Chegar aos 99 anos vivo, ainda dando conta de si mesmo e de seus projetos pessoais, deve ser motivo de festa para quem alcançar este raro êxito. Não é o caso do escritor curitibano Dalton Trevisan. Não foi assim ao longo de décadas. Por que haveria de ser agora, para alguém como ele, avesso a festividades, celebrações e aparições públicas? Não gosta sequer de fotografias e entrevistas. Redes sociais, nem falar. Que seja feita a vontade do Vampiro de Curitiba – apelido que herdou de Nelsinho, seu personagem do conto que deu o título ao volume lançado em 1965.
Na intimidade, deverá, quem sabe, receber sua fiel amiga e assistente Fabiana Faversani, um amigo de longa data ou um familiar próximo, uma vez que já não tem mais a companhia da mulher Yole e das filhas Isabel e Rosana, já falecidas. Quem sabe não se contente em rever um filme – seu principal hobby. Ele também adorava observar pássaros na cabana (a edícula) da casa onde morou de 1953 até 2021, quando se mudou para um apartamento.
Para marcar a data, a editora Record relança, com novo projeto, três obras do autor: Cemitério de elefantes, Macho não ganha flor e Contos eróticos.
Entre os prêmios que conquistou estão: Prêmio Jabuti (quatro vezes), Prêmio Machado de Assis, Prêmio da Biblioteca Nacional, Portugal Telecom (atual Oceanos) e Prêmio Camões (pelo conjunto da obra, em 2012).
Formado em direito, Trevisan foi advogado por sete anos e trabalhou na fábrica de vidros que herdaria do pai. Aos 20 anos, lançou seu primeiro. Sonata ao Luar foi publicado em 1945, mas depois o autor só reabilizou no ano passado.
Uma marca registrada do autor: a de mexer sempre nos textos, por mais breves que sejam, enviando emendas (mínimas que sejam) à editora a cada edição. A lista de livros do Vampiro de Curitiba chega a meia centena, em quase 80 anos dedicados à literatura. Sua obra recebeu, ao longo do tempo, a atenção de críticos e de acadêmicos. No primeiro time estão Otto Maria Carpeaux, Antonio Candido, Augusto Massi, Eliane Robert Moraes e Yudith Rosenbaum. Neste segundo time, uma das pioneiras foi Berta Waldman, numa época em que não era comum fazer teses com autores vivos.
“O caminho da obra de Trevisan é o da redução. No fundo, acho que acompanhei o autor por puro interesse, porque ele põe em cena uma humanidade 'falhada', com a qual o leitor não se identifica, e por achar que se tratava de uma obra importante, com a qual eu gostava/gosto de trabalhar; de qualquer modo, acabo partilhando com ele, ainda que do outro lado, a mesma obsessão…”, disse Berta Waldman, numa entrevista para o livro Dalton Trevisan: uma literatura nada exemplar.
“Optando por oferecer uma visão negativa de nossa história, aquilo que ela tem de falho, sofrido, desastroso, segmentado e seriado, enfim, pondo em cena a própria dissolução do mundo, e escolhendo o Vampiro, aparentado do Demônio e de Satanás, como figura representativa desse mundo, fica claro que a obra que se desdobra aos nossos olhos, embora isenta de simpatia por eles, dá voz e trânsito aos oprimidos”, escreveu a professora em Do vampiro ao cafajeste, livro com uma versão de sua tese de doutorado.
Por sua vez, Bela Josef analisou o universo cotidiano esmiuçado nos contos do autor curitibano, em especial a violência cotidiana das periferias de onde surgem os personagens, ressaltando que Trevisan “É observador atento da estreiteza da vida provinciana, do fato miúdo que lhe foi contado numa confidência ou captado em crônica policial. É observador atento das pequenas misérias das existências triviais, contaminadas pelo desalento, que se 20 ressentem da falta de vida. O vinho rosado doce e broinha de fubá mimoso têm o sabor da Madeleine proustiana, ao revés. É a literatura da nausée de Sartre e Camilo José Cela".
Para celebrar os 99 anos de Dalton Trevisan, a Pernambuco ouviu alguns escritores. Confira seus depoimentos abaixo:
"O conto nunca foi popular na Rússia, disse uma vez Isaac Bábel. Aqui também não, infelizmente, apesar de excelentes escritores como Dalton Trevisan terem desenvolvido ao longo da vida uma obsessão fanática pelo gênero. Colocar a culpa nos leitores e chamá-los de preguiçosos talvez seja uma saída preguiçosa, mas é inegável que o conto exige um leitor sofisticado, ainda mais de um leitor de Dalton que nos seus contos às vezes beira o hermetismo, o conto do qual se extraiu tudo o que é supérfluo, cheio de elipses. E quanto mais curto maior a força da linguagem. Nesse conto tão breve o que sempre me chamou a atenção foi o talento do autor para construir personagens tão vívidas, tão profundas quando só o que sabemos delas às vezes não passa de um olhar, uma dor ou perversão. Ainda bem que vampiros não morrem, vida longa a Dalton Trevisan."
Nivaldo Tenório, autor de Dias de febre na cabeça e Verão
"Meu primeiro contato com a obra de Dalton Trevisan foi o microconto “A velha insônia tossiu três da manhã”, e, depois disso, perdi o sono. O brilhantismo deste pequeno gigante me levou à paixão pelas micronarrativas, à busca pela concisão e pela astúcia de dizer tanto com tão pouco. Compartilhamos, eu o Dalton, este dia 14 de junho; sim, nossa data querida de apagar velas e envelhecer é a mesma. Mas quantas pessoas não nasceram e ainda irão nascer em um 14 de junho qualquer? Quanto mais conheço seus textos, menos essa coincidência me basta. Luto pela pena de suas bem traçadas linhas. Quero compartilhar a sua sagacidade. Não sei se no meu 14 de junho choveu. No dele certamente chovia. Parabéns, mestre."
Fernanda Caleffi Barbetta, autora de 1 + 1 = 2 2 - 1 = 0, vencedor da categoria de romance do Prêmio Cepe Nacional de Literatura de 2022
"Quase cem anos de um autor brasileiro é algo mesmo a comemorar. Por características tipicamente brasileiras, a vida ou os costumes de escritores, mesmo de alguém tão reservado como Trevisan, sempre interessam mais a obra do autor. Que possamos comemorar os cem anos mais interessados em sua obra e menos nas idiossincrasias e excentricidades."
Sidney Rocha, autor de Matriuska, O destino das metáforas e O inferno das repetições
"Quem começou a ler Dalton Trevisan aos dezoito anos, como eu, tinha a sensação de finalmente estar entrando num filme proibido para menores de dezoito anos. E tinha a sensação, finda a leitura do livro, de ter crescido dezoito anos ao longo daquelas páginas. Tinha um Brasil inteiro ali: a violência, a sacanagem, as pequenas tragédias do cotidiano, o atrito existencial da nossa lumpen-classe-média, o desgaste moral, as pequenas alegrias e as grandes paixões. Um universo que podia ser o de Balzac ou de Nelson Rodrigues, ms vinha aqui cortado numa linguagem-navalha, desbastada, comprimida ao máximo. Vida longa ao vampiro, e que continue nos ajudando a crescer."
Bráulio Tavares, cantor, compositor, escritor, autor de Mundo Fantasmo e Espinha dorsal da memória
“Na minha infância, um dia eu peguei na estante da casa dos meus avós um livro que me perturbou demais. Se chamava O vampiro de Curitiba, de Dalton Trevisan. Devorei o livro, embora tenha entendido muito pouco dele. Eu fui uma criança criada em um lar rigorosamente protestante e lembro de me chocar com a brutalidade e o erotismo do livro (além de tudo, sem dúvidas, eu não estava na idade certa para ler aqueles contos). Anos depois, estudante de Direito da UFPE, reencontrei a prosa de Dalton Trevisan em outra obra-prima, o livro Cemitério de Elefantes. Me apaixonei profundamente por aquele universo sórdido e sufocante, escrito, sem concessões, através de uma linguagem-lâmina. Aquela criança e o jovem acadêmico, que pouco depois abandonaria a possibilidade de carreira jurídica, tinham um sonho em comum: virarem escritores. Pois bem, a leitura da obra de Dalton Trevisan reconfigurou completamente minha visão do que poderia ser a escrita da ficção”.
Cristhiano Aguiar, autor de Gótico Nordestino