Vila Nova, 3 de dezembro de 1935 – Morreu Fernando Pessoa. Mal acabei de ler a notícia no jornal, fechei a porta do consultório e meti-me pelos montes a cabo. Fui chorar com os pinheiros e com as fragas a morte do nosso maior poeta de hoje, que Portugal viu passar num caixão para a eternidade sem ao menos perguntar quem era.
O escrito no diário de Miguel Torga pode parecer estranho. Fernando Pessoa morreu anonimamente? Sim. Em 1935, não era ele essa unanimidade a que assistimos. Hoje é possível posar com sua estátua no café A Brasileira, no Chiado, ver sua mesa ainda posta no restaurante Martinho da Arcada, visitar a casa onde morou no Bairro do Campo do Ourique, em Lisboa, comprar lembrancinhas com sua imagem ou seus livros em vários idiomas, visitar seu mausoléu, ladeado por Camões e Vasco da Gama, no Mosteiro dos Jerônimos, e até ouvir seus poemas recitados em espetáculos musicais de Roberto Carlos ou Maria Bethânia. No entanto, Pessoa morreu praticamente só.
No quarto do Hospital de São Luís dos Franceses, à Rua Luz Soriano, no Bairro Alto, em Lisboa, no dia 30 de novembro, estavam um capelão, um médico e uma enfermeira. Morrera vitimado por uma cirrose hepática. Alguns estudos, hoje, dizem que foi pancreatite aguda. Não importa, estava só.
Pessoa parecia antecipar a cena no poema “O menino de sua mãe”: “No plaino abandonado / Que a morna brisa aquece, / De balas trespassado / – Duas, de lado a lado –, / Jaz morto, e arrefece”. Mesmo a irmã Henriqueta Madalena, que dele cuidava, estava no Estoril, imobilizada, com uma perna quebrada. Essa mesma irmã, anos depois, quando a obra do poeta passou a render algum dinheiro, diria espantada: “Fernando já é famoso: até o conhecem no Porto”.
Era o contraponto ao anonimato do poeta que fora encontrado caído, em casa, desmaiado, na manhã do dia 28 de novembro. O médico Jaime Neves, primo do poeta, chamado às pressas, ordenou que fosse levado ao hospital. Antes de sair, no entanto, Fernando pediu que lhe fizessem a barba.
Pouca gente o acompanhou até o Cemitério dos Prazeres, no dia 2 de dezembro, e disso se queixou Miguel Torga, em seu diário. No entanto, o fato era esperado. Pessoa publicara um único livro, Mensagem, em 1934, embora tenha editado várias revistas culturais. Era de fato um poeta para poetas. E neste aspecto era respeitado e ouvido. Quando esteve em Portugal, em 1934, a poeta Cecília Meireles, admiradora de sua obra, marcou um encontro com ele, que não apareceu. Justificou-se num bilhete dizendo que, naquele dia, o horóscopo dizia para evitar sair à rua.
Também Miguel Torga, ainda estudante de medicina em Coimbra e assinando suas obras com o nome próprio, Adolpho Rocha, o procurou. Foi em 1930, quando lançou seu segundo livro, Rampa. Fernando o respondeu com uma carta datada de 6 de junho daquele ano. “Meu prezado Camarada: Muito agradeço o exemplar do seu livro Rampa. Recebi-o já há alguns dias. Só hoje posso escrever para lho agradecer. Li-o, porém, logo que o recebi. Li-o e gostei dele. A sua sensibilidade é de tipo igual à do José Régio – é confundida, em si mesma, com a inteligência. O que em si é ainda por aperfeiçoar é o modo de fazer uso dessa sensibilidade.” Em seguida, vinham algumas indicações de caminhos. “Intelectualmente – e portanto artisticamente – falando (a arte não é mais que uma manifestação distraída da inteligência), a sensibilidade é o inimigo. Não o inimigo que se nos opõe, como na guerra, mas o inimigo a quem nos opomos, como no amor. Há que vencer, pois, não por esmagamento, senão por sedução ou domínio. Chamar a sensibilidade para dentro da casa da inteligência; ou fazer a inteligência montar casa externa à sensibilidade. Imagens? Como o universo...”
Adolpho não gostou do que leu. Escreveu uma carta, em termos acres, contestando Pessoa. “A ‘consciência de si mesmo’ num poeta, quando tomada num sentido exagerado, como o seu, aniquila toda a expressão sincera e desconcertante. (...) E qualquer elevação num poeta de tal ordem, é convencional e flagrantemente postiça.” E termina alertando para o fato de que, segundo Adolpho, claro, “o tempo dos mestres passou”.
Pessoa comentou, também em carta, essa troca, digamos, de gentis opiniões entre ele e Adolfo com o amigo e futuro biógrafo João Gaspar Simões: “Recebi, como você me disse que receberia, o livro Rampa, de Adolpho Rocha. Passados uns dias – mais do que deveria ser – escrevi-lhe uma carta agradecendo o livro e dando, resumidamente, uma opinião. Como escrevi à pressa, para não demorar mais a resposta e o agradecimento, transferi a redação para o sr. Eng. Álvaro de Campos, cujo talento para a concisão em muito sobreleva o meu. O resumo da minha opinião, de cuja expressão o citado engenheiro se encarregou, é de que o livro é interessante (é, realmente, muito interessante) como sensibilidade, mas imperfeito e incompleto como uso dela; e é o uso da sensibilidade, e não a própria sensibilidade, que vale em arte. Não deixei de ser elogioso, até onde pude sê-lo; para além de onde podia sê-lo, confesso que o não fui”.
No famoso espólio de Pessoa, foi encontrada uma segunda carta, não enviada a Adolpho, onde são reiteradas suas crenças. Depois de se desculpar pela pressa com que escreveu a tal primeira carta, volta a ser incisivo: “toda arte se baseia na sensibilidade, e essencialmente na sensibilidade. A sensibilidade é pessoal e intransferível. Para se transmitir a outrem o que sentimos, e é isso que na arte buscamos fazer, temos que decompor a sensação, rejeitando o que nela é puramente pessoal (...). Não há arte intelectual, a não ser, é claro, a arte de raciocinar”. E mais especificamente tocando na ferida de Adolpho: “na sua aplicação ao seu livro, estas considerações tomam para mim a forma seguinte: 1) a sua sensibilidade é boa, e, por natureza, de tipo intelectual; 2) pode, portanto, ser um poeta espontâneo, sem ter que (ser?) sobre intelectualizar demais ou recorrer a uma atitude reflexiva ou crítica”.
Adolpho, já reconhecido como Miguel Torga, pseudônimo que passa assinar a partir do livro A terceira voz, de 1934 (uma homenagem aos escritores espanhóis Miguel de Cervantes e Miguel de Unamuno e a uma planta, torga, natural de Trás-os-Montes), dá a mão à palmatória e se curva a Pessoa, quando organiza, em 1980, sua Antologia poética. Do primeiro livro, Ansiedade, de 1928, aproveita um único verso: “sinto o medo do avesso”. Do segundo, Rampa, dois poemas, “Balada da morgue” e “Pão ázimo”. Mas já estávamos diante de poetas consagrados.
Pessoa, depois da morte, viu erguer-se sua glória. Parecia confirmar os versos do amigo José Régio: “Logo, os críticos sérios e carecas / Folhearão no pó das bibliotecas / Um livro caluniado enquanto vivo. // Esse a quem chamam hoje ilustre e augusto / Porque... porque ele, é inofensivo / Como qualquer estampa ou qualquer busto”.
Essa glória, no entanto, veio sempre cercada de fatos surpreendentes. Uma de suas mais representativas “chegadas” ao Brasil, por exemplo, se dá pelo Porto de São Luís do Maranhão. Ao desembarcar ali, em 1946, vindo de uma longa temporada em Portugal, o poeta Bandeira Tribuzi, aos 19 anos, trazia na bagagem os livros da Geração Modernista Portuguesa, formada por José Régio, Almada Negreiros, Mário de Sá Carneiro, Fernando Pessoa, entre outros. Esses livros circularam pelas mãos dos então jovens escritores maranhenses como José Sarney, Ferreira Gullar e Lago Burnett. Também um dos primeiros estudos universitários sobre sua obra tem a ver com o Brasil, pois foi escrito pela professora Cleonice Berardinelli, Poesia e Poética de Fernando Pessoa, em 1959.
No cinquentenário de sua morte, em 1975, tal glória obrigou a transferência de seus restos mortais para o Mosteiro dos Jerônimos, e aí mais uma inquietação. Ao desenterrarem os restos mortais, segundo Mário Cesariny escreveu no livro O Virgem Negra, viram o corpo preservado, mas completamente negro.
Em 1975, Adolpho Rocha já estava consagrado como o poeta Miguel Torga. Um ano antes, durante as comemorações da vitória da Revolução dos Cravos, foi abordado por um repórter de rádio. “Estamos falando com o poeta Miguel Torga.” “Não, o senhor está falando com o cidadão Adolfo Rocha.” Mantinha a aspereza e bem-estabelecida a diferença entre Torga e Adolpho, o médico otorrinolaringologista. Uma paciente, vendo na prateleira do consultório vários exemplares dos livros do poeta, comentou: “o senhor gosta muito deste escritor”. “Eu odeio este escritor, minha senhora, pois este escritor sou eu.”
Incrível era como esses livros chegavam à mão dos leitores. Torga, para não se submeter à censura do regime salazarista, seguindo o exemplo de repulsa de Unamuno à censura franquista (“não deixarei que um soldadinho qualquer valide ou não minha obra”), editava seus livros de maneira independente na Gráfica de Coimbra. Enquanto vivo, sua única experiência com uma editora formal, além, claro, dos livros traduzidos, foi com a Pongetti, do Rio de Janeiro, que editou, em 1955, o Contos da montanha, que havia sido censurado em Portugal.
Poeta, contista, romancista, memorialista, Torga, transmontano em essência, fez da escrita seu Norte. Por várias vezes foi indicado ao Prêmio Nobel de Literatura. O Nobel não veio, mas foi ele o primeiro ganhador do Prêmio Camões, em 1989, que recebeu das mãos do primeiro-ministro Mário Soares. Morreu cercado de amigos, em 17 de janeiro de 1995. Está sepultado em campa rasa no Cemitério de São Martinha de Anta onde se lê: Miguel Torga 1907 – 1995.
Fernando Pessoa e Miguel Torga, entre afagos e estocadas, formam um dos mais sólidos alicerces da literatura portuguesa, e universal.