Contam que, antes de morrer, Fernando Pessoa teria pedido para usar os óculos de aros redondos – uma de suas marcas, ao lado do chapéu de abas largas. Teria dito “Dê-me os óculos”, apenas. E escrito como últimas palavras, em inglês: I know not what tomorrow will bring (Não sei o que o amanhã trará).
Nada improvável sendo Pessoa quem era, mas o fato, mesmo, é que naquele 30 de novembro de 1935, morria um dos grandes nomes da literatura portuguesa. Uma partida ainda hoje envolta na polêmica sobre a possível pouca importância que os portugueses teriam dado ao assunto.
A hemeroteca de Lisboa parece dar razão a quem pensa que sim. Os arquivos da instituição guardam pouquíssimos recortes sobre as notícias da morte do poeta, publicada três dias depois, em 3 de dezembro de 1935.
O maior deles, do Diário de Notícias, tem uma coluna e meia; já o do lisboeta O Século apenas uma, enquanto o Comércio do Porto dedicou parcas nove linhas sobre o assunto.
Há ainda uma quarta menção de uma coluna, publicada no sétimo dia da morte de Pessoa, a 8 de dezembro, desta vez no polêmico semanário O Diabo. Até hoje ainda em circulação, o jornal converteu-se, há tempos, em porta-voz da extrema-direita portuguesa. O poeta talvez, neste caso, preferisse não ter sido mencionado.
Alguns amigos souberam da notícia da morte do poeta no Hospital dos Franceses, pelo boca a boca, e compareceram ao enterro, entre eles: Almada-Negreiros, Antônio Ferro, Antônio Botto, Luís de Montalvor, Alfredo Guisado, João Gaspar Simões, Luis Pedro Moitinho de Almeida, Carlos Queiroz e o cunhado de Pessoa, Francisco Caetano Dias.
A possível falta de interesse dos portugueses sobre a morte de Fernando Pessoa, refletida na tímida cobertura da imprensa da época, seria motivada pela biografia pouco interessante de Pessoa como escritor. Apesar de ter começado a escrever ainda em criança e ter concebido dezenas de heterônimos, o poeta publicou em vida apenas quatro livros – três em inglês, entre 1918 e 1921 – e apenas um, em português, Mensagem, editado um ano antes de sua morte.
A carreira como jornalista e tradutor foi igualmente discreta. Como lembra O Século, em seu artigo sobre a morte do “Dr. Fernando António Nogueira Pessoa”, o “extinto colaborou na revista Atenas” e “diretor da revista literária O Orfeu” (sic), que conheceu apenas dois números em sua brevíssima existência.
O Diário de Notícias é mais gentil com Fernando Pessoa, a quem distingue no título como “grande poeta de Portugal”, contrariando a tese de que Pessoa era um mero desconhecido em vida. No texto, o DN afirma que a passagem de poeta “foi um rastro de luz”, lembra da sua participação nas tertúlias poéticas lisboetas e ressalta a originalidade literária ao encarnar a pele dos heterônimos Álvaro de Campos, Ricardo Reis e Alberto Caeiro.
O reconhecimento do centenário jornal é o fio que Ricardo Belo de Morais puxa para contradizer a tese de que Pessoa não recebia o justo mérito em vida. Escritor e membro da Casa Fernando Pessoa, autor dos livros O quarto alugado e Fernando Pessoa para todas as pessoas, Ricardo Belo de Morais afirma que a modesta cobertura da imprensa portuguesa teria como motivo o dia da morte do poeta: um sábado.
Ricardo Belo de Morais lembra que os jornais, em 1935, respondiam mais lentamente aos acontecimentos do que hoje, e muitos deles ainda não funcionavam nos fins de semana. “Sem falar que o domingo foi feriado”, reforça o especialista pessoano, sobre o 1º de dezembro, a data festiva mais antiga celebrada pelos portugueses – desde meados do século XIX – recordando a reconquista do território aos espanhóis, em 1640.
Sem a devida cobertura da imprensa, continua Ricardo Belo de Morais, poucos portugueses souberam a tempo da morte do “grande poeta português”, e assim, prestigiado o funeral, o que municia outro argumento utilizado por quem acredita que Fernando Pessoa não era valorizado pelos compatriotas: a baixa presença no enterro do poeta.
O Diário de Notícias fala em “alguns amigos de sempre” a acompanhar o cortejo no Cemitério dos Prazeres, o maior de Lisboa. O Século enumera pelo menos quatro dezenas de presentes ao enterro, entre eles, apenas uma mulher.
“Naquela época, as mulheres não iam aos funerais, só os homens. As mulheres iam à igreja rezar pelo morto”, lembra a sobrinha do escritor, Manuela Nogueira. Nem ela nem sua mãe, irmã de Pessoa, Henriqueta, que havia quebrado a perna, estiveram presentes à cerimônia. A família foi representada, segundo o DN, pelo “capitão Caetano Dias, cunhado do poeta”, que discursou diante do jazigo onde Pessoa, por 50 anos, antes de o corpo ser trasladado do jazigo da avó, repousava, em 1985, para o Mosteiro dos Jerônimos. No mosteiro, os restos mortais do poeta ocupam uma tumba em formato de coluna retangular, sem qualquer ornamento, o que contrasta com os mausoléus de outros ilustres e anônimos ocupantes do cemitério.