Ele descobriu os números, o cálculo, a geometria, a astronomia, os jogos de dama e dados e, principalmente, a escrita. Está mencionado por Sócrates no diálogo platônico Fedro. Era do Egito e chamava-se Toth. Conta-se que ele ofereceu esses conhecimentos ao rei Thamus, e lhe explicou a qualidade e importância de cada um deles.
“Quando chegaram à escrita, disse Toth: ‘Este conhecimento, ó rei, fará os egípcios mais sábios e memoriosos. Tanto a memória como a sabedoria encontraram o seu remédio’. Mas o rei lhe teria dito: ‘Artificiosíssimo Toth, alguns são capazes de dar à luz os instrumentos técnicos, e outros, de discernir em que medida serão prejudiciais ou proveitosos para quem vai usá-los. Tu, agora, como és o pai da escrita, dizes por indulgência o contrário de seu verdadeiro efeito. Isto produzirá esquecimento nas almas de quem o aprendam, pois, por confiar na escrita, deixarão de exercitar sua memória e recordarão de forma externa, por marcas estranhas, e não desde seu interior e por si mesmos. Não encontraste um remédio para a memória (mneme), senão para o fato de recordar (hupomnesis). O que procuras para teus alunos não é a verdadeira sabedoria, mas sua aparência; pois ao converter-se, graças a ti, em gente muito informada sem haver recebido ensinamento, parecerá que sabem muitíssimas coisas, quando, na realidade, sobre a maioria delas não sabem nada, e serão insuportáveis de tratar, já que se terão convertido em sábios aparentes, mas não em sábios.’”
Esta famosa passagem do Fedro, de Platão, pode vir à mente ao constatar-se uma das motivações de dois livros publicados, recentemente, no Brasil. Dono das palavras, de Yamaluí Kuikuro Mehinaki, e Retorno ao ventre, de Jr. Bellé. A memória e uma certa ‘salvação’ pela escrita está no centro das atenções de ambos. No caso do primeiro, há, explicitamente, o elogio da escrita, como na argumentação de Toth a Thamus. O deus egípcio atuava como mediador entre os deuses e os humanos. O ‘dono das palavras’ o fez em relação a duas culturas, no Brasil: a dos que falam o português e o kuikuro.
Afora o ativismo condutor do encômio das virtudes originárias de povos quase sem mácula catalogável, são livros um tanto quanto diferentes. Ou melhor, coincidem na ética, mas apenas parcialmente na estética. A despeito de centrarem-se ambos em ‘umbigos’ familiares. Um pelo ramo mais patriarcal do avô, outro pelo mais matriarcal da tia. Os dois também coincidem por bilíngues. Neste ponto, pecam por solipsismo, pois não trazem nenhum texto que ajude o leitor a entender a estrutura dos idiomas. Ou, ao menos, como se pronunciam. Se livros assim pretendem uma audiência menos limitada, precisam levar em contar os leitores não iniciados. Do contrário, a inserção do outro idioma se restringirá aos já conhecedores, e terá para os demais leitores uma função quase decorativa.
Obras como a de Mehinaki nascem de uma cooperação de antropólogos e linguistas com os indígenas. Já se foi o tempo em que os primeiros eram tidos quase como inimigos, por atuarem como instrumentos dos colonizadores. Hoje em dia, vários antropólogos fazem da sua etnografia uma mescla de ciência, ideologia e política. Alguns atuam como a formar uma ‘cooperativa’ espiritual com os indígenas. O que conseguem assimilar do conhecimento deles difundem em aulas, livros e filmes. Há muitas qualidades a elogiar em livros assim. Neles os indígenas não são bons nem maus selvagens. São seres humanos, como os outros, com direito a contar suas histórias e usar suas medicinas e o conhecimento do seu povo.
Um trabalho da maior importância, ainda tímido, mas constante, vem sendo feito, já há algumas décadas: estudar e fazer ressoar as línguas indígenas no Brasil. Trabalho de poucos e para poucos, mas que pode extrapolar o âmbito das suas ‘aldeias’, quando toma forma de livro não restrito aos estamentos acadêmicos. Isto se apresenta ainda mais vivo e digno de nota quando quem o faz é alguém como Yamaluí Kuikuro Mehinaku, associado a Carlos Fausto. Dono das palavras – a história do meu avó (Todavia) é a materialização disso. Merece ser lido tanto pelos envolvidos diretamente nos temas indígenas quanto pelos mais sensíveis à memória e à história humana.
Vale percorrer com calma e paciência cada página o Dono das palavras. Embora a disposição do texto esteja em verso, não é de poesia que se trata, e sim de uma biografia sob forma fragmentária e cronológica.
A participação de Carlos Fausto no livro não se limita às 15 páginas de apresentação e notas. É o editor, significando isto trabalho intelectual tanto na contextualização do conteúdo quanto na forma de apresentá-lo. Aliás, o título da sua apresentação sinaliza por si só a percepção de sobrevivência e superação contínuas. As línguas vistas no plano da imanência, a partir da ação concreta de um homem: Yamaluí. Tradutor, mediador, por meio século, entre indígenas e não indígenas.
De certo modo, Yamaluí, como o Mestre Carlos do poema de Ascenso Ferreira, aprendeu a língua portuguesa, menos pelo ensinar alheio, e mais pelo seu esforço e capacidade.
Ao publicar um livro deve-se pensar na sua destinação. Para que serve, a quem se dirige. Dono das palavras, pela sua feitura amena e bem cuidada, poder servir, além do especialista, ao leitor curioso ou sequioso de descobrir novos mundos. Desconhecedor das geografias e histórias fascinantes do Xingu. Mas o destinatário integrará, de qualquer forma, um ‘nicho’. Limite este, aliás, que é o de quase todo livro com um pouco mais de densidade, atualmente.
Quanto a Retorno ao ventre, merece leitura e releitura. Seja em silêncio, ou em voz alta. Livro híbrido de autêntica poesia e deliberado prosaísmo com prova documental. Poderíamos parafrasear o título de Lorca, e afirmar que temos aí ‘oficina e denúncia’. Em ambas as situações sai-se bem o autor, embora no caso da segunda, traia certo maniqueísmo woke em versos assim: “eu tinha tantas certezas absolutas/ quanto um adolescente branco pode ter”. O sentido seria o mesmo sem o termo ‘branco’, porque caracteriza a adolescência de todas as cores tais presunções. Mas, necessitado da ‘denúncia’, e não apenas da ‘oficina’, o autor precisa viver o seu lutar em ‘luta renhida’, elegendo um Outro. Como o indígena foi, e sob muitos aspectos, continua a ser para um colonizador, no sentido literal ou simbólico.
Não será necessário um leitor-garimpeiro para encontrar pedras-de-toque no Retorno ao ventre. Em cada um dos poemas aparecem. ‘Poemas’ é quase um modo de dizer. Trata-se de um livro de unidade tão clara que não seria exagero ver nele, algo de épico, com sabor elegíaco”. A ausência do ‘maravilhoso’, o gosto pelo histórico reiterativo compromete ou diminui o aspecto épico. Mas não o interesse por acompanhar o dramático e o trágico em cada uma de suas páginas.
No Brasil houve dois momentos de indigenismo fácil de situar, caracterizar e mapear. No Romantismo e no Modernismo. Neles, a cultura indígena, seus mitos, seus personagens eram tratados como objetos, e às vezes, sujeitos sujeitos. Se porventura for factível pensar num terceiro, na literatura brasileira, será especialmente interessante por ser obra dos próprios indígenas.