“Eu venho acompanhando essa criatura desde criança.” A frase de Guillermo del Toro sobre a obsessão que agora chega a termo com Frankenstein, seu novo filme. A avant-première aconteceu na mostra competitiva do 82º Festival de Veneza, no dia 30 de agosto.
A escolha do tema não chega a surpreender, pois o gênero do horror e da fábula está na gênese de seu cinema, desde ao menos A espinha do Diabo, o longa-metragem de 2001 que lhe deu reconhecimento internacional. Assim como A forma d’água, vencedor do Leão de Ouro veneziano em 2017, ou Pinóquio, há uma razão para ele cumprir o sonho de adaptar o clássico de Mary Shelley depois de oito títulos para cinema. “Esperei para realizar o filme nas condições certas, tanto na criatividade como em termos de alcançar o escopo para fazer a diferença”, explicou, na coletiva de imprensa. “Tinha que ser na escala em que fosse viável reconstruir todo aquele mundo”.
A ambição, por fim, se revela em uma grandiosa produção de US$ 120 milhões, 150 minutos de duração e o estilo barroco do cineasta que cai muito bem à fantasia gótica do romance original, reverenciado de modo fiel. O quarteto de intérpretes à frente inclui Mia Goth, a britânica de ascendência brasileira e neta da atriz Maria Gladys, no papel da noiva do irmão do doutor Frankenstein, que se encanta pelo monstro e o encanta por sua beleza.
Mas cabe a Oscar Isaac e Jacob Elordi o tour de force na empreitada, o primeiro como o médico que junta órgãos e partes de cadáveres de condenados para provar a possibilidade de dar vida a um ser inanimado. Com quase dois metros de altura, Elordi desaparece como o galã da série Saltburn e surge como o ser costurado com algum apoio da animação CGI, tecnologia usada ainda aqui e ali para a criação de lobos, por exemplo. Mia Goth, por sua vez, vem do sucesso da trilogia XXX – dos filmes X e Pearl (ambos de 2022) e MaXXXine (2024).
Mais diverso do que se pode supor com a trajetória de Del Toro, não é a perspectiva aterrorizante seu maior interesse. Diferentemente do que vem sendo desde a versão de James Whale, em 1931, com Boris Karloff. No fundamento da história, está o drama de pai e filho, sintomático na infância do futuro cientista marcada pelo autoritarismo violento, literalmente, paterno. Há, mesmo, uma piscadela para as tragédias shakespearianas. Como nelas, o trauma aqui é cíclico e se repetirá no tratamento dado à criatura pelo criador, o que faz crer numa metáfora dos nossos tempos, inclusive no que se refere à preocupação com o uso da inteligência artificial. O diretor descarta tal abordagem. Prefere lembrar que, sim, vivemos num tempo de terror e intimidação e a tarefa mais urgente é continuar a compreender nossa humanidade. “Tudo está nos empurrando para a bipolaridade”.
Para Del Toro, o longa tenta mostrar personagens imperfeitas e o direito que se tem de permanecer imperfeito e de compreendermos uns aos outros, sob as circunstâncias mais opressivas. “Por isso, eu não temo tanto a IA, e sim a estupidez comum”. Em vários momentos da entrevista, o cineasta relembrou sua criação católica e como a religião pode funcionar como um instrumento tirânico, mesmo violento, que tem na ignorância terreno fértil para prosperar. Numa das sequências iniciais chaves de Frankenstein, o cientista apresenta seu intento na forma ainda de um modelo elementar para uma plateia de colegas. É imediatamente contestado e acusado de querer bancar deus, ao que ele replica não ser exclusivo dele o direito de conceber a vida.
A produção da Netflix é, sobretudo, um espetáculo visual de encher os olhos. A chance de comprovar isso na tela grande em salas brasileiras acontece entre 23 de outubro e 7 de novembro, quando o longa segue para o streaming. Embora com muitas adaptações, o diferencial desta parece caber bem a um programa familiar, conceito que, desde o início, estava presente na empreitada. “Vejo a tragédia do monstro e seu criador como um drama relacionado à família, pois o trauma de Victor (Frankenstein) garoto vai se refletir no sentimento de carência da criatura”, observa Del Toro.
Em certo momento, o ser se esconde numa casa de um clã de campesinos e se encanta pelo ambiente fraternal. Quem viu versões anteriores, se lembra da menina que por ser cega não temia as feições horrendas, mas era seduzida pelos modos e tom de voz ingênuos. Aqui um patriarca idoso faz as vezes da aceitação do diferente, do outro. “É o que precisamos exercitar”, finaliza.
Orlando Margarido é jornalista, crítico de cinema e artes plásticas e possui um blogue que leva o nome dele