Gabriel García Márquez e a escrita da experiência

Antologia A caminho de Macondo reúne textos seminais de 1950 a 1954, publicados inicialmente em colunas de jornais e revistas, que desaguariam em Cem anos de solidão

Há a mítica história de que Gabriel García Márquez estava indo de férias com a família para Acapulco, no primeiro semestre de 1965, quando subitamente lhe veio à cabeça todo o parágrafo de abertura de Cem anos de solidão (1967). Imediatamente voltou para casa e, numa Olivetti portátil, escreveu o que seria um dos mais perfeitos trechos de abertura de um romance: 

“Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo. Macondo era então uma aldeia de vinte casas de pau a pique e telhados de sapé construídas na beira de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos. O mundo era tão recente, que muitas coisas careciam de nome, e para mencioná-las era preciso apontar com o dedo”.

Verdade mesmo é que o escritor intuiu o início do romance na viagem, mas seguiu para Acapulco e durante dias ficou remoendo o projeto, até que voltou para casa, pediu demissão do emprego, concluiu uns trabalhos pendentes, juntou as economias, cinco mil dólares, deu para a esposa, Mercedes, administrar e preparou um canto da sala da casa, como um aviso: La Cueva de la Mafia, onde escreveria o romance. Calculou que ficaria ali por seis meses. Errou: foram dois anos de um trabalho insano e constante, seis horas ininterruptas durante todos os dias da semana. Ao final, como conta o escritor e tradutor Eric Nepomuceno, tinha um romance com “590 páginas datilografadas em espaço duplo. (...) García Márquez e Mercedes deviam nove meses de aluguel, quatro meses de açougue, sabe-se lá quantos meses de quitanda e padaria, e não tinham mais nada para empenhar ou vender.”

Outra verdade é que Cem anos de solidão não nasceu apenas deste esforço de dois anos. Segundo seu amigo Conrado Zuluaga, escritor e editor colombiano, “García Márquez afirmou em diversas oportunidades que, para escrever cada livro, primeiro tinha de aprender a escrevê-lo, e só depois enfrentar a máquina de escrever. Precisou de quase 20 anos ‘vivendo’ em Macondo para aprender a escrever Cem anos de solidão”.

Esta saga está contada na antologia A caminho de Macondo que reúne textos seminais de 1950 a 1954, publicados inicialmente em colunas de jornais e revistas – alguns com a indicação “Apontamento para um Romance” –, e o conteúdo integral das obras A revoada (O Enterro do Diabo), de 1955, Ninguém escreve ao coronel, de 1961, Os funerais da Mamãe Grande, de 1962, e O veneno da madrugada (A má hora), de 1966, textos que marcam o prelúdio do romance que consagrou o escritor.

“Num exagero bem caribenho, Gabriel em reiteradas ocasiões afirmou que, depois dos oito anos, não lhe havia acontecido nada de interessante. A frase soa como mera extravagância, mas, como tantas outras boutades dele, é rigorosamente correta, pelo menos no sentido de que aqueles primeiros oito anos que ele passou na casa dos avós maternos em Aracataca, no departamento de Magdalena, Colômbia, vulgo Macondo, deram-lhe material para toda uma vida de escritor”, escreve a jornalista mexicana Alma Guillermoprieto no prefácio de A caminho de Macondo.

Estes anos foram realmente fundamentais para sua vida de escritor. Foi o tempo em que ele aprendeu a conviver com o cotidiano absurdo e onírico de seu país e ouviu sua avó contar histórias incríveis num ritmo poético, num tom quase apocalíptico. Ele jurava que estes elementos formaram sua escrita. E até a “tarde remota” em que o pai do coronel Aureliano Buendía o leva para conhecer o gelo é uma recriação da tarde em que o avô levou o menino Gabriel para conhecer o gelo.

No romance, a aventura ficou na conta dos encantos que os ciganos levavam até Macondo, entre eles o gelo, um homem transformado em víbora e uma esteira que voava sobre o povoado. Na vida do menino Gabriel, o fato se deu numa prosaica ida ao cais de Aracataca onde o resultado da lida dos pescadores era conservado em caixas com imensas pedras de gelo.

Em vários momentos do discurso de agradecimento, quando recebeu o Prêmio Nobel de Literatura, em 1982, Gabriel fala dessa junção de mito e realidade que doma o cotidiano de sua infância. E vai além, contando fatos históricos até hoje inexplicáveis: “um dos tantos mistérios que nunca foram decifrados é o das onze mil mulas carregadas com cem libras de ouro cada uma, que um dia saíram de Cuzco para pagar o resgate de Atahualpa e nunca chegaram ao seu destino”.

É este ambiente, para ele tão real e concreto quanto a Torre Eiffel ou o Cristo Redentor do Corcovado, que faz sua literatura, acrescentada, claro, de fortes doses de poesia, a poesia que ouvia nas narrativas da avó.

“Em cada linha que escrevo trato sempre, com maior ou menor fortuna, de invocar os espíritos esquivos da poesia, e trato de deixar em cada palavra o testemunho de minha devoção pelas suas virtudes de adivinhação e pela sua permanente vitória contra os surdos poderes da morte”, diz no discurso pronunciado na Suécia.

Esta reunião da poesia com uma realidade de sonhos e adivinhações já se encontra nos Primeiros textos, escritos entre 1950 e 1954 e agora publicados na parte inicial do volume A caminho de Macondo. Aqui o vilarejo surge como uma recriação da Aracataca de sua infância.

São sete textos, quase contos, que desvelam, ainda de maneira tímida, o universo mítico de Gabriel García Márquez. No primeiro deles, A Casa dos Buendías, com o subtítulo de Apontamentos para um romance, surge a família fundadora de Macondo e sua casa marcada pela opulência e a solidão. No segundo texto, A filha do coronel, outro Apontamentos, nasce a filha do coronel Aureliano Buendía, Remédio, incorporando a solidão e o medo, as marcas da família: “naquela época sua consciência começou a se encher com as coisas do povoado, a compreender por que precisava viver na mesma casa onde várias vezes havia reaparecido o medo.”

Seguem os outros cinco textos. Em O filho do coronel, também um Apontamentos, Tobias nutriu-se de revolta e liberdade para conseguir viver; já em O regresso de Meme, mais um Apontamentos, a índia que vivia quase escondida em sua simplicidade surge exageradamente enfeitada e vai à igreja, afrontando a todos; Monólogo de Isabel vendo chover em Macondo, conta dos efeitos dos fenômenos naturais sobre as almas e os sentimentos dos habitantes do vilarejo; Um homem vem na chuva é a gesta de uma mulher que sonha a chegada de um homem junto com a chuva e tudo, aos poucos, se dilui em solidão; e, finalmente, em Um dia depois do sábado: “a inquietação começou em julho, quando a senhora Rebeca, viúva amargurada que vivia numa casa imensa de dois corredores e nove quartos, descobriu que suas telas armadas estavam rasgadas como se estivessem sido apedrejadas da rua”. O fato, no entanto, é outro: nos mistérios de Macondo, pássaros se matam jogando-se contra as casas.

Muitos desses personagens e muitas dessas situações ressurgem em textos futuros do autor. A Meme do conto é a mesma índia que se junta ao médico odiado por todo vilarejo e que vive completamente isolado no romance de estreia de Gabo, A revoada (O enterro do Diabo). Um dia ela escandaliza a todos vestida espalhafatosamente e indo à igreja. É salva da revolta, um dos fundamentos do livro, pelo velho coronel reformado, um dos narradores da trama, junto com sua filha, Isabel, e seu neto. Macondo já então era o vilarejo em decadência depois que a empresa norte-americana que explorava os bananais da região fora embora.

Em Ninguém escreve ao coronel, segundo romance do autor, um velho coronel, reformado e combatente da guerra civil, espera por uma carta que traga os vencimentos de sua aposentadoria. Enquanto isso, lamentando a morte do único filho, cuida do único bem por ele deixado, um galo de rinha.

García Márquez escrevera vários contos publicados em jornais e revistas; aliás, estreou na literatura, ainda quando era estudante, com um conto escrito para calar um crítico que dizia não haver uma literatura pujante na juventude colombiana. No entanto, seu lançamento como contista em livro se dá com Os funerais da Mamãe Grande. São seis contos e uma seminovela onde o universo macondiano já está bem-definido. O alcaide que sofre de terrível dor de dente, os homens entristecidos pela falta de perspectivas, as mulheres carolas e revoltadas, a eterna briga entre a riqueza e a miséria que vivem enroscadas como irmãs de uma mesma condição humana. O texto que dá título ao livro fala de uma matriarca com riqueza incalculável que comove o mundo com a sua morte. 

Ao acordo, numa madrugada de chuva intensa, um homem encontra um pasquim pregado em sua porta. O papelote acusa sua mulher de o trair com um músico. Sem qualquer sentimento, mata o músico e se deixa prender pela polícia. O início do romance O veneno da madrugada (A má hora) aponta para o mundo de extrema violência que marca a América Latina e seus ditadores insanos. Os pasquins continuam surgindo, desafiando a polícia e a moral dos habitantes de Macondo. O alcaide, que deveria cuidar do assunto, está mais interessado em amealhar fortunas e a sua gente segue vivendo o sufoco e o desconforto que lhe impõe a impossibilidade de reação.  

O vilarejo em si é uma síntese de toda cultura latino-americana e do caos tão fortemente caribenho marcados que são pelas várias formas da violência, pelos medos infindos e pelos encantos inesgotáveis. Curiosamente nada surgiu neste continente por geração espontânea. Temos uma genética bem-definida. Há o imaginário dos povos que aqui habitavam, tão diversos quanto amplos em seu imaginário. A isso foram acrescidas uma mitologia europeia e uma crença empedernida em mitos quase humanos vindos na bagagem dos africanos. Vale lembrar que foi um cronista europeu, Pero de Magalhães Gândavo, em 1576, que validou a existência de um monstro marinho no litoral do Brasil.  

Enfim, temos uma cultura e uma violência herdadas. “Talvez a Europa venerável fosse mais compreensiva se tratasse de nos ver em seu próprio passado. (...) Em pleno século XVI os pacíficos suíços de hoje, que nos deleitam com seus queijos mansos e seus relógios impávidos, ensanguentaram a Europa com seus mercenários. Ainda no apogeu do Renascimento, 12 mil lansquenetes a soldo dos exércitos imperiais saquearam e devastaram Roma, e passaram na faca oito mil de seus habitantes”, conta Gabo no discurso do Nobel.

Todo esse caldo de verdades Gabriel García Márquez abriga em Macondo, que para ele “não é um lugar, mas um estado de ânimo que nos permite ver o que queremos e como queremos”. Um mundo que ele foi criando aos poucos, enquanto escrevia e contava aos amigos os episódios dos romances em curso. Para surpresa de todos, nada daquilo que contava estava nos textos publicados. O escritor, de maneira permanente, exercitava a imaginação que o levava de forma certeira às crenças que quis imprimir, e imprimiu, em seus livros. 

Tudo isso culminou no romance Cem anos de solidão. “Muitos anos depois, ele (Gabo) diria que o livro tinha começado a ser escrito em 1948, em longas tiras de papel jornal, em Cartagena das Índias. E que durante 17 anos havia passado por diferentes versões, sempre com o título La casa, sem que nunca tivesse surgido a estrutura correta, a atmosfera necessária, e principalmente o tom convincente da narração, aquele mesmo tom com que sua avó materna contava histórias inacreditáveis. E isso tudo foi o que apareceu de repente, quando ele ia para Acapulco, e permitiu enfim que escrevesse o que vinha tentando desde os seus 20 anos”, escreve Eric Nepomuceno no perfil de Gabo publicado em uma edição brasileira do romance. 

CONTEÚDO NA ÍNTEGRA NA EDIÇÃO IMPRESSA

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