Em uma fluidez ritmada pelo sublime, o Rio Han corre pela planície coreana da mesma forma que a literatura de Han Kang lança-se pelas questões essencialmente humanas do ser. No dia 5 de outubro de 2024, a escritora se tornou a primeira mulher asiática e sul-coreana a receber a láurea da Academia Sueca e tornar-se oficialmente vencedora do Prêmio Nobel de Literatura, “por sua intensa prosa poética que confronta traumas históricos e expõe a fragilidade da vida humana”, como justificou a Academia na ocasião.
Nascida na cidade de Gwangju, em 27 de novembro de 1970, Han Kang mudou-se para a capital Seul, ainda criança, e cresceu em meio à literatura - seu pai, Han Seung-Won, é professor e escritor. Depois de estudar literatura coreana na Universidade Yonsei, começou sua carreira como jornalista e sua jornada como escritora.
Em 2007, Kang publicou A vegetariana. A obra foi a vencedora do Man Booker International Prize em 2016. Traduzida para mais de 20 países, tornou-se um best-seller e foi adaptada para o cinema, onde também fez sucesso. A vegetariana chegou ao Brasil, em 2013, pela Devir Livraria, com tradução direta do coreano realizada por Yun Jung Im, atualmente professora de língua e literatura coreana na Universidade de São Paulo (USP). Em 2018, foi relançado pela Todavia, traduzido por Jae Hyung Woo.
Voraz em retratar o perturbado estado mental de uma mulher diante da sociedade que a oprime e isola, A vegetariana é uma obra de permanência crua, capaz de misturar o real e o fantástico em uma narrativa marcada por violências.
Dividido em três partes (“A vegetariana”, “A mancha mongólica” e “Árvores em chamas”), o livro começa com a narração em primeira pessoa do marido de Yeonghye, a protagonista da história. Profundamente incomodado com o fato de a esposa ter parado de consumir carne e estar agindo de maneira diferente, o leitor acompanha pouco a pouco a maneira evolutiva com que o estado mental da mulher passa por transformações profundas, assim como as razões para que isso ocorra.
Na segunda parte da obra, Han Kang se utiliza da terceira pessoa do singular para escrever do ponto de vista de outro homem: o cunhado de Yeonghye e, concluindo a história, troca de visão novamente, trazendo a perspectiva de Inhye, irmã de Yeonghye.
Através de uma escrita reveladora, a obra que primeiramente discute o isolamento social de uma mulher que opta por se tornar vegetariana, se mostra um texto firme sobre desejo, sexualidade, liberdade e, acima de tudo, loucura. Questionando a verdadeira sanidade, A vegetariana é um livro estranho, sem pudores.
Atos humanos foi o segundo livro de Kang publicado no Brasil, também pela Todavia, no ano de 2021. Com uma sensibilidade tremenda, mais uma vez a vencedora do Nobel de 2024 brinca com as vozes narrativas, desta vez optando por começar sua obra com a segunda pessoa do singular. Desafiando o leitor a ler um texto sem suposto dono, a dor perpassa por todas as páginas dessa obra essencialmente urgente sobre as vítimas do Massacre de Gwangju.
O fato ocorreu em maio de 1980, há 44 anos. Estudantes e trabalhadores ligados a sindicatos sul-coreanos foram às ruas da cidade de Gwangju lutar pela redemocratização do país. Após 18 anos em um regime ditatorial, a população se revoltou contra o general Chun Doo-Hwan, que acabara de dar um novo golpe e instaurar mais uma ditadura.
Com esse movimento histórico de revolução estudantil se constituindo personagem quase vivo em seu romance, Han faz ecoar as vozes daqueles jovens corajosos, que, sem nunca terem treinamento ou contato com armas, resolveram lutar até a morte pela democracia. Bruto na mesma medida que é belo, Atos humanos mostra a capacidade delicada da escritora em retratar a humanidade como plural e o humano singular. Repleto das dores dilacerantes da perda, Han Kang apresenta uma escrita poética na hora de retratar personagens fictícios de uma luta real.
Debruçando-se ainda mais em sua prosa poética, O livro branco foi o terceiro e mais recente romance de Kang traduzido no Brasil, também pela Editora Todavia, em 2023. O mais pessoal até então. Kang volta seu olhar para dentro de si e imagina uma lista de objetos brancos como forma de abrir a porta da memória e buscar uma cura para dores familiares. Antes de seu nascimento, os pais perderam a filha recém-nascida e a dor do luto perdurou entre os filhos seguintes. Han Kang, sendo a primeira menina a nascer, recebeu o mesmo nome da falecida irmã e escreve sobre as sensações de talvez estar a viver uma vida que deveria pertencer a outra pessoa.
“Eu queria mesmo escrever este livro e senti que o processo traria alguma mudança. Era algo de que eu precisava, como uma pomada branca para passar num machucado, como uma gaze branca para enfaixá-lo”, escreve Han Kang logo nas primeiras páginas do livro.
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