Racismo estrutural, preconceito e violência policial são temas constantes nas obras de autores negros norte-americanos. A graphic novel A conversa aborda sem meias palavras a experiência de um homem que lidou por toda sua vida com a intolerância. A história escancara o receio palpável que milhões de negros dos Estados Unidos têm de dar uma simples saída à noite e topar com um “tira” branco. Ou de serem discriminados por professores e vizinhos. Ou mortos apenas por estarem no lugar errado.
A graphic novel escrita e ilustrada por Darrin Bell acaba de receber uma edição brasileira da Amarcord, selo do Grupo Editorial Record. Primeiro afro-americano a ganhar um Pulitzer nos Estados Unidos, em 2019, o autor aborda todas essas questões de forma crua, apesar do texto sensível e até, em alguns momentos, delicado.
Em A conversa, Darrin Bell toca na ferida do racismo como se as cenas registradas acontecessem em tempo real. Um roteiro forte, construído a partir de reminiscência de uma conversa que teve com a mãe, quando ainda era garoto, ocasião em que ela o alertou que, por ser negro, tinha que tomar cuidados que as crianças brancas não precisavam ter.
Para o escritor, essa experiência se tornou “a conversa” – um marco que influenciou profundamente sua forma de enxergar o mundo. Nas páginas do livro, Bell descreve como essa vivência moldou sua trajetória, desde as agressões sofridas na escola e na vizinhança até os desafios de ser um jovem negro em Los Angeles, onde foi constantemente vigiado e ameaçado por policiais.
Inicialmente, a lição vai sendo assimilada só parcialmente pelo personagem. Torna-se uma pessoa que reluta falar sobre o racismo ou se envolver em questões sobre a negritude. Mantém-se o mais afastado possível de contendas com os brancos. E escuta do avô paterno, um negro com farta bagagem em sobrevivência, o seguinte conselho:
“Siga o fluxo, siga as regras, dirija direito, fique calmo e tudo vai ficar bem."
Nesse estado de alerta, o jovem chega à universidade. Tamanha é a sua aversão a envolver-se em problemas, que escreve um trabalho com o seguinte conteúdo:
“Não sou um americano negro/ Não sou um afro-americano/ Não sou um americano hifienizado/ Não sou nem americano. Pois essas são todas construções sociais não são reais…”
As tentativas de não entrar na mira dos brancos não tinham dado certo antes, e não dariam agora. Diante do texto bem articulado, é acusado pela professora de ter plagiado outros autores. E ameaçado de ser expulso da universidade. Nesse momento, o autor descola o personagem da sua tentativa, impossível, de contemporizar. Exige que ela mostre provas de quem ele copiou. E alerta: é perigoso uma professora acusar de plágio seu único aluno negro.
Daí por diante, o personagem entende que não há outra opção a não ser aceitar o fato de que a briga contra a violência, a polícia e o preconceito tem que ser travada. No caso dele, através das charges e dos cartuns que produz para diversos jornais.
Bell leva a suas obras as situações reais que viveu, sua tomada de consciência que o tornou uma voz ativa na luta antirracista nos Estados Unidos.
Arte mista
Com base na HQ e nas mortes recentes de negros assassinados por motivos fúteis ou inexistentes, Bell resolveu registrar as histórias que viveu e presenciou para ajudar o seu casal de filhos – um deles com 6 anos. O escritor pretende ensinar a eles como um negro deve se comportar nos EUA. Ressaltando, dessa vez, o cuidado de não privá-los da inocência e das liberdades próprias da infância.
Em A conversa, Bell também revisita eventos marcantes da luta contra o racismo, como os protestos que seguiram aos assassinatos de George Floyd e Breonna Taylor, momentos que intensificaram a relevância do movimento Vidas Negras Importam em escala global.
O ilustrador ainda retrata momentos importantes da vida pública estadunidense neste século, como o atentado ao World Trade Center, as eleições de Barack Obama, o primeiro governo de Donald Trump e a pandemia da Covid-19.
Traços mistos
Além da força da narrativa, a técnica mista usada por Bell no trabalho é outro ponto de destaque. Colocando-se na posição da criança, usa recursos que mostram um olhar infantil assustado, deformando a realidade e criando figuras borradas, sem contornos precisos, quase monstros.
Em outros momentos, apela para o tom realista, ao abordar as cenas mais violentas e eventos marcantes, principalmente os protestos de rua nos Estados Unidos. Ele abusa de colagens e sobreposições de imagens e lança mão de antigas charges suas para tratar de assuntos que causaram polêmica no país.
Um bom exemplo da característica do trabalho do desenhista é quando registra a oposição dos conservadores contra a lei que aprovou casamento entre pessoas do mesmo gênero na Califórnia, em 2005, comparando as manifestações de ódio deflagradas naquele ano a campanhas semelhantes da década de 1960, quando a união interracial foi permitida.
Em 2019, Bell foi agraciado com o Prêmio Pulitzer, por suas charges críticas a Donald Trump. Algumas dessas imagens estão inseridas no álbum.
Prêmios
A conversa recebeu o prêmio da Nacional Association for the Advancement of Colored People (NAACP), principal associação de defesa dos direitos civis dos EUA, e o National Library Award. Foi, ainda, eleita a melhor comic/graphic novel do ano por diversos veículos, como Publishers Weekly, Time, The Washington Post, The Guardian e Kirkus Reviews; além de ser indicada ao Eisner, maior prêmio dos quadrinhos americanos.
Filho de educadores, neto de um veterano da Segunda Guerra Mundial e bisneto de ex-escravizados, Darrin Bell nasceu em 1975, em Los Angeles. Cartunista e quadrinista, criador das tirinhas Candorville e Rudy Park e um dos colaboradores da King Features Syndicate, seu trabalho é publicado principalmente pelos jornais californianos Los Angeles Times, San Francisco Chronicle e Oakland Tribune.
Os fãs e o mercado editorial, contudo, foram surpreendidos com a prisão de Bell, no dia 15 de janeiro, pela polícia do Condado de Sacramento, sob a acusação de posse e compartilhamento de 134 arquivos contendo material de abuso sexual infantil, incluindo produção gerada por inteligência artificial. Uma denúncia do Centro Nacional para Crianças Desaparecidas e Exploradas (NCMEC) levou-o à prisão, após uma busca na residência do artista. O desenhista e escritor apresentou-se ao juiz dois dias depois e foi estipulada uma fiança de US$ 1 milhão.
Desde o dia 1º de janeiro, uma lei da Califórnia criminaliza conteúdo de material de abuso sexual infantil gerado por IA. Bell é o primeiro preso com base na nova legislação californiana.