Rodrigo Lobo Damasceno: surge um poeta raro

"Limalha" elabora contundente crítica da sociedade atual, mas sem descuidar da linguagem

São célebres, e sempre celebráveis, as palavras de Augusto de Campos (ao menos aos que compreendem o sentido profundo contido em suas sílabas) no prefácio de verso, reverso, controverso (1978, 1ª edição): “Assim como há gente que tem medo do novo, há gente que tem medo do antigo. Eu defenderei até a morte o novo por causa do antigo e até a vida o antigo por causa do novo. O antigo que foi novo é tão novo como o mais novo novo. O que é preciso é saber discerni-lo no meio das velhacas velharias que nos impingiram durante tanto tempo”.

Augusto se refere ao “antigo” como distância temporal, pois o livro em questão enseja seus estudos e traduções de poetas provençais dos séculos XI e XII (Guilhem de Peitieu, Marcabru, Arnaut Daniel), metafísicos do século XVI (John Donne, George Herbert) e simbolistas do século XIX (Tristan Corbiere, Jules Laforgue, Arthur Rimbaud), encontrando neles novos processos de linguagem que nutriram gerações posteriores e continuam nutrindo o solo fértil da poesia.

Para alguns poetas, talvez poucos, a poesia pode ser entendida como um , no sentido das filosofias orientais (China, Japão): um caminho. Algo muito maior do que simples necessidade de expressão. E todo caminho, para ser plenamente percorrido, pede atenção, aprendizado, dedicação. No caso oriental, quase nunca dispensa a presença de um mestre (ou vários).

Em uma época de velocidade extremada, marcada por vertiginosa quantidade de memes, influencers e novidadeiras novidades, que desaparecem com a mesma rapidez com que surgem no horizonte, poetas se multiplicam em cada esquina, mas é raro quando desponta um que consegue sintetizar conquistas de amplas tessituras culturais e, ao mesmo tempo, dar passos adiante no campo da linguagem. É o caso de Rodrigo Lobo Damasceno, com o livro Limalha (Editora Corsário Satã).

Rodrigo parece ter percorrido o caminho com plena atenção, ciente das palavras de seu antecessor Augusto de Campos. Não à toa o primeiro poema do livro se intitula “Passado (Começo de Epopeia)”, com seus versos iniciais demarcando o trajeto percorrido: “a baía começa no céu / (e todo começo é difícil) / daí vai descendo / primeiro vira rio /só depois é que as terras saem secas das águas salgadas / – e rumam pros sertões do raciocínio –”.

É notável já neste primeiro poema as pontes que o poeta constrói entre as experiências mais ousadas das culturas e poéticas populares e da tradição letrada, que vão se espraiando por todo o livro. Dedicado a Mestre Moa, exímio capoeirista baiano, “Passado (Começo de Epopeia)” faz referências explícitas a hábitos populares antigos (“o coentro, a cabaça e o cansanção já são velhíssimos / as cobras, o uso criativo dos cactos e as canoas também são”) e os conecta, com agilidade ideogramática, a imagens que continuam reverberando nos dias atuais (“depois o tempo passa – / e então dá-lhe conversa, cinema, chapada e cachaça / dá-lhe tabaco, sambas de sanfona, festa, fins de feira / e dá-lhe cheiro (tudo em vista / da vida futura que criaremos – se deus / deixar / ou não deixar”).

No deslocamento temporal processado no poema, Rodrigo Lobo se mostra atento aos sedimentos culturais vivos que passam de geração a geração, mas também deixa pistas do percurso pessoal no aprendizado da linguagem até a conquista de sua voz própria. Ao contrário de muitos, não se mostrou afoito em se hospedar no suposto panteão dos poetas contemporâneos: Casa do Norte, seu primeiro livro, foi publicado em 2020, quando contava já com 35 anos de idade; Limalha, o segundo, três anos depois. Entre um e outro, se torna evidente o adensamento de um poeta consciente de amplos recursos poéticos.

Limalha, aliás, é dividido em seis Ciclos: 1) do Nordeste, 2) das Rezas, 3) de Portugal, 4) de Finados, 5) de São Paulo e 6) de Classes. Baiano de Feira de Santana, residente em São Paulo há mais de uma década, a cartografia dos ciclos parece explicitar seu deslocamento geográfico, de um lado, e a busca de uma poética pessoal, de outro. A riqueza do conhecimento adquirido se materializa na concretude das imagens, na fluidez dos ritmos (às vezes em stacatto), nos encadeamentos sonoros entre palavras, no corte preciso dos versos e na amplitude de suas referências. Diálogos sutis com grandes poetas brasileiros e internacionais como Oswald de Andrade, João Cabral, Haroldo de Campos, Torquato Neto, Waly Salomão, Ezra Pound, Anna Akhmátova, Diane di Prima, E. E. Cummings ou Arthur Rimbaud, se conectam com referências vigorosas de outros campos e épocas, especialmente da música popular (de Jackson do Pandeiro a Itamar Assumpção, de Bob Dylan a Sabotage, de Dorival Caymmi ao punk rock, de João do Vale a Chico Science), e de territórios múltiplos, repletos de significados: o Raso da Catarina, a Baía de Camumu, o açude de Cocorobó (todos na Bahia), o bairro paulistano de Santa Cecília ou o periférico São Miguel Paulista (Zona Leste), com suas legiões de operários migrantes (piauienses, pernambucanos, cearenses, alagoanos).

Ao longo dos poemas, símbolos da realidade urbana e pós-moderna (relógio do Rotary, Big Data da Pirelli, o emblema da Marvel, uma igreja evangélica vista como “soviete e sindicato pentecostal) se configuram quase como ready-mades deslocados de seus contextos originais e lançados no turbilhão da linguagem, resultando em imagens bem-elaboradas, precisas, com concretude poética extraordinária: “o ônibus, redemunho de sucata e de cansaço”, “só, pilotando a sua Honda CG 160 / sob um sol só apreensível em rimas / elegíacas (sua luz sinistra / abrindo o agreste a fórceps)”, “– uma van amarela do Mercado Livre rumando pra Feira / – os burgueses soteropolitanos em seus 4X 4 blindados / – um caminhão tombado e saqueado / (moradores de Amélia Rodrigues / disputavam a carga preciosa e cara: / ração para cães e gatos)”, “é um corsário da caatinga / um camponês na base de enxada e ansiolíticos”.

Paisagens do Agreste nordestino e das periferias paulistanas são imagens recorrentes no percurso do livro e explicitam potente crítica aos descalabros sociais. Diversos poemas não se furtam em dar nome aos bois, aos agroboys e aos neocapitalistas que tentam camuflar a velha e eterna luta de classes, o jogo perverso entre exploradores e explorados.

Entre tantas vozes orquestradas e devidamente assimiladas, duas parecem basilares: Ezra Pound (na estrutura sinfônico-ideogramática do livro) e Oswald de Andrade (imagens concretas, telegráficas, cinematográficas). A forte noção musical, outra qualidade excepcional da linguagem do poeta, transparece vigorosa tanto na macroestrutura quanto na microestrutura dos poemas, através de hábeis jogos paronomásicos, aliterações, assonâncias, ecos e rimas toantes: “usinas são sinas e a cana e a bala comem soltas”, “cheio de cheiroso chuvisco”, “rei que só reina no ritmo”, “o homem vem do vale / (onde planta, colhe e passa fome)”, “entre as escritas tristes / e as trevas”. O cuidado com a plasticidade e a sonoridade da linguagem em Limalha não está a serviço de um mero exibicionismo técnico, mas, sim, à fluência dos múltiplos ritmos, adensando o significado das palavras, no rastro da definição de poesia por Paul Valéry como “hesitação entre som e sentido”.

No caso de Rodrigo não há “hesitação” propriamente dita, mas olhar e ouvidos atentos aos elementos que mantêm o idioma vivo, elástico, significativo – acuidade rara entre inúmeros poetas contemporâneos. Inserido no contexto da criação poética atual, Limalha se destaca justamente pela diferença gritante em relação a correntes que enfatizam a “mensagem” e negligenciam a elaboração da poesia como arte. Neste ponto, embora pareça o contrário, não há novidade alguma: os ciclos tendem a se repetir. Conquistas de uma geração, ou de um período, frequentemente são diluídas por hordas posteriores. Assim, o verso livre (conquista dos modernistas) ou a subversão da pontuação (vírgulas, pontos finais etc.) se transformam em tediosa proliferação de textos cortados em linhas (sem percepção da cadência/duração do verso) e flagrante demonstração de inabilidade no uso das marcas gráficas como recurso rítmico. Poucos são os que as potencializam e conseguem esticar a corda rumo a terrenos não explorados.

Na contramaré dominante (em parte), Limalha surge como um quase épico contemporâneo, sinfônico, com uma crítica contundente da sociedade atual. Porém, sem jamais se esquecer da linguagem, atributo de todas as artes.

Carcaça (camisa de time)

Sou um membro sem brilho da classe operária
Filho do tempo e do trampo mecânico
Pouco heroico
Entregue à leitura desordenada da história e ao consumo exagerado do álcool
Filho de pai torneiro durante a semana e centroavante de times de várzea
nas horas vagas
Sou incapaz de manejar o torno, a fresa e de oferecer manutenção às máquinas
(nunca fui peão de fábrica)
ou de apresentar leituras inovadoras da obra de Marx
Seguidamente atiçado pela possibilidade da traição de classe
e avesso a cafés, universidades, SENAIs e oficinas literárias
Frequentador desiludido de arquibancadas
Delicado demais para o trabalho duro
Desajeitado para a violência revolucionária
(anarquista cordato e comunista pouco melancólico, pergunto:
o que posso, sem armas?)
Caminho de madrugada com os bolsos cheios de poemas e de pedras
Sou tolo, na certa: eu, Paulo e todos os outros – os que compõem
a paisagem onírica da noite a que os franceses chamam: boemia,
massa indefinida, dissoluta e dispersa conspirando atrás de balcões e barricadas
Encontro amigos e amigas nas mesmas encruzilhadas e esquinas
(uns, blindados até os dentes com drogas; outros, lúcidos líderes de torcida)
Falo com a sintaxe truncada: marca original do agreste e do meu bairro
Sou tímido e desarticulado diante da opulência dos poetas e de São Paulo
Tabaréu, do interior, sem graça
Admirador das plantas, dos animais e das estrelas (que não me dizem nada)
Endereço o meu poema àqueles que não se interessam por meu poema
(àqueles presos a suas roupas, sua classe e muitas vezes ao Corinthians)
Torcedor fanático da vitória
Vou de camisa rubro-negra e de bota pela rua cinzenta
carregando um trapo encarnado e brilhante acima da minha própria carcaça

CONTEÚDO NA ÍNTEGRA NA EDIÇÃO IMPRESSA

Venda avulsa na Livraria da Cepe