Duas irmãs, Carinna e Giuliana Giácomo, lindas, ruivas, forasteiras, causam alvoroço quando chegam à cidade e se matriculam no Ensino Médio do Colégio Sagrado Coração. Colegas querem decifrá-las e, se possível, se tornarem amigos ou namorados das belas irmãs. Quando Carinna e Giuliana são encontradas mortas em um rio cuja profundidade não explica o afogamento, dá-se o mistério do romance O sombrio coração da inocência, da escritora pernambucana, natural de Serra Talhada, Débora Ferraz. Mas o mistério real que se desvenda ao ler esse livro é um tanto mais profundo e aterrorizante do que aparenta o suave caminho percorrido nas águas rasas da vida cotidiana de um grupo de adolescentes.
Ao longo de 262 páginas, a narrativa viaja 20 anos entre o passado do Ensino Médio e o presente adulto de Tito Limeira, 35 anos, jornalista investigativo famoso. Tito está numa fase que a autora chama de despersonalização: crise no casamento, crise na profissão. Decide que viajar para o exterior pode tirá-lo desse incômodo existencial que a rotina massacrante impõe até mesmo aos indivíduos mais bem-sucedidos.
Numa crítica aos diagnósticos e soluções que a sociedade capitalista nos impõe para explicar insatisfações com o status quo, lá vem: crise da meia-idade. A solução? Viajar, mudar de profissão, tirar um ano sabático, aperfeiçoar um idioma… Será? Como pode haver uma solução se nem mesmo o problema foi detectado? O diagnóstico psiquiátrico é moda: ansiedade e depressão. Remédio é paliativo para seguir em frente e não pensar. Tito está cansado deles. Débora analisa: “O psicanalista fala do mal que é ficar constantemente sem querer sentir desconforto. Se não sentíssemos dor, não tiraríamos a mão do fogo”.
“Quem tu acha que enfiou nessa cabeça que viagens transformam vidas? Viagens são só deslocamento. Quer aprender um idioma? Por que não pega um livro, se tranca numa biblioteca pública?”, diz um de seus amigos, Renan. O outro amigo, seu editor, Felipe, completa: “É só uma fase, tu vai ver. Logo descobre que a coisa que tu tinha que ser, teu verdadeiro talento, é aquilo que tu já é: um repórter que cobre as histórias que os outros não querem”.
De um país periférico para outro desenvolvido, a Inglaterra, Tito não se sente mais tão bem- -sucedido assim. Afinal, carrega em si o estereótipo da discriminação caucasiana com alguém “mestiço, caipira, proletário e sem sobrenome”. Mas existe redenção quando a autora descreve a aparência dos ingleses como “versões de Liam Gallagher e Bridget Jones”.
Tito é um forasteiro, assim como as irmãs mortas, assim como Débora, que se autodenomina “paraibucana”, pois reside em João Pessoa desde a adolescência, já morou em Londres, Porto Alegre e escreveu esta obra em um dos cenários desse romance, Norwich, leste da Inglaterra. É claro, portanto, que estamos diante de uma obra com traços autobiográficos, como já é marca registrada da escrita de Débora.
Imagina Londres em 2009, com “todo o rescaldo do indie rock, que hoje é lembrado como uma grande ressaca e, na época, parecia uma enorme promessa de bis. Em qualquer pub que se entrasse, no Bairro de Camden, corria-se o risco de testemunhar um pocket show surpresa do Carl Barât. Amy Winehouse andava, ainda viva e bêbada, pelas ruas da cidade, e ele tinha ingressos para o Morrissey, que acabara de lançar Years of refusal. Mas agora a cidade é Norwich, Morrissey é um reacionário racista, e ele já não pode ser jovem de novo”.
A linguagem quase tão espontânea como a que se fala – e acrescida de nosso sotaque nordestino, sem artigos antes dos nomes próprios –, não torna difícil se identificar e se reconhecer na narrativa de Débora Ferraz, 38 anos. Principalmente para quem tinha idade suficiente para se lembrar do ano 2000. As referências à cultura pop nos aproximam do enredo e nos fazem viajar junto com Débora para um passado recente e distante ao mesmo tempo, quando o filme Matrix nos trouxe releitura pop da alegoria da caverna de Platão, do capitalismo aprisionador que se revelava na falsa ideia de liberdade da globalização.
“O passado é um lugar seguro para caminhar.” Será? As idas e voltas no tempo trazem uma reflexão sobre o próprio tempo e sobre a memória e como ela pode atuar de maneiras diferentes em diversos momentos da vida: “O tempo? Ele sempre pode ser reconstruído. Podemos voltar atrás se nos empenharmos muito, se pesquisarmos direito, se copiarmos as memórias e se quisermos de verdade”, escreve a autora, para quem os flashbacks e flashforwards são sempre refletidos em sua literatura.
Ao descrever o tempo de Tito na escola de uma cidadezinha de interior com oito mil habitantes, Débora reconstrói sua própria adolescência no colégio cuja proposta didática que ela chama de surreal e que abriu seus caminhos para a literatura. Aulas de educação física teóricas para aluno nenhum escapar com atestado médico. Débora enxerga com bons olhos e dedica aos donos da escola este livro.
A autora critica a violência normativa quase invisível do dia a dia, para a qual a sociedade contemporânea faz vista grossa. A violência que começa no bullying na escola e nunca para de ocorrer ao longo da vida, nas relações humanas e seus clichês de preconceito de gênero, cor, raça e classe social que machucam profundamente, deixando sequelas permanentes. A violência que os adolescentes calam, toleram, praticam, escondem. Daí o paradoxo do título do livro, a inocência sombria. “O que é inocência senão a desresponsabilidade?”. Na epígrafe do livro, uma frase de Ernest Hemingway: “Todas as coisas realmente perversas começam na inocência”.
Ferraz já coleciona prêmios como Sesc e São Paulo de Literatura, com o romance Enquanto Deus não está olhando (2014), e publicou dois livros de contos, Os anjos (2003) e Ogivas (2021). Após 10 anos sem publicar um romance, ela volta a nos acertar em cheio com momentos de intensidade narrativa que fazem o coração saltar do peito como quando Tito descreve seus momentos de angústia e ansiedade mascarados pelo que se considera genericamente como sucesso e felicidade. “Na verdade, Tito tinha duas ou três coisinhas a dizer a respeito de seu tão comentado sucesso. Primeiro, que isso de ser um jornalista famoso não era exatamente bom, era apenas cansativo, era apenas tumultuado. Ele fazia reportagens especiais para a TV desde 2016, tinha de ficar viajando de um canto a outro do país, carregando muito peso, improvisando textos em dois minutos.”
Foi graças à atuação como repórter que ela descobriu que poderia, sim, usar diálogos, erroneamente apontados como recurso utilizado por quem não sabe escrever. Na função de repórter, ela se deparou de verdade com um caso igual ao do afogamento e percebeu que a melhor maneira de contá-lo não seria pela via jornalística, mas pela ficção. Quanto mais ficcional, mais verdadeiro se tornava o relato. “Não tive a impressão de que eu estava inventando, mas que eu estava descobrindo coisas. As mesmas surpresas em que Tito se viu, acabei me vendo também. Se eu fizesse uma grande reportagem sobre o assunto, não conseguiria investigar tão bem o que aconteceu quanto se eu especular. Então comecei a imaginar essas meninas. Não quem elas eram na verdade, mas quem elas eram idealmente. Como se elas fossem o encontro de muitos outros casos que eu vi como repórter, tanto por ter entrado em contato por ser repórter quanto por ter vivido.”
Da mesma maneira que toca na decadência do jornalismo como é feito hoje, Débora toca também em sua importância. Atualmente, ensina jornalismo em uma escola de Ensino Médio canadense, em João Pessoa. “Uma sociedade precisa ter o mínimo de conhecimento sobre o que é verdade. A verdade são fatos compartilhados. Não existem várias verdades. Nem tudo é relativizável. O modo como as pessoas vivem, em bolhas, faz com que nos entendamos cada vez menos como sociedade. Não se sabe de onde veio a notícia e aí está a função do jornalismo para a sociedade. Se soubéssemos como consumir conteúdo, não seríamos tão manipulados.”
Mestre em Narrativas Audiovisuais pela UFPB e doutora em Escrita Criativa pela PUCRS, Débora se utiliza da metalinguagem e isso é muito bom, como quando Tito decide como contar a história: “Sou da opinião de que nunca é fácil rastrear o começo de uma história. E esta que vamos encontrar aqui, por exemplo, poderia se iniciar de diferentes maneiras: pela volta às aulas no ano 2000, pelo início súbito das cheias do rio, ou podia ir ainda para mais longe, em 1999, no ponto em que as irmãs Giácomo chegaram à cidade. Contudo, acabamos concordando – a equipe de meninos que me ajudaram a reconstituir os eventos e eu – que não seria tão arbitrário se começássemos pela partida de futebol no campinho”.
Para Débora também foi difícil resolver como contar essa história. “A primeira cena escrita, cronologicamente falando, é a cena de que eu me lembrava, a do resgate das meninas afogadas em um rio que eu fui cobrir quando ainda era foca. Sempre há uma pré-história da história.” E nunca, jamais, quando puxada da memória, do passado, do tempo, essa história será a mesma.