O relançamento das obras de Adélia Prado pela Editora Record inclui mais dois títulos, antigos conhecidos dos seus admiradores. O pelicano, lançado em 1986, e O homem da mão seca, de 1994.
Como em todos os livros de Adélia Prado, temos textos que exalam “ingenuidade e leveza”. A autora fala suave, mas ninguém se engane: sua escrita provoca sobressaltos.
Foi após ter lido O pelicano que o poeta e crítico Affonso Romano de Sant’Anna escreveu que a poesia da sua conterrânea de Minas Gerais tinha “aquela maneira de pegar a gente pelo pé e nos deixar prostrados e bestas com uma verdade revelada”.
Nesse livro, a autora mineira incorporou novos elementos, em comparação com a sua trilogia de estreia, composta por Bagagem (1975), O coração disparado (1978) e Terra de Santa Cruz (1981). Em O pelicano surge como força motriz a figura de Jonathan, um ser onipresente, sagrado, o desejo e o amor. O poema “A criatura” mostra a força desse personagem:
“Eu já amava Jonathan/ porque Jonathan é isso/ fato poético desde sempre gerado/ matéria de sonho, sonho/ hora em que tudo mais desce à desimportância”.
Na obra, Adélia também trabalha com o contraste do sagrado e do profano, o amor sublime e o desejo carnal. Em “A treva”, ela diz: “o demônio come a seu gosto/ o que Deus não é pasta em mim”.
No meio desse emaranhado de emoções conflitantes, ora suaves, ora abissais, a autora acha brechas para o humor, traço marcante de seus textos. Característica encontrada no poema “Duas horas da tarde no Brasil”.
Deus em tudo
O romance O homem da mão seca (1994) traz uma Adélia igual, porém mais densa. O livro foca nas divagações de Antônia, personagem central e narradora, uma mulher do interior, que mistura “Deus” em tudo, questionando-o.
“Fiquei sozinha com meu eu e Deus… O que me faz mais humana? Mansidão ou desespero frente ao meu destino?”
Esse romance, entretanto, se presta a muitas leituras. A começar por uma inusitada dor de dente “intratável” da personagem, que permeia o livro do começo ao fim. Uma dor que apesar de passível de ser curada, nunca se resolve, como uma analogia da dor existencial que Antônia não consegue arrancar de si. Essa dor, segundo a própria personagem, “paralisou o mundo”, transformando-o em universo simbólico, palco para reflexões filosóficas, debates religiosos e questões de consciência.
No meio da sua dor e do seu Deus, a personagem faz uma escuta interna profunda, e se reconhece meio má, vivendo entre os delírios dos sonhos – que anota para discutir com seu analista – e as questões cotidianas da pacata Coronas. Apesar de estar casada, há 30 anos, com Thomaz, marido devotado que lhe compreende todas as loucuras, e apenas lhe adverte que não coloque Deus em tudo, Antônia é capaz de apaixonar-se diante do envelhecimento e da falta de vida que o dia a dia lhe causa.
O alvo do seu amor é Soledade, “um místico”, cujo verdadeiro nome é Jorge Teodoro, mas a quem ela apelidou de Teodardo. Um beijo bastou para bagunçar a vida da pacata dona de casa obcecada por Deus e pelas suas dores. Ou para bagunçar quase tudo, pois mesmo vivendo essa paixão, a personagem não se considera infiel. Acha-se um pouco divina, e acima do bem e do mal, e decreta que nem “dormindo com o Téo viraria adúltera”
Mais extenso e com possibilidade de ir ainda mais a fundo do que na poesia, Adélia Prado explora nesse livro a sua extensa capacidade de escavar emoções, mexer no que está mais escondido, oscilar entre o humor e a dor profunda.
Burlando a estrutura tradicional do romance, os textos curtos – quase contos – dão à história uma narrativa revivida em temas distintos, apesar de entrelaçados, um caos calculado que atiça o leitor a descobrir como tudo se encaixa.
O envelhecimento, as tentações da carne, a depressão, o poder da fé e a linha tênue que separa o sonho da realidade dão ao romance um fôlego impressionante.
Neste livro, em especial, sua narrativa cheia de indagações, de perguntas sem respostas prontas, remete um pouco ao estilo de Clarice Lispector, a quem chegou a conhecer durante o lançamento do seu livro de estreia Bagagem, no Rio de Janeiro.
Correlação feita, em parte, por um especialista em Adélia Prado, o professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, Augusto Massi. Foi ele, ainda como jornalista, o primeiro a entrevistar a escritora e revelá-la ao grande público.
Massi chega a reconhecer esse diálogo com a forma narrativa de Clarice Lispector. Nas duas autoras há o desejo de filosofar e refletir, ainda que de modos diferentes. “Há um perguntar pelas coisas, saber da existência de algo que se desconhece e quer dominar”, explica.
Para Massi, muitos escritores só querem afirmar suas convicções, estão repletos de certezas. É o contrário disso o que une Adélia a Clarice, ele esclarece. Ressalta, ainda, as influências de Carlos Drummond de Andrade – que possibilitou a publicação do primeiro livro de Adélia – e de Guimarães Rosa como fontes para a obra da mineira. “Os três (Clarice, Drummond e Rosa) representam para ela essas indagações mais profundas: o invisível, o indizível, o difícil de traduzir em palavras.”