Im memoriam de Chico Pereira

Um inesquecível - e breve - encontro em João Pessoa deixou uma impressão indelével

João Pessoa, Maio de 2025

Uma viagem curta. Mais ainda, porque pedi que a aproveitássemos ao máximo, a tal ponto que pudéssemos visitar outra cidade. Assim, me levaram a um edifício do século 19: sede da Academia Paraibana de Letras. Com as letras maiúsculas bem postas. 

Nem ideia tinha eu de que se haviam juntado alguns intelectuais da cidade àquela hora da manhã – em torno das onze – para um encontro amistoso. Vivam os pronomes clíticos!, que evitei, ao dizer aqui “se haviam juntado”, porque bem poderia dizer, como o digo agora, de fato, que me haviam juntado, que se me haviam juntado, que haviam-se juntado (homenagem a um gostinho de dizer meio arcaico), ou, então, que juntaram-se, ou que juntaram-se-me (idem), porque à mesa, com a garrafa de vinho branco e fresco, e os canapés, amuse-geules, petiscos brasileiros, diziam que todos os pronomes, clíticos, ou outros, estavam muito bem postos, falando em voz mais presente do que qualquer letra maiúscula.  

A conversa teve duas partes. Mas só me lembro da segunda. A primeira, imagino, de rigueur, introdução, cortesia, temas pertinentes ao congresso no Recife, nosso pretexto dessa vez. Terá sido. Mas a segunda é que não se me apagará. Amigos. Preocupados por esse lugar de onde eu vinha, de onde se me diz que venho, o Onde que se me faz de tal modo para que não possa vir mais, não mais plenamente, o lugar ao qual havia eu não poder regressar tal como o tinha planejado, confirmado pela passagem de avião.

Pois, bem. A segunda parte, já de mangas de camisa metafóricas, começou com a pregunta, cheia de “pois”, no plural e com reticências, cheia de pois, e pois, desses meio-silêncios de quarto de hospital de paciente gravemente enfermo, zarpou com “E… isso de Gaza?”, no idioma brasileiro melífluo, ainda mais se nordestino, dessa gente tão meiga, sim, esses doces. Sobremesa castelhana fundida com sobremesas luso-brasileiras. 

Falamos de tudo, de Gaza, de Gaza e das Gazas que não há gaze que pudesse cobrir. Chico Pereira, indeléveis suas observações. Que por que não a conquistamos toda e já? (pois, o fizemos, várias vezes, e já pode ver você, não deu...), que por que não os matamos todos? (pois...), que por que... (idem, igual, igualíssimo, né?) 

A conclusão foi tão inescapável como contundente. Que estamos fodidos. Pois. Eu disse aos amigos, tão leves, amenos, agradáveis naquela manhã, tão próximos e tão distantes, ao mesmo tempo, que, segundo me parece, temos (o plural menos majestático da História) perdido o direito, a possibilidade e a legitimidade de ser parte dos que determinarão o futuro de Gaza.

Pois.

In memoriam do que podia ter sido. In memoriam de Chico Pereira.

Nota do editor: O encontro mencionado pelo escritor israelense Ioram Melcer ocorreu na Academia Paraibana de Letras, no dia 24 de maio de 2025. Da conversa informal participaram Chico Pereira, Francisco de Sales Gaudêncio, Renato César Carneiro e Mario Helio Gomes de Lima. O congresso mencionado foi o III Congresso de Judaísmo e Interculturalidade, realizado no Recife. Melcer fez a conferência de abertura.