“O plágio começa em casa?”

Zelda escreveu romances, contos, ensaios e artigos, buscando criar uma identidade própria, mas sucumbiu à sombra opressiva do marido Scott Fitzgerald e à frágil saúde mental

F. Scott Fitzgerald e Zelda Sayre formaram um casal extravagante nos circuitos intelectuais de Nova York e Paris
F. Scott Fitzgerald e Zelda Sayre formaram um casal extravagante nos circuitos intelectuais de Nova York e Paris

“Em cem anos, acho que vou gostar de ver gente jovem curiosa para saber se eu tinha olhos castanhos ou azuis.” 
Trecho de carta de Zelda Fitzgerald, em Querido Scott, querida Zelda: as cartas de amor de Scott e Zelda Fitzgerald, de Jackson Bryer e Cathy W. Barks. Tradução de Beth Vieira. São Paulo: Companhia das Letras (2005)

Zelda Sayre Fitzgerald rompeu todos os padrões sociais encontrados pelo caminho. Embora não tenha vendido barato cada centímetro avançado contra a moral conservadora, pagou um preço muito alto pelo reconhecimento do seu talento e qualquer ideia de libertação.Ela cresceu em Montgomery, ao sul dos EUA, no Alabama, estado maioritariamente elitista. Era uma sociedade branca, de costumes aristocráticos. Naqueles 1900, a região transitava entre rural e urbana. As mais ousadas, sob a permissão dos pais ou maridos, eram professoras, enfermeiras, ou trabalhavam em escritórios.

As jovens da região eram conhecidas como Southern Belles, as Belas Sulistas ou as Damas do Sul, treinadas para serem esposas e mães exemplares.

Era um ambiente de extrema repressão emocional para as mulheres. Frequentemente, elas entravam em depressão ou estafa mental. À época, o diagnóstico psiquiátrico mais comum era a histeria. A palavra foi usada pela primeira vez como sintoma de doença (mental) em 1895, por Freud, em Estudos de histeria, e logo tornou-se diagnóstico-padrão às mulheres por desafiarem normas de comportamento. Os sintomas mais comuns, alardeados pelo cinema e pela literatura, eram desmaios, paralisias, descontrole emocional, crises de ansiedade, tudo visto como intrínseco à natureza feminina: instável. Era uma forma de controle de sua feminilidade. Amiúde, o tratamento para mulheres assim tão rebeldes era láudano e ópio.

Hoje, a histeria é entendida como fenômeno social, histórico, marca de como a sociedade patologizou a vida emocional feminina do decorrer dos anos.

A escritora, pintora e dançarina Zelda Sayre cresceu nesse cenário de transição e sombras: o velho Sul tradicional e opressivo, e um mundo novo; que parecia oferecer mais chances para as mulheres. Em um e no outro cenário, o ambiente marcado por fortes rigores e cobranças. No entanto, desde jovem, a escritora demonstrou a inquietação e desejo de explorar a vida com intensidade – algo que Zelda não somente buscou, mas cumpriu ao longo da vida, até seus últimos dias.

Os perfis biográficos se referem a Zelda Sayre como alguém de personalidade vibrante e rebelde. O símbolo máximo das flappers, as jovens rebeldes dos anos 1920. Ser flapper, ou melindrosa, era o estilo de vida radicalmente oposto ao das Damas do Sul. As flappers usavam vestidinhos curtos, dançavam jazz, bebiam, fumavam... Eram hedonistas. Isso tornou Zelda uma figura metafórica da chamada Era do Jazz.

Zelda casou-se com Scott Fitzgerald aos 20 anos de idade, em 1920. Ele lançara seu primeiro romance, Este lado do paraíso, em meio a grande alarde. Isso lhe assegurou boa renda e mais expectativas de mercado. O romance foi lançado em 26 de março e Zelda se casou com ele em 3 de abril, na Catedral de St. Patrick, em Nova York. Sucesso e estabilidade foram duas colunas decisivas para o sim de Zelda, antes indecisa diante das incertezas na carreira do escritor.

A partir daí, Zelda e Scott se tornaram o casal mais extravagante da América, naquela Idade de Ouro, do jazz e do charleston solo, dança de salão onde todos podiam dançar “soltos”, sozinhos.

No caso da Zelda, esses anos loucos, de festas exuberantes nos circuitos intelectuais de Nova York, Paris ou da Riviera Francesa, acentuaram a imagem, real, da mulher irreverente e moderna, disposta a tudo contra o preconceito e a moral arcaica, vivendo cada instante como fosse o último, sem poupar nem sensações nem dinheiro nem nada.

Sua inteligência e magnetismo a transformaram em uma figura apaixonante. Sua beleza era capaz de iluminar os grandes salões. Talvez um pouco ao modo de Daisy Buchanan, a jovem dourada, idealizada tanto por Jay Gatsby, no romance de Scott Fitzgerald.

Contudo, essa mesma energia escondia um profundo conflito psicológico. Sua vida era nutrida por uma relação resultante de um amor destrutivo como as grandes paixões, no sentido do pathos, do patológico.

Scott representava a garantia de sobrevivência financeira. Também a ideia de algum pertencimento ao mundo literário, em conexões sempre controladas por ele. Zelda esperava a qualquer momento um salto milagroso, uma virada completa na carreira de escritora. Tudo resultava em uma dança solitária, inútil.

O alcoolismo do marido, os relacionamentos amorosos, as traições mútuas, foram escaras fortes demais para ambos.

Diante e apesar de tudo, porém, Zelda jamais deixou de amar Scott. Isso está bem registrado em suas cartas: uma profunda admiração associada a um grande ressentimento.

O casamento foi do conto de fadas a uma história de sofrimento. Não mais o casal lendário, dois artistas metidos numa relação de rivalidade e amargos ressentimentos. Zelda buscava sua própria identidade como escritora. Scott, mesmo perdidamente apaixonado pela esposa como por si mesmo, minimizava os talentos de Zelda, reduzindo-a ao papel de musa.

Em comentário para impulsionar as vendas de Os belos e os malditos (1922), segundo romance de Scott, ela escreve:

“Acho que, em certa página, reconheci trechos de meu antigo diário que desapareceu misteriosamente pouco após meu casamento, e, também, fragmentos de cartas que me pareceram vagamente familiares, ainda que muito bem editadas. De fato, o sr. Fitzgerald – acredito que é assim que se escreve seu nome – parece acreditar que o plágio começa em casa”.

Era uma crítica bem-humorada. Mas, dizem, onde há fumaça, há fogo. Sobretudo o fogo das vaidades o tempo todo aceso entre os dois.

Zelda Fitzgerald escreveu contos sobre a migração nos EUA, ensaios, artigos de opinião, uma peça de teatro, Scandalabra, e um romance: Save me the waltz (1932); Esta valsa é minha. O romance foi publicado no Brasil 54 anos depois, com tradução de Rosaura Eichenberg e prefácio de Caio Fernando Abreu, para a Companhia das Letras.

O enredo trata da vida de Alabama Beggs em sua jornada no seio de uma família e sociedade com profundas tradições patriarcais. Alabama Beggs se frustra, ao buscar escapatória para uma sentença de vida e de morte, em um casamento contraído com um famoso pintor.

Alabama, o estado americano onde Zelda cresceu, não foi posto sem intenções no nome da personagem. Senão, não seria literatura. A personagem aparece mais como um lugar, uma representação da sociedade. Em outros escritos, o recurso é usado também para representar Scott Fitzgerald como um ponto qualquer no universo, intenção registrada em uma de suas cartas: “Aquele lugarzinho musguento em sua nuca é o lugar mais delicioso do mundo (...)” ou em trecho do romance, agora na vida de Alabama Beggs, na página 56 da edição brasileira de Esta valsa é minha:

“Arrastou-se para dentro da caverna amiga de sua orelha. A área lá dentro era cinzenta e fantasmagoricamente típica enquanto ela fitava ao redor dos profundos sulcos de cerebelo. Não havia um crescimento, nem uma substância em forma de flor para quebrar aquelas lisas circunvoluções, apenas a elevação túmida de matéria cinzenta e macia. (...) Ela seguiu adiante tropeçando e afinal chegou à medula espinhal. Vastas reentrâncias tortuosas a conduziram em círculos. Histérica, começou a correr. Perturbado por uma sensação de comichão no começo da espinha, David afastou os lábios dos dela”.

Esta valsa é minha é somente um romance autobiográfico, inserto no conceito hoje reverberativo ou frequente de “escrita de si”? Feminine, feminist or female?

A meu ver, a etiqueta de “autobiográfica” é ainda uma forma redutora de entender as qualidades de uma escritora rica em tantos recursos e estilo, de seu trabalho muitas vezes criticado como uma tentativa de imitar o marido.

A condição subalterna destinada à sua literatura impactou profundamente sua psique. Mesmo frustrada, buscou se expressar através da pintura e da dança. Não adiantava por onde fosse: a sombra trôpega do marido a impedia.

A saúde mental de Zelda começou a se esfacelar nos anos de 1930, quando foi diagnosticada como esquizofrênica. Foi internada diversas vezes. As terapias incluíam isolamentos, tratamentos hoje considerados desumanos como sedações prolongadas e eletrochoques. Em alguns casos, a lobotomia. Zelda escapou dessa última.

Seu desejo de ser reconhecida como artista esbarrou o tempo todo nas paredes das instituições, impostas pelo gênero e por aquele casamento, cujo talento do homem sempre se sobrepunha muitos degraus acima do dela.

Mesmo assim, no inferno de um hospital psiquiátrico, que só quem conhece sabe descrever, Zelda continuou escrevendo, na busca de preservar ou recuperar a identidade e a dignidade.

Nos seus últimos anos, Zelda Fitzgerald tinha sido esquecida pelo mundo literário. Somente nos anos 1970 recebeu alguma atenção, a partir da famosa biografia Zelda, de Nancy Milford. Nas décadas seguintes, sua obra aparece em artigos da crítica feminista.

Morreu internada em um hospital psiquiátrico na Carolina do Norte, vítima de um incêndio, em 1948, aos 47 anos de idade.

CONTEÚDO NA ÍNTEGRA NA EDIÇÃO IMPRESSA

Venda avulsa na Livraria da Cepe