I.
Rubens Ricupero tem uma relação especial com o ensino da História. Sem ser historiador de formação, ministrou aulas de teoria das relações internacionais e de história diplomática do Brasil no Instituto Rio Branco e na Universidade de Brasília. Escreveu livros e artigos sobre momentos importantes da história da diplomacia brasileira e marcou a formação das novas gerações com uma obra de fôlego que insere a história diplomática brasileira em um panorama mais amplo de desenvolvimento nacional (A Diplomacia na Construção do Brasil (1750-2016).
Ricupero também tem uma relação especial com uma das mais importantes efemérides de 2024: os 30 anos do Plano Real. Ricupero viveu seu momento heroico na condução da economia brasileira na transição para a nova moeda e sua hora das trevas no episódio da parabólica que encerrou sua passagem pelo Ministério da Fazenda.
Em vista do interesse que o episódio causou à época, a edição física do livro coloca essa questão à vista do leitor. Ricupero “enfrenta com franqueza o episódio da parabólica”, nos diz a quarta capa. Foram os seis meses mais “públicos” de sua vida, esmiuçados no livro inclusive com indicação de literatura de apoio.
O livro, porém, descreve uma vida muito mais interessante do que uma gafe. Para redigir suas Memórias, Ricupero inspira-se nos cadernos que sua mãe usava para anotar a história da família. Fonte primária importante para situar o pequeno Rubens na São Paulo dos anos 1930 e 1940, inserido numa classe média urbana de forte identidade italiana.
As Memórias não se confundem, porém, com os caderninhos de Dona Assumpta Jovine a quem o livro é dedicado. O tom não é o de crônica. Ricupero procura equilibrar análise política, anedotas, impressões pessoais e explicações de contexto para contar a história de sua vida, tendo a História do Brasil e do mundo sempre ao alcance do olhar.
II.
Conforme a narrativa se desenvolve, é possível notar uma consciência de origem muito clara. Filho de um comerciante do Bairro do Brás, Ricupero tem clareza das suas origens humildes, por sinal muito diversa das origens aristocráticas associadas aos integrantes da carreira diplomática.
Outro traço marcante é o catolicismo. Em diversos momentos das Memórias, Ricupero volta à religião em busca de força, de inspiração ou apenas para explicar decisões que tomou ao longo da vida. Essa aproximação com o catolicismo, em diálogo com a sua consciência de origem, também formata sua consciência social.
A essa consciência de origem e a essa religiosidade, Ricupero adiciona também uma inclinação à introspecção e à leitura. Mais do que listar peripécias de menino, o autor fala com alegria e profundidade dos livros que leu, ainda na infância e na juventude, de tal sorte que o itinerário intelectual quase adquire dimensão editorial própria. Merece destaque o capítulo sobre a Autobiografia de Benjamin Franklin.
É a partir da leitura que o menino Rubens vai se transformando em embaixador Ricupero. Devota grande amor ao estudo individual, um autodidatismo voltado para o aprimoramento pessoal. Essa predisposição à reflexão individual é apontada também como causa da crise vocacional que viveu na mocidade e que só se resolveria ao ser aprovado no Itamaraty.
Ricupero cursou Direito no Largo de São Francisco. Não se animou com as letras jurídicas. Ainda que aborrecido, seguiu com suas leituras particulares, até que um amigo foi aprovado para o concurso do Itamaraty de 1957. Do Rio, o amigo remeteu-lhe material de estudo. Ricupero animou-se.
Submeteu-se ao concurso de 1958. Sua narrativa sobre o concurso puxa a memória a partir das correspondências que mandou para sua mãe e tem como ápice a famosa prova de cultura que era aplicada por Guimarães Rosa. Passou em primeiro lugar. Formou-se em primeiro lugar. Foi também o orador da turma. No velho Itamaraty, essa era a senha para uma carreira brilhante.
III.
Nesse ponto do livro, Ricupero mostra o conflito de gerações que havia no Itamaraty impactado pelas mudanças do pós-guerra. A geração mais antiga ainda focava o entorno imediato do Brasil, concentrada em pormenores da história diplomática. Ricupero os descreve como indivíduos que “carregavam nos ombros a história do Brasil como se fosse o adereço pessoal”.
A nova geração, que ele descreve como cosmopolita, era composta de diplomatas que respiravam o ritmo dos tempos e circulavam nas sedes das organizações multilaterais e nas grandes capitais dos países desenvolvidos, o célebre circuito Elizabeth Arden.
Trata-se de um debate estrutural sobre o sentido da política externa brasileira, sobre o papel do Brasil no mundo, que é relevante até hoje quando observamos o debate entre uma política externa mais alinhada com o Ocidente e uma política externa mais solidária aos interesses de países em desenvolvimento.
A experiência pessoal do Ricupero em sua carreira diplomática teve um pouco de tudo. Foi assessor de ministros, como Afonso Arinos e San Thiago Dantas, e de presidentes como Jânio Quadros, Tancredo Neves e José Sarney. Por muitos anos, trabalhou com promoção cultural. Também precisou decorar todas as datas relevantes das relações do Brasil com alguns vizinhos da América do Sul. Mais maduro, enfrentou negociações multilaterais em cenário adverso.
Trabalhar muito perto dos políticos traz a clara vantagem de testemunhar a história sendo feita. Dois são os riscos imediatos: não entender que o diplomata é apenas uma testemunha, e não um agente da história política, e deixar a vida pessoal ser sacrificada por questões políticas.
Os cônjuges e os filhos dos diplomatas carregam um fardo invisível, que parece dissolvido no glamour das grandes capitais, mas que oculta dificuldades emocionais, profissionais e pessoais de toda ordem, que por mais que possam ser recompensadas, jamais serão recuperadas. Ricupero se reporta diversas vezes à esposa, Marisa, a quem é muito devotado, e aos quatro filhos, todos nascidos no exterior, para mostrar um lado menos romântico da vida diplomática.
Em 1963, Ricupero começa seu primeiro ciclo no exterior. Viveu em três cidades, Viena, Buenos Aires e Quito. Ainda em Viena, foi promovido a segundo-secretário em meio a questionários burocráticos que pretendiam identificar subversivos. Ricupero não foi cassado, mas acredita ter sido marcado. Tendo trabalhado com temas políticos em Brasília antes do golpe, só lhe convidavam a fazer promoção cultural no exterior. Em meio ao desgosto com o ambiente do Brasil pós-AI-5, Ricupero emendou um terceiro posto, decisão incomum naquela época, de onde partiu de volta para Brasília em 1971.
Promovido a primeiro-secretário, com quase 13 anos de carreira, Ricupero sonha em trabalhar no Departamento de América do Sul. Vai para o Departamento Cultural. Passa três anos tentando mudar de área. Sua carreira, embora íntegra, estava longe de justificar os louros dos primeiros anos. Em recente, em palestra no Itamaraty, comentou que até hoje tem pesadelos com o regresso a Brasília e a busca por uma vaga para trabalhar.
Quando consegue enfim sair de Brasília, vai para Washington. O ano é 1974, mas Ricupero não fez telegramas sobre Watergate porque mais uma vez foi chefiar o setor cultural. A mudança dos ventos em Brasília, porém, começa a mudar a sua sorte. É transferido para área política da Embaixada e logo é chamado de volta a Brasília.
A volta ao Brasil inspira um interessante capítulo sobre as situações mais próximas de conflito armado com as quais se deparou (“Afinal, o que fazem os diplomatas”). Tinha 45 anos quando chegou a embaixador. Chegar cedo ao topo era um grande feito naquela época, e seria impensável, talvez impossível, nos dias de hoje.
Com a redemocratização, Ricupero assessora Tancredo em sua viagem presidencial e trabalha com Sarney na presidência, mas decide partir para o exterior durante a Constituinte. Já estava no Brasil há 10 anos, já chegara ao topo da carreira, mas ainda não tivera a oportunidade de chefiar uma missão diplomática no exterior. É nomeado para representar o Brasil nas organizações internacionais sediadas em Genebra, posto de intenso trabalho negociador.
Ao sair de Genebra, Ricupero vai para Washington. Conhecedor do contexto das negociações comerciais em Genebra e do contexto das negociações financeiras em Washington, Ricupero era a pessoa que melhor conhecia o estado da arte das relações econômicas do Brasil com o mundo enquanto a economia brasileira parecia dissolver diante do fracasso de repetidos planos econômicos.
Itamar Franco o quis para Ministro da Fazenda, mas a volta ao Brasil se deu por outra razão.
IV.
Em 1992, o Brasil se preparava para sediar a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Ricupero trabalhou num esforço coletivo para garantir que a conferência produzisse consensos duradouros. Coube a Ricupero a tarefa de assegurar bons resultados ao capítulo financeiro da Agenda 21.
O sucesso na Rio-92 colocou Ricupero na lista de ministeriáveis de Itamar. Embora muitos políticos tenham, ao longo da História do Brasil, assumido funções diplomáticas, é mais raro (e perigoso) o caminho contrário. O político tem uma base eleitoral e uma base econômica, de onde provém a sua força política, traduzida muitas vezes da forma de votos para si ou para outrem.
Funcionários públicos não têm votos. Quando um funcionário público assume uma função política, alguém perguntará o que estará ele fazendo ali. Rubens Ricupero reflete sobre os sentidos dos convites que recebeu, mas aceita a missão tendo no horizonte o propósito maior de fazer as coisas melhorarem. Aceitou ser ministro da Amazônia, pasta criada às pressas, e acumulou em seguida a pasta de Meio Ambiente.
Quando FHC sai da Fazenda para disputar a presidência, Ricupero assume o ministério para mediar a relação entre a equipe econômica e o presidente Itamar. No fundo, era um trabalho clássico de diplomacia pública: conquistar corações e mentes do povo brasileiro (e do presidente Itamar) para o assegurar o sucesso do Plano Real.
Ricupero cai quando ocorre uma falha na comunicação com o povo. Ou melhor, quando a comunicação se torna clara demais, sincera demais, sem filtro demais, ou talvez pretensiosa demais. A crise da parabólica não poderia prejudicar o plano. Mesmo contra a vontade inicial de Itamar, Ricupero caiu. Recebido de volta pelo Itamaraty, foi enviado para ser embaixador em Roma.
Após brevíssimo período em Roma, recebeu um convite do secretário-geral da ONU para ocupar a função de secretário-geral da Conferência das Nações Unidas para Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD). Ricupero não sabe como chegaram ao seu nome, mas aceita o convite. Em vez de tirar uma licença, preferiu pendurar as chuteiras. Aos 58 anos, aposentou-se.
V.
Visto da distância de hoje, o ato de Ricupero de pedir aposentadoria tão precocemente parece quase uma reação emocional ao escândalo da parabólica. Diplomatas têm pouco estímulo para se aposentar quando estão no auge da carreira. Quando alguém toma uma medida como essa, as razões do ato inquietam os que ficam.
Queimou os navios, saiu para nunca mais voltar. De fato, não voltou para a diplomacia brasileira. Ao encerrar seu mandato na UNCTAD, retornou ao Brasil e esse retorno é contado quase em tom de frustração. O Bairro do Brás desfigurado, a cidade de São Paulo desfigurada. Não foi um retorno marcado pelo reconhecimento, mas pelo estranhamento.
Os últimos capítulos de suas Memórias, no entanto, mostram uma personalidade que, aos 87 anos, ainda está atenta ao que se passa em todos os níveis da vida brasileira. Mostra uma disposição intelectual invejável. Mostra também uma maturidade de espírito, refletindo com doçura e elegância sobre a perspectiva da própria finitude.
O episódio da parabólica quase desaparece diante de um sobrevoo de nove décadas de história política, econômica e intelectual do Brasil. O que salta das páginas é o relato maduro, de um homem que conheceu o que o Brasil produziu de melhor, dentro e fora da vida diplomática, e que reconstrói a sua trajetória com a clareza de quem dá uma aula para a qual se preparou a vida inteira.
Bruno Graça Simões, 39 anos, é diplomata