A redenção do Patinho Feio

Nos 150 anos de morte de Hans Christian Andersen, o legado do homem que escreveu para crianças com a alma e o olhar machucado de um adulto, cuja autobiografia permeia muitas de suas narrativas

Num reino encantado, onde cisnes falam, sereias sangram e reis andam nus, a magia dos contos de fadas confunde-se com a dor e a superação.

O legado de um homem que escreveu para crianças com a alma e o olhar machucado de um adulto. O dinamarquês Hans Christian Andersen. 220 anos do seu nascimento e 150 de sua morte completam-se neste ano. Andersen não criou apenas contos de fadas. Ele registrou a própria solidão e rejeição. O componente autobiográfico apresenta-se em muitas narrativas, especialmente em “O patinho feio” e “O soldadinho de chumbo”, embora todas abordem problemas humanos universais.

Ao mesmo tempo, o autor dinamarquês aproveitou as histórias para manifestar sua profunda fé e esperança. Pelo menos para os que resistem ao sofrimento e à dor, como ele próprio fazia muito bem. Excelente exemplo disso é a tortura experimentada por Karen no conto “Sapatinhos vermelhos”. Uma plebeia cobiça com avidez o par de sapatos e consegue obtê-los. Mas com uma maldição: ter que dançar sem descanso, até à morte. Método para desfazer o feitiço: cortar os pés.

Nascido em 2 de abril de 1805, em Odense, Dinamarca, Andersen criou uma obra que vai muito além da fantasia de príncipes e princesas, de bruxas e fadas. As personagens são gente do povo, que sofre e luta para viver. Que trapaceia e se arrepende, não sem antes pagar caro pelos pecados. Seus principais contos registram as agruras que passou durante a infância e também as decepções ao longo da vida. A maioria traz um tom mais sombrio do que o desejado em histórias desse gênero, tanto que poucas delas seduziram a indústria de entretenimento, como a Disney. Frozen, o megassucesso, que mostra uma menina e seu amigo lutando para fugir de um reino gelado, é baseado num conto de Andersen, “A rainha da neve”. Na adaptação, a história foi bastante suavizada. No original, o menino Kay mira um espelho que triplica a maldade em seu coração, e se mete em apuros fenomenais.

O estilo de Andersen não era comum em nenhum lugar da Europa, acostumada com os contos de Perrault e dos Irmãos Grimm. Provenientes de famílias nobres, estes criaram histórias baseadas no folclore local, mas que as enfeitaram, entregando-nos às princesas que a Disney tanto ama, e respeitando, segundo os leitores da época, as lições de moral necessárias às crianças da burguesia. Eles eram e são mais “palatáveis”. Embora se inspirasse no folclore, Andersen inventou a maior parte de seus contos, como se fossem fábulas modernas. Não à toa, atualmente é admirado por crianças, mas também por adultos que o consideram um clássico. Também não é por acaso que a data do seu nascimento, 2 de abril, tornou-se o Dia Internacional do Livro Infantil. Sua escrita é considerada tão original, que saiu da esfera estritamente infantil: não é incomum grandes escritores citarem os contos de Andersen em seus textos, como Thomas Mann em O guarda-vestidos e Doutor Fausto. O irlandês James Joyce também chegou a afirmar que, neste mundo, não existia um escritor como o poeta da Dinamarca.

Miséria

Filho de um sapateiro e de uma lavadeira analfabeta, Andersen cresceu cercado pela miséria, mas também pelas histórias populares e fantasias que ouvia em casa. Nos primeiros anos de sua vida, teve pouco acesso à educação, mas seu pai o ajudou com a leitura de textos escritos e a mãe contava histórias envolvendo o folclore do país. Aos 11 anos, perdeu o pai, e aos 14 – após a apresentação de uma companhia de teatro que se instalou em sua cidade, partiu sozinho para Copenhague com um sonho: ser ator. Tímido, desajeitado e inexperiente, demorou a encontrar quem lhe desse emprego. Atraído pelo teatro, insistia em escrever peças. Conseguiu uma bolsa de estudos, na Escola de Slagelse. Alto, magro e desajeitado, sentia-se constrangido entre os colegas bem mais jovens e muito menores que ele.

Devido às características físicas e à timidez, seus contemporâneos o consideravam excêntrico. Um autêntico patinho feio, cuja história ele registraria anos depois. Charles Dickens, que foi seu anfitrião por um tempo, acabou se afastando dele. Ferido, Andersen transformou todos esses ressentimentos em alegorias literárias. O dinamarquês tinha 22 anos quando terminou os estudos. Para sair de uma crise financeira escreveu algumas histórias infantis Os contos “Companheiros de viagem”, “O isqueiro mágico”, “O pequeno Claus e o grande Claus”, “A princesa e a ervilha” e “As flores da pequena Ida” – hoje aclamadas por públicos de diversas idades – foram malrecebidos.

Os críticos os descreveram como sendo fracos e com nenhuma moral para passar aos seus leitores. Na verdade, durante toda a vida Andersen sofreu com as críticas que o deprimiam e irritavam. Somente com o passar do tempo, foi reconhecido e tornou-se um símbolo da Dinamarca. Hoje, devido à sua grandiosidade, é tido como um dos únicos autores que souberam retratar o espírito dinamarquês, possuindo influência sobre a obra de outros autores conterrâneos, a exemplo de Bernhard Severin, Carsten Hauch, e também no sueco August Strindberg, que se considerava um discípulo de Andersen. Na autobiografia The fairy tale of my life – obra não traduzida no Brasil – Andersen revela o motivo de poder relacionar a sua vida às suas histórias. Demonstra, principalmente, a fé que o fazia aguentar as muitas intempéries que atravessou.

“Minha vida é um bonito conto de fadas, cheia de acontecimentos maravilhosos e felizes. Mesmo se, quando eu era um menino e vivia num mundo pobre e desamparado, uma boa fada me encontrasse e dissesse ‘Escolha seu próprio caminho na vida e o objetivo que quer alcançar, e depois, de acordo com o desenvolvimento da sua mente, e como a razão requer, vou orientá-lo e defendê-lo’, meu destino não poderia ter sido dirigido de modo mais sábio e feliz. A história de minha vida vai dizer ao mundo o que ela diz a mim: – Há um Deus amoroso, que dirige todas as coisas para melhor.”

Atualidade

Se forem lidos nas versões originais, os contos de Andersen podem assustar os leitores, principalmente crianças. Apesar da beleza e criatividade das histórias, que trazem um ar melancólico e finais redentores – mas nem tanto – os contos de Andersen abordam provação, muita provação. Pode-se afirmar que as narrativas do autor são lúdicas e provocam encantamento, mas também uma dureza em relação aos personagens.

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