerações de grandes craques e, dependendo da escalação, injustiças involuntárias são cometidas e alguns deles terminam ficando de fora, quando mereciam ser titulares.

Perguntado, certa vez, qual seria sua seleção brasileira de todos os tempos, Zizinho respondeu, com sua máxima autoridade: “A principal, não sei. Só sei que nela não poderiam faltar três jogadores: Domingos da Guia, Leônidas da Silva e Pelé”. Modestamente, concordo com ele, que, na minha opinião, foi o maior jogador do mundo, depois do Rei. Eu falei “do mundo.”

Tom Jobim disse: “Se Villa Lobos e Ary Barroso morreram, eu também já posso morrer”. Pois, parafraseando-o, já que eu vi Domingos da Guia, Zizinho, Leônidas e Pelé jogarem, eu já posso morrer.

Meu goleiro preferido é o injustiçado Barbosa. Vi Barbosa jogar, pela primeira vez, pelo Ypiranga de São Paulo, no campinho da Graça, todo de madeira, contra o Vitória, em Salvador, em 1945, se não me engano, numa partida irradiada por Antônio Maria, speaker esportivo da PRA-4, Rádio Sociedade da Bahia. Depois, ele foi para o Vasco, barrou Barqueta - “Barqueta, Sampaio e Augusto” -, e tornou-se titular por mais de 10 anos seguidos. Barbosa não era alto – tinha cerca de 1,78 m –, o que lhe facilitava pegar as bolas rasteiras, com perfeita colocação, e encaixava a bola com segurança. Parecia ter ímã nas mãos. O gol de Ghiggia, na Copa de 1950, não foi frango. O uruguaio chutou grama, quando foi centrar a Julio Pérez, o que enganou e dificultou sua defesa. Ele foi o jogador mais injustiçado do futebol brasileiro, e o maior goleiro, apesar disso.

Meu beque-direito é Djalma Santos, bicampeão mundial, em 1958, na Suécia, e, em 1962, no Chile. Em 1958, só jogou na decisiva, contra os donos da casa. Ele tinha uma elasticidade incrível, que o permitia desarmar o adversário, sem falta, e com facilidade. Seu arremesso de lateral equivalia a um escanteio bem cobrado.

Domingos da Guia, “o Divino Mestre”, foi o maior jogador de defesa do Brasil, e, provavelmente, do mundo. Ninguém tinha a noção de tempo e espaço que ele tinha no campo de futebol. Negro, 1,85 m de altura, nascido e criado em Bangu, no Rio de Janeiro, foi campeão pelo Flamengo, Corinthians, Boca Juniors e Nacional de Montevideu, e terceiro colocado na Copa de 1938, na França. Com perfeita colocação em campo, quase não corria, não dava carrinho nem isolava a bola. Driblava o adversário dentro de sua própria área, depois de desarmá-lo. Foi o primeiro jogador de defesa do Brasil a atacar o time contrário. Os adversários temiam atacá-lo para não serem desmoralizados pela sua refinada técnica.

Meu incontestável quarto-zagueiro, que terminou a carreira tuberculoso e tendo hemoptise, jogando em time da Suíça, com febre, no inverno, é Fausto, “a maravilha negra.” Não tive a felicidade de vê-lo jogar, mas o estou escalando pelo muito que li sobre ele. Fausto nasceu pobre, no interior do Maranhão, mudou-se para o Rio, onde defendeu o Bangu, o Flamengo e o Vasco. Jogou ainda no Nacional (Uruguai), Young Fellows (Suíça), no Barcelona ( Espanha), e na seleção brasileira da Copa de 1930, em Montevidéu, quando foi considerado nosso maior jogador. Clássico e valente, assombrou a América do Sul, a Europa, e morreu jovem e tísico, aos 34 anos de idade. Quem o viu atuando disse que ele era fantástico. Voto nele, de coração.

Meu half-esquerdo é Nilton Santos, apelidado de A Enciclopédia do Futebol. Não vou perder tempo falando nele, pois foi considerado pela imprensa mundial como o maior médio-esquerdo do século XX. Tive a felicidade de vê-lo atuar.

Meu meio-de-campo, assim, seria formado pelos superclássicos grandes líderes e comandantes Zizinho e Ademir da Guia. Quando perguntaram a Nilton Santos como era jogar futebol, ele respondeu: “Jogar futebol é fácil, até eu joguei. Quero ver jogar é como Zizinho jogou”. Quando pediram ao meia-cerebral Gerson, “o canhotinha de ouro”, como definir Zizinho, ele disse que gênio não se define. Ninguém controlou a bola, passou e lançou em profundidade melhor do que ele. Ninguém liderou um time melhor do que ele. Quando o maior jornalista esportivo da Itália viu Zizinho jogar contundido contra a Suíça,  na Copa de 1950, em São Paulo, escreveu admirado e perplexo: “Ver Zizinho jogar futebol equivale a ver Da Vinci pintar uma tela”. Ademir da Guia foi um craque excepcional. Durante anos consecutivos, comandou a lendária Academia do Palmeiras, dando-lhe ritmo, cadência, disciplina e forma. Leal, não cometia faltas, os adversários é que o perseguiam, tentando pará-lo de qualquer forma. De tão brilhante, mereceu um poema lindo e imortal do poeta João Cabral de Melo Neto, campeão pernambucano pelo juvenil do Santa Cruz.

Quando Oswaldo Brandão, técnico do Corinthians, tentou escalar Rivelino para marcá-lo de perto, o Patada Atômica recusou-se: “Não marco, porque gosto de vê-lo jogar”. Seria fácil escalar Garrincha na ponta-direita, mais Garrincha não vale, porque ele não era jogador de futebol. Ele era um acrobata genial, um peladeiro, que brincava de jogar futebol. Porque o futebol era uma brincadeira para ele, que ficava feliz ao ver o torcedor e o povo vibrarem com suas jogadas fantásticas. Vamos, portanto, escalar Julinho, como o maior ponta-direita do planeta em todos os tempos.

Meu centroavante é Leônidas da Silva, que deslumbrou a França sendo o artilheiro da Copa do Mundo de 1938, disputada em Paris, com nove gols, e merecendo dos franceses o apelido de “homem de borracha”, e dos brasileiros, “diamante negro”. Meu ponta-esquerda preferido é Canhoteiro (José Ribamar de Oliveira). Era um dos jogadores que Pelé mais admirava, ao lado de Zizinho.

Arthur Carvalho é jornalista e escritor, autor de A menina e o gavião - 200 crônicas escolhidas e Basta de amargura - 200 crônicas atemporais, publicados pela Cepe Editora. É membro da Academia Pernambucana de Letras.