Rio de Janeiro celebra o livro e sua história

Antiga capital do Brasil, o Rio de Janeiro é a primeira cidade em língua portuguesa a conquistar o título de Capital Mundial do Livro pela Unesco

Fundado em 1837, por imigrantes lusos, o Real Gabinete Português de Leitura, possui a maior e mais valiosa biblioteca de obras de autores portugueses fora de Portugal
Fundado em 1837, por imigrantes lusos, o Real Gabinete Português de Leitura, possui a maior e mais valiosa biblioteca de obras de autores portugueses fora de Portugal

No final do ano passado, o Brasil recebeu uma notícia surpreendente, que quase passou despercebida. Depois de uma seleção rigorosa, com várias etapas, o Rio de Janeiro foi escolhido como a Capital Mundial do Livro de 2025, título concedido desde 2001 pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) a cidades que demonstrem – e comprovem – uma vocação literária ímpar. 

É a primeira cidade de língua portuguesa a receber a honraria, sucedendo Estrasburgo, na França, que foi a Capital Mundial do Livro em 2024 e tem longa tradição em literatura infantil. O Rio de Janeiro, de uma trajetória cultural muito fixada na história da música, especialmente o samba; nas festas populares, com o Carnaval; e nas produções audiovisuais, com o cinema e as novelas, é agora reconhecida mundialmente por sua conexão com a literatura. Para listar apenas um dos motivos — e ao longo desta reportagem lembraremos todos os outros — que justificam a escolha do Rio, esta é a cidade onde nasceu, se inspirou e sempre viveu Machado de Assis, considerado por muitos o maior escritor brasileiro de todos os tempos.

Machado nasceu na Ladeira do Livramento, morou em São Cristóvão, trabalhou na Praça Tiradentes, vivia na Livraria Garnier, no Centro, fabulou sobre os bairros de Botafogo, Lapa, Andaraí, Santa Teresa, Tijuca, Catumbi… Fundou a Academia Brasileira de Letras no Castelo, morreu no Cosme Velho. Machado pouquíssimas vezes saiu do Rio. Viveu na cidade durante os seus 69 anos. Foi a partir do Rio que esse carioca levou a literatura brasileira para o mundo (e continua levando, haja visto todo o hype em torno do autor, quando a americana Courtney Henning descobriu e viralizou o romance Memórias póstumas de Brás Cubas em 2024). “O tempo é um químico invisível”, como diria o autor no livro Iaiá Garcia.

Como prêmio pelo reconhecimento à sua verve literária, o título dará ao Rio um calendário especial de eventos e ações estruturais ligado ao livro e à leitura ao longo de 2025. A programação começa com o lançamento da Bienal do Livro Rio 2025, no Dia Mundial do Livro, dia 23 de abril. Serão feiras, encontros, editais de fomento a escritores, reformas de bibliotecas, ações turísticas, comerciais e todo tipo de celebração ao universo editorial. 

É o que prometem os articuladores da campanha vitoriosa, representados pelo Secretário de Cultura do Rio, Lucas Padilha: “A primeira coisa que o carioca ganha tendo o Rio como Capital Mundial do Livro é a compreensão de que ele vive num dos lugares mais narrados da história da humanidade. Tem um valor nisso. A autoestima, a sua formação enquanto leitor, enquanto povo que carrega a síntese da identidade nacional através da literatura. Todo brasileiro e toda pessoa que vive dentro da lusofonia tem acesso a uma produção de histórias que se passa no Rio. Além de ser paisagem e personagem de grandes obras, o Rio também é a sede de grandes lugares de preservação da história do livro. O Rio tem uma das maiores bibliotecas do mundo, a Biblioteca Nacional, que tem uma história marcante, afinal o Brasil comprou livros para se fazer país”, relembra Padilha, citando uma das primeiras medidas tomadas por Dom João VI assim que transferiu a Corte Portuguesa para o Rio de Janeiro, em 1808, o que começou a dar à colônia os traços de um país: a fundação da Biblioteca Nacional. 

Responsável pela Bienal do Livro do Rio há 40 anos, o Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL) também participou ativamente da candidatura carioca, bolando projetos como a “Academia Editorial Júnior”, um curso para a formação de editores focado em universitários em situação de vulnerabilidade. Para o presidente do sindicato, Dante Cid, a vitória do Rio de Janeiro abre portas para todo o setor cultural brasileiro. “Este título deve ser comemorado por todos que vivem e sonham pela cultura brasileira. Vamos unir editoras, autores, livrarias, governo e todos os leitores para mostrar a importância dos livros para o desenvolvimento da sociedade”, destacou Cid.

Para ganhar a honraria, a prefeitura do Rio fez uma série de promessas à Unesco para promover o livro e a leitura na cidade, de forma que o evento não fosse apenas um espetáculo comercial, mas sobretudo, uma política pública. Uma delas foi a ampliação das bibliotecas públicas. No Rio de Janeiro, existe uma biblioteca pública para cada 418 mil pessoas. A média nacional é de um equipamento para cada 30 mil habitantes – em termos de comparação, a média dos Estados Unidos é de uma biblioteca para cada 19 mil pessoas. 

“Nós temos as Bibliotecas do Amanhã, que são 19, e elas já estão todas reformadas. Está no nosso planejamento a ampliação dos horários de leitura para que o trabalhador consiga pegar a biblioteca aberta depois de sair do trabalho. Além disso, cada biblioteca da rede municipal vai ser adotada por uma embaixada, que vai organizar eventos temáticos na unidade, atraindo mais gente para as bibliotecas. Mas há outras formas de ampliar o acesso ao livro e à leitura”, argumentou o secretário. “Estamos conversando bastante com a indústria do audiolivro. Ano passado o Brasil tinha apenas 1.200 audiolivros, isso precisa aumentar muito mais. Vamos organizar uma política pública de fomento ao audiolivro. O acesso digital ao livro é uma estratégia para incluir a indústria audiovisual na rede de livros e leitura. O Rio já é a capital do audiovisual, isso nos interessa muito. Queremos abrir o código-fonte. O carioca vai ganhar livros para ler e para ouvir. Queremos viabilizar a rede de Clínicas de Família como salas de leitura. Enquanto o paciente espera ser atendido, ele pode pegar um livro emprestado. Também queremos levar o livro para o BRT, que tem ar-condicionado. A gente tem trabalhado para levantar mais do que a candidatura promete”, afirmou Padilha.

A lista de ações da prefeitura é extensa, e inclui cursos de formação de livreiros, buquinistas, editais para fomentar pequenas, médias e grandes feiras literárias. “A gente precisa formar leitores, formar livreiros, formar pessoas para o mercado audiovisual do livro. A gente precisa ter um grande pacto para a formação desse ecossistema do livro e leitura. Também vamos reeditar livros que estavam esgotados há décadas, como por exemplo o Rio em prosa e verso, de Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira. Esse projeto é a prioridade do ano na Secretaria Municipal de Cultura”, confirma o secretário. Paranaense, sua introdução no mundo da leitura se deu com uma livreira, em Londrina, que indicou a leitura de Noites brancas, de Dostoiévski, quando Lucas tinha apenas 12 anos de idade. “Aquilo mudou a minha vida para sempre. Eu não tenho dúvidas de que os livros mudam a sociedade inteira. O livro é o mínimo múltiplo comum de todas as artes. O filme Ainda estou aqui [que deu ao Brasil o primeiro Oscar, na categoria Melhor Filme Internacional] começa com um livro. As pesquisas para os enredos das escolas de samba começam com os livros. Tudo começa com os livros.” 

A nova Capital Mundial do Livro também entra para uma rede de cooperação internacional com as cidades escolhidas nos anos anteriores, o que pode expandir muito a presença de autores brasileiros em outros países bem como estreitar laços de outros autores com o Brasil, como espera a secretária executiva da Capital Mundial do Livro 2025, Maria Isabel Werneck. Ela esteve em Estrasburgo para acompanhar a transição de uma Capital Mundial do Livro para a outra e entender o impacto do legado de um título como este. 

“O grande objetivo deste projeto é a ampliação do livro e da leitura de maneira que deixe um legado em cada país. Transformar o contexto literário de uma maneira comprovada, de novas práticas e políticas públicas de livro e leitura. Tive a chance de assistir várias ações locais em bibliotecas tanto em Estrasburgo quanto em cidades pequenas próximas para suas comunidades. É imediata a ampliação do nível de leitores em cada cidade. Outra coisa interessante é que a cidade que precedeu Estrasburgo foi Acra, capital de Gana, uma cidade africana que pôde ensinar e repassar a uma cidade europeia toda a sua experiência em ter sido a Capital Mundial do Livro, com toda sua riqueza e diversidade, e isso agora chega até nós. E nós vamos entregar a Rabat, capital do Marrocos, que será a próxima”, avalia Maria Isabel Werneck. “Acra conseguiu intensificar muito suas ações relacionadas à literatura infantil, mesmo em condições econômicas mais precárias. Esse é o objetivo do projeto: fazer com que essas experiências de ampliação de leitura se multipliquem”.

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