O romance do copista e do revisor

Marcílio França Castro leva a uma viagem dos manuscritos do calígrafo Vergécio, no século XVI, à era digital e da Inteligência Artificial, num romance que valoriza o texto, a reescritura e a leitura

Em 2019, o autor deste romance, Marcílio França Castro, publicou na Revista Piauí um texto com o mesmo título deste livro que agora resenho, O último dos copistas. Digo “texto”, mas o próprio texto se diz “ensaio” e a revista o publicou como “ficção”. Tanto melhor, imagino, pois pouco importando como se rotula, o que evoquei ao reler o texto agora foram as emoções mescladas de reconhecimento, identificação e surpresa. Era um péssimo momento, terrível em particular para aqueles que trabalhamos com a literatura, o livro, e a cultura: o governo federal da época, sua visão equivocada sobre essas e outras matérias, a corrosão da vida pública, a temporalidade amesquinhada na qual nos movíamos, aflitos, coagidos e amargurados. Tudo isso foi colocado em suspenso pela leitura, um alento.

Há textos que nos colocam diante de uma construção cuja simplicidade serve à erudição, dando a um fato recôndito da cultura livresca a complexidade que merece, e devolvendo-o ao mundo de carne e osso do qual emergiram e do qual sempre fizeram parte. Assim fez Castro nesse texto/ ensaio/ ficção, transformando um fato em vários, a vida de um sujeito histórico excepcional em metonímia de muitas e implicando quem lê nessa transformação. O narrador vai a uma exposição, dedicada ao trabalho de Ângelo Vergécio, um copista extraordinário do século XVI, que nasceu em Creta, de lá migrou para Veneza e depois França, onde fez carreira e ganhou reputação por sua caligrafia superlativa. A trama dessa vida é vista de soslaio, emulando a trajetória de passeio típica de um visitante de uma exposição. Nesse processo, o texto aponta para regiões de aventura e envolvimento que são meramente aludidas, tocadas de leve.

O personagem central, Vergécio, é fugidio e fascinante, e a maneira como ele é tratado está à altura da figura crepuscular cuja fisionomia precária é delineada com admiração, mas sem nostalgia. Descrevendo e explicando a exposição, apresentando o copista e suas circunstâncias, o autor desdobra e desmonta ambos, e salienta a certa altura que se isto é um ensaio, não é como a construção de um andaime, uma armação garantida pelo cálculo e verticalidade, com a função de sustentar quem aos poucos se eleva; se isto é um ensaio, é preciso lê-lo como quem entra em um jardim noturno, tateando o vulto das flores e dos bichos, e assim cria ilusões precárias e sucessivas, com o único propósito de perder-se nelas ou testar seu alcance, ou de saltar de uma para outra, ou a qualquer momento despencar de tal maneira, que, enfim, flerte com a verdade, naquele ponto em que, sem prova ou documento, só a alucinação é capaz de atingir o centro nervoso da descoberta.

A situação banal de um turista visitando um museu passa por uma reflexão sobre a vida, a escrita, as vidas de quem escreve, a escrita do próprio texto que estamos lendo, e as vicissitudes de tudo isso. Impressiona a maneira como a deriva é aproveitada nesse texto: essa vertigem, “capaz de atingir o centro nervoso da descoberta”, está aí, estamos lendo isso que aí se descreve, e vivendo o que essa leitura opera em nós à medida que lemos, olhamos pro abismo e o abismo olha de volta para a gente, e continuamos deambulando até que o texto conclui no vapor de vidas perdidas e seus fantasmas, parceiros de nossas especulações e vidas como leitores. Se, como diz o texto a certa altura, “o livro manuscrito é um diário do corpo”, isso vale tanto para Vergécio e seus livros meticulosamente produzidos quanto para as notas tronchas que confiei em uma ficha na época da leitura e que acabei de consultar para escrever isso aqui: ambos resíduos de uma vida, metonímia de gestos que são imagens do que se é e do que se pode ser entrevistos no trabalho manual da escrita.

Esse texto que li em 2019 numa revista reencarna agora, como movimento de abertura deste romance que leva o mesmo título que a produção anterior. Enfatizo a ideia de reencarnação por querer destacar que o texto aqui se transforma, ganha outra vida: em suas letras, nada se altera, salvo a assinatura final, aqui lavrada por um “F.C.”, na omissão do M complicando um pouquinho sua atribuição inconteste ao mesmo Marcílio França Castro, autor.

Mas, recontextualizado, seu funcionamento muda, e adentra outra economia, ocupando lugar agora de abre-caminho de uma narrativa que a partir dele se estende e dele depende. Conhecemos Eduardo Penna, um revisor de carreira meio claudicante que nos guiará – à maneira de um Riobaldo menor – em uma longa conversa de mesa de bar com o autor do ensaio, esse tal F. C. que, retornado de Paris, acolhe o convite de um leitor para um encontro. Escutamos, assim, o que esse F. C. escuta, aprendemos o que ele aprende: somos leitores nos sapatos deste autor, que agora é personagem. E assim sabemos da relação de Eduardo com Lygia Delgado, uma artista e ilustradora que conhece quando começa a trabalhar em uma pequena editora de Belo Horizonte, e como se envolveram, acidentalmente, digamos, em uma busca que encaminha o livro.

Existe uma conexão forte entre Eduardo e Lygia, e talvez um enlevo erótico muito tênue, mas nunca explicitado. Mas, principalmente, há uma história que tem a ver com o ensaio que abre o livro: é desse ensaio, é porque esse ensaio existe, que a trama reclama um núcleo. O que se busca é uma personagem apenas aludida ligeiramente no ensaio escrito por F. C., uma suposta filha de Ângelo Vergécio, que seria a responsável pelas iluminuras em seus manuscritos. Querer saber sobre esse fantasma, de existência garantida por pouco mais que uma especulação comedida, é o que leva Lygia a um périplo internacional e, ao mesmo tempo, estimula Penna a cogitar várias vidas possíveis para Vergécio, e vários arranjos entre ele e sua suposta filha. Isso conduz ambos a alguma forma de conciliação e reencontro – tanto consigo mesmo quanto com o que o permanece de misterioso no outro que, por mais próximo, guarda um núcleo secreto, talvez aquilo que de maneira resumida chamamos de sua vida.

Ao longo da conversa entre Eduardo e F. C., há uma pontuação: imagens – que supus serem as dos postais enviados por Lygia a ele como marcadores dos momentos de sua viagem solitária, de Creta a Nova York, passando por Roma e Paris – associadas a textos breves, que supomos serem o que ela escreveu no verso dos postais. Essas entradas, que interrompem a narrativa de Penna, retiram a narrativa do solilóquio e da digressão e a encaminham para outros lugares e tempos.

Esse é o recorte amplo que essa narrativa quer solicitar, indo de Creta e do mundo antigo à Nova York do século XXI, recusando o confinamento ao mundo belorizontino contemporâneo. Há enigma, mas ao final, tudo se encaixa: os dois fluxos de texto avançam na tentativa de recuperar alguém perdido no passado, um fiapo de autoria insinuada, mais que atestada. Algo se aproxima, alguma coisa acontece: não é exatamente o buscado originalmente, mas guarda com o objeto original da busca uma estranha intimidade, uma marca de coincidência. E, afinal, parece que uma resolução foi, de alguma maneira, conquistada.

Há pouco mais em termos de personagens – são basicamente esses dois, e o mundo meio hipster que habitam, gente que trabalha com arte e cultura, talentosos e premiados, todos parecendo ter vida confortável. Nenhum dos demais parece importar muito – nem mesmo a presença curiosa e irresoluta de Ibrahim, um coadjuvante nigeriano, com uma vida de globetrotter com marcas trágicas. É possível marcar certa simetria entre ele e Eduardo, mas isso, creio, interessa menos. Esses personagens centrais, Eduardo e Lygia, existem como câmaras de eco de um texto, e o que fazem nos faz recuperar o texto que dá origem a tudo, publicado numa revista, republicado aqui no romance. O que se quer dizer aqui tem a ver mais com explorar o que os textos podem fazer com seus leitores que caracterizar o mundo dos culturetes literários privilegiados da capital mineira hoje.

Como esse é meu jeito de ler esse romance, sou levado a escutar no que ele me diz rastros de outros livros. Reconheço Paul Auster, e seu manejo do acaso como propulsor da narrativa, e percebo um uso de ilustrações que lembra, claro, Sebald. Mas, principalmente para mim, Castro recapitula nesse livro sua própria produção. Assim, do mesmo jeito que penso que o casal de protagonistas é uma exploração das ressonâncias dos textos nas pessoas, sinto que o romance é um trabalho de arrecadação do já feito e composição de outras combinações do material passado.

Há muito que já foi explorado nos livros anteriores do autor. Por exemplo, aparece uma “teoria do acaso”, e se toma o gesto primitivo da cópia como questão de interesse central, sempre junto a um olhar dedicado a esses profissionais periféricos da literatura. Fala-se sobre a internet, o acesso à informação, o afogamento pelo acesso, a uniformização e a pequena possibilidade de invenção e caotização da previsibilidade algorítmica de quase tudo – às vezes como diatribe, às vezes como compreensão de uma possibilidade de alento criativo advindo disso tudo. Aparecem os lugares sem nenhum interesse, a mudança imprevisível e inevitável nas línguas. Talvez seja o único autor brasileiro contemporâneo que fale em fenícios, mongóis, e faça isso não como afetação decorativa, mas como elemento íntegro de uma poética.

Tudo isso já foi manejado por ele antes, e está tudo, em alguma medida, aqui. Mas uma recorrência em particular é marcante: a ideia de um romance do revisor, um aproveitamento desse lugar profissional particular como espaço de exploração do mundo do texto e suas potencialidades inventivas, uma espécie de “mirada oblíqua”, para parafrasear uma fórmula que Ricardo Piglia usou para dizer de outra questão, mas que aqui vale também, considerando ainda que Piglia é uma presença, um dos fantasmas que empresta vida a esse livro como já emprestou a trabalhos anteriores do autor. E tudo aqui funciona, tudo é bem-escrito. Isso é uma coisa difícil de definir, mas que me parece apropriada: é um texto fácil e, simultaneamente, complexo – e isso não é fácil de fazer, é evidência de labor e cuidado, me diz que esse autor leu e escreveu com atenção, e o que se oferece ao leitor não é nada espontaneísta, mas o fruto calculado de um desejo traduzido em empenho. Esse empenho o levou a tomar um texto já pronto e fazer esse texto girar em outra roleta, recontextualizado, afetado pelo que esses personagens, que começam como eu, como leitores do texto original, fazem com ele.

De acordo com um momento do depoimento de Penna a F. C., no qual ele reflete sobre a maneira como um autor revisa o que escreve, sabemos que, para ele, “Rever não é apenas retificar o texto. É retificar o próprio sujeito que lê”. Castro revisou seu ensaio-ficção e nisso se fez autor desse romance, com “fatos e aventura”, realizando assim sua ambição de se fazer, sendo já escritor, romancista. Percebo que a intensidade peculiar da voz daquele texto original continua me tocando, anos após a primeira leitura: não sou mais o mesmo, e o texto lido, embora suas palavras sejam as mesmas, está fatalmente modificado também. Ocorreu comigo algo da ordem do que vi acontecer com os personagens: um texto mexeu comigo, fez coisas em mim, e fiz coisas com isso que o texto fez. Fiz, e sigo fazendo, aqui, nesse texto, lendo esse romance desse jeito, como um suplemento do ensaio. Sinto que esses personagens não me importam muito, nem suas peripécias – mas imagino que, nesse caso, isso não é o que mais importa.