Obscuro, doloroso. É como nos é descrito o Sertão pelo famoso relato euclidiano de sua imersão, em finais do século XIX, pelos recônditos do território nordestino à procura dos supostos grandes feitos do exército republicano, séculos após o início do processo de colonização. Com o autor, vislumbramos a seguinte descrição, surpresa e aflita: “Daí a impressão dolorosa que nos domina ao atravessarmos aquele ignoto trecho de sertão – quase um deserto – quer se aperte entre as dobras de serranias nuas ou se estire, monotonamente, em descampados grandes”.
Nos textos coloniais, seja na Carta ou em relatos de cronistas sobre a paisagem dos sertões, trata-se semanticamente de território inexplorado. E, mesmo nos anteriores diários de viagem de Vasco da Gama, a origem do termo sertão nos aparece como uma corruptela de deserto/desertão, lugar ermo, isolado, e em que só é possível adentrar com certa dificuldade.
E é a essa viagem incógnita e insegura que nos convida o autor Ronaldo Correia de Brito em seu novo romance Rio Sangue (2024), quarto do gênero, em pré-venda pela Editora Alfaguara. Convite supostamente despretensioso, pois na porta de entrada da narrativa nos deparamos com “uma placa” pendurada em que se lê “Conte-me uma história”. E a maneira de nos lembrar de que tudo dialeticamente é (e não é) ficção, o autor nos faz mergulhar nas águas turvas encarnadas de seu rio-sertão, onde, vez ou outra, surge o “sangue de um crime”.
E não é que o autor esteja pegando em nossa mão e nos conduzindo nessa viagem apenas recentemente. A própria edição do livro nos adverte de que a nova obra está sendo lançada nos 15 anos de seu premiado romance Galileia, em que explora o sertão contemporâneo. Mas, em Rio Sangue, Ronaldo parece querer desafiar o leitor a adentrar esse sertão de modo ainda mais profundo. Trata-se aqui do sertão colonial e de narrativas que recriam os genealogismos, sempre sinuosos, das primeiras famílias a invadirem, habitarem e povoarem esse espaço no processo violento de colonização a que foram submetidos os territórios e povos originários juntamente com os povos diaspóricos africanos.
Rio Sangue investe em escavar as feridas de nosso passado de exploração a partir de fatos históricos e das angústias mais substanciais das personagens em suas interações terrivelmente humanas, de modo que as linhas tênues entre história e ficção mais uma vez se confundem e se esmaecem na literatura contemporânea, metaficcionando historiograficamente (para tomar de empréstimo o conceito de Hutcheon) as paragens nordestinas, vivas e entremeadas.
Dividido em capítulos que carregam os nomes das personagens, destacando-as individualmente ou em suas relações com as demais, o romance expõe o esconso sertanejo e sua anima enérgica e melancólica. O tempo nele transcorre de modo tão veloz e ao mesmo passo simultâneo e impassível que, ao presenciarmos sua passagem inexorável, também nos ancoramos nele. Somos empurrados ou fincados no centro daquele mundo de tradições e de leis rígidas, mas em que tudo contraditoriamente escapa ao controle, como os bois indomáveis que o vaqueiro Kayin (seu nome africano de origem) tenta amansar.
A narrativa é movida principalmente por dois personagens: João e José, irmãos, filhos de uma família portuguesa tradicional. Assim como as demais, são personagens complexas, labirínticas: em suas perversões, covardias, medos e desesperos. João, descrito como um homem alto, forte e bonito, que tenta a todo momento conter seus instintos violentos sob maldisfarçados gestos cavalheirescos, simboliza a figura do colonizador mão de ferro.
A “natureza” de João nos prenuncia a lama trágica em que personagens e leitores serão arrastados dali para frente. Casa-se com Catarina, herdeira do dono de engenho Francisco Ferreira Ferro, por interesses econômicos. Homem vaidoso, repulsivo e atroz, a quem vemos em sua feição acovardada e medíocre ao final da narrativa, quando chega o momento de enfrentar as consequências de seus crimes e, principalmente, do pior deles, dentro das leis implacáveis dos sertões: o assassinato de sua esposa, tingindo de sangue o rio em frente à casa.
José, brando e racional, é descrito como um homem de corpo franzino, que olha o Sertão com estranheza e remorso. Não carrega, desde criança, a brutalidade explícita do irmão mais novo, mas muito a ele se assemelha em sua indiferença ao povo jucá e à escravidão negra. Tal fato o entristece, mas “a soberba de senhor e deus de si mesmo o estimula a prosseguir, sem descanso nem mesmo no Sétimo Dia”. Obrigado a se formar padre, retorna ao Sertão para cuidar das terras e da criação de gados. O padre-vaqueiro corporifica-se numa espécie de alter ego do irmão, pois ambos representariam a complacência entre a opressão religiosa e a exploração econômica colonial. Repete a todo momento a expressão latina memento mori, evocando a ambiguidade de sua lição de religiosidade bíblica.
No correr da trama, Páscoa, indígena jucá, antes chamada Micaela no aldeamento jesuíta de onde fugiu, ganha a atenção do padre José, que vê, na menina crescida, seios e quadris volumosos. Ronaldo recorre a expressões clichês “arde em febre” e “se enche de desejo”. Numa noite, o padre desce ao cubículo em que Páscoa dorme e a violenta. Ele “sente sua mão preenchida pela vagina” da moça e convulsiona em excessivas ejaculações. Volta a seu quarto e chora copiosamente. A índia jucá, uma das últimas integrantes de seu povo, passa a ser amásia do padre, e dará à luz 10 filhos. Assim, Ronaldo escancara, em sua prosa, a hipocrisia do papel da igreja na “povoação” da terra brasilis, aqui de modo carnal, não simbólico.
A hipocrisia eclesiástica está não somente nas transgressões sexuais, mas também no fato de José ser constantemente convocado a participar dos tribunais de inquisição da Igreja, para julgar outros membros eclesiásticos, muitas vezes condenados pela mesma contravenção cometida por ele. A escrita é ácida e não poupa críticas às atrocidades na colônia.
A organização do romance – e, por que não dizê-la, desmontável? – remete ainda à problemática da perda, ou roubo, das identidades da população negra e indígena. Kayin, homem africano, escravizado ainda criança, tem a sonoridade de seu nome associada à figura bíblica fratricida de Caim. Por isso condenada como amaldiçoada, justifica sua troca do nome. Kayin. Caim, passa a se chamar Fabiano; depois, Fabião. O mesmo homem que salva João da morte nas correntezas precisa, na lógica cristã, trocar de nome para não se tornar um assassino.
Talvez nesse ponto a narrativa se fragilize um tanto. A raríssima aparição de pessoas indígenas e negras denota veementemente seu extermínio, mas também denuncia a paixão que o autor transmite pela heráldica sertaneja, colocando as famílias tradicionais em primeiro plano. O silêncio de Páscoa desenha também o silêncio das outras mulheres, sobretudo das indígenas caladas por seus assassinatos e das mulheres negras confinadas às senzalas e às cozinhas. São elas, porém, que tecem, segundo o narrador, os fios da vida, assim como faz a própria Páscoa, de quem nunca o leitor saberá o nome de origem, e seu profundo silêncio no trabalho no tear. Por mais simbólico que possa ser, esse silenciamento se torna questionável em tempos em que os povos sentem a necessidade de autorrepresentação.
Em Ronaldo, porém, temos mais uma vez, o entrelace dessa reconstituição e rasura nacional com a riqueza cultural idiossincrática do sertão de maneira minuciosamente simbiótica. Mas no afã de noticiar esse Nordeste “esquecido”, em alguns momentos, o tom do texto se desloca temporalmente e os anseios do escritor contemporâneo se tornam mal-acobertados quando imprime uma crítica à urgência de a mídia denunciar “esses milhares de crimes” e chega mesmo a dizer que “a literatura sucumbe aos noticiários”. Mas estamos falando de sertão colônia e a reflexão soa meio fora de órbita.
No conjunto da obra romanesca do autor, disposto em uma trindade trágica, está o Sertão. Em Galileia (2008), temos o sertão nordestino contemporâneo e suas drásticas e rápidas mudanças em relação ao passado mas também em relação à mística literária e estereotipada que se criou em torno dele, construindo imagens de mulheres vaqueiras a tanger gados sobre motocicletas e de deslumbres de turistas com as vastas plantações de maconha. Em Estive lá fora (2012), o autor nos faz voltar no tempo e nos carrega ao período de chumbo da ditadura militar brasileira, narrando violências institucionais e simbólicas numa Recife, e por conseguinte num espaço Nordeste, pouco mostrada pela literatura brasileira como território politizado.
Em Rio Sangue, outra vez surpreendendo o leitor, Ronaldo nos traz esse sertão deslocado de sua representação habitual. Os três romances – lembrando mais uma vez da obra euclidiana com a célebre divisão em terra, homem e a luta – podem ser lidos nessa disposição em sentido inverso, numa correnteza sanguínea de reminiscências e veias historicamente singradas e secularmente abertas, constituindo a mesma matéria humana: a lama comum que nos arrasta. Memento mori. Veias essas que irrigam a terra brasilis, inundam uns sertões e se rareiam completamente em outros, matizando nossa história social e simbólica de puro sangue a encharcar e endurecer nosso solo.
Juliana Lesquives é doutora em Literatura e Cultura pela Universidade Federal da Bahia