Joel Pontes chamou a atenção para a existência de um “Camões de cordel”, que comparece em bem mais numerosos folhetos do que os que ele podia conhecer em 1973; e quis saber se esse nome ou esse personagem tinham proveniência direta de Luís Vaz de Camões, nome e poeta muito famoso ou admirado, mesmo quando não lido, por brasileiros cultos, mas também populares. Nalguns folhetos de cordel, em que não é protagonista, ele é apontado como “poeta de grande fala”, “rei dos poetas”, ou como supremo mestre de poesia, que “de tudo sabia”.
Nesse caso não parece haver dúvida sobre a relação direta com o autor de Os Lusíadas. Já o mesmo não poderemos dizer dos folhetos em verso e das “estórias” em prosa em que Camões aparece como pícaro, ou como personagem risonho e eventualmente brejeiro, comparável ou associável a outros pícaros como Bertoldo, Padro Malasartes e João Grilo.
Embora pouco saibamos da biografia camoniana, parece que o Camões histórico só talvez pelo lado da destreza intelectual e linguística – não decerto, como defendeu Gilberto Mendonça Teles, por causa da sua “vida cheia de contrastes: de gentil-homem e trinca-forte, de herói e mendigo, de soldado e náufrago” – poderia levar à criação desse personagem-tipo ou desse tipo de personagem. Por isso, é de admitir que ele tenha sido concebido a partir de outra pessoa, com o nome oficial ou com a alcunha de Camões.
Joel Pontes referiu logo um poeta que havia em Olinda no início do sec. XIX, “um poeta popular e vagabundo a quem o bispo apelidara de Camões”. A esse poeta se referiram, em 1908, Pereira da Costa e, em 1884 (reed. 1974), Pacífico do Amaral, esclarecendo que ignoravam “o seu verdadeiro nome”.
Há que lembrar no entanto que na tradição portuguesa não era invulgar chamar Camões tanto a um qualquer zarolho (caolho) – que, dizia-se mesmo, tinha “um olho à Camões” – como, hiperbólica ou ironicamente, a poetas, ou a ”espertalhões” metidos a poetas.
Assim, podemos conceber a existência de outro “modelo” para a construção do personagem. Por mim, até posso admitir a hipótese de um poeta cómico ou satírico que foi famoso em terras açorianas e que algum emigrante poderia dar a conhecer no Brasil. Esse poeta era um “enjeitado”, por sinal como o Camões do primeiro folheto camoniano de grande sucesso, As perguntas do rei e as Respostas de Camões, de Severino Gonçalves de Oliveira (1908-1953): “Camões foi enjeitado/ Ninguém sabe onde nasceu / dizem que acharam ele / na porta de um Fariseu”.
Nascido em 1777 na Ilha das Flores, esse poeta recebeu no batismo só o nome de José, por ser filho de pai incógnito, que era um frade. Foi tardiamente, e já revelado o seu talento poético, que ele próprio assumiu o nome de José António Camões. Pobre e com uma infância e adolescência atribuladas, trabalhando ao serviço de lavradores, a entrada em conventos e, depois de ordenado (em 1804), a vida de sacerdote e de professor não o livrou de antipatias, discriminações e ataques até de colegas, a que ele respondeu com versos truculentos, gozadores e divertidos. A sua principal publicação, póstuma (1865; ele morreu em 1827), intitulava-se Testamento do burro, pai dos asnos, e inscreve-se obviamente numa tradição (europeia e portuguesa) que vinha da Idade Média e que vários poetas nordestinos de cordel prolongaram criativamente.
Joel Pontes e outros, como Celso de Oliveira, também falaram na forma “Camonge”; sem notar que esta só tinha a bem dizer curso oral, o segundo considerou-a “uma corruptela dos poetas Camões e Bocage”, teoria que também defendeu Gilberto Mendonça Teles, que por sinal abriu o seu livro O mito camoniano com o título “Cammond & Drumões” tirado de um verso de Drummond.
No Brasil, como em Portugal, foram publicados folhetos com típicas (autênticas ou lendárias)“anedotas de Bocage”, que nalguns casos podem fazer lembrar episódios e cenas dos folhetos com o protagonista Camões, se não se impuser a simplificadora distinção que o mesmo Gilberto fez: “Quando a estória é de esperteza, de tramoia, aparece como herói o «Camões» ou o «Camonge»; quando a estória é de pornografia, o herói é Bocage”.
Mas creio que no Nordeste brasileiro ou no mundo do cordel não existiu fusão (ou confusão) nenhuma entre os nomes, ou entre as fortes personalidades de Camões e de Bocage. Lembro o que transmiti a Gilberto e ele assinalou na 3ª edição do seu Camões e a poesia brasileira (1979, p.302): “Segundo observação de Arnaldo Saraiva, na sua aldeia, na Beira Alta, também se ouve dizer Camonge.” Na verdade, na minha aldeia (corrijo: da Beira Baixa) e noutras aldeias portuguesas – como certamente nalgumas populações brasileiras – há muitos falantes que desfazem na fala alguns hiatos criando uma sílaba clara, e que pronunciam algum “s” medial ou final como “j” (ouve-se com frequência:”Lijboa”. “mejmo”, “olhoj”, “doij”), ou que frequentemente apoiam com um leve “e” paragógico algumas consoantes finais, como o “s” - os(e), sandes(e),homens(e) -, o “r” – bar(e), amor(e), parecer(e) – e o “l” – sol(e), Portugal(e), papel(e).
Uma prova clara de que não há nos poetas brasileiros de cordel qualquer “fusão” dos dois nomes ou das “duas personagens típicas” pode vir da métrica: se em Portugal “Camonge” poderia valer foneticamente como um dissílabo, até fora da poesia, porque se pronunciaria normalmente como “Camonj”, no Brasil é um trissílabo, embora em posição final de verso possa equivaler a um dissílabo (não trairia, por exemplo, a métrica setessilábica das estrofes ou dos versos de Arlindo Pinto de Sousa: “Agora, vamos mostrar / as astúcias de Camões”); mas em posição inicial ou medial a forma “Camonge”, escrita ou oral, contará sempre no Brasil como um trissílabo, que mesmo com liberdade poética implicaria uma desagradável violência, por exemplo, na métrica também redondilha das estrofes ou dos versos de José Costa Leite :“Camões de tudo sabia / a sua sabedoria / deixava o rei espantado”.