Trinta e seis anos após a morte de Paulo Leminski, muito se tem escrito sobre sua poesia, mas bem menos sobre sua prosa ficcional, que compreende cinco volumes: Catatau (1975), Agora é que são elas (1984), Metaformose (1994) e Gozo fabuloso (2004), os dois últimos em edições póstumas, sem esquecer o infantojuvenil Guerra dentro da gente (1988). Dado o caráter leminskiano de poeta-pensador, caberia relacionar também os ensaios de Anseios crípticos (1986) e os ensaios-biográficos Cruz e Sousa – o negro branco (1983), Bashô – a lágrima do peixe (1983), Jesus A.C. (1984) e Trótski – a paixão segundo a revolução (1986), bem como as cartas enviadas ao poeta Régis Bonvicino, reunidas em Uma carta uma brasa através (1992), ampliadas posteriormente em Envie meu dicionário – cartas e alguma crítica (1999).
Em vida, o poeta curitibano conheceu a fama, tanto quanto um poeta pode ser famoso. A extraordinária difusão de sua obra poética ganhou forte impulso por conta das composições musicais próprias ou parcerias com grandes compositores populares (Caetano Veloso, Moraes Moreira, Guilherme Arantes, Itamar Assumpção, entre outros), da intensa atividade jornalística, quase sempre em tom polêmico, em jornais e revistas como Folha de S.Paulo, O Estado de S. Paulo, revista Veja etc., e de suas incursões pela televisão (foi redator e apresentou um quadro literário no Jornal de Vanguarda, da TV Bandeirantes, teve a composição Promessas demais, interpretada por Ney Matogrosso, como tema da novela Paraíso, e compôs com Guilherme Arantes a trilha dos especiais Pirlimpimpim e Pirlimpimpim 2, três grandes sucessos de público veiculados pela Rede Globo).
Além disso, Leminski gozou de grande prestígio intelectual. Poliglota (tradutor de obras em latim, grego, inglês, francês e japonês), detentor de vastos conhecimentos literários, bem-equipado teoricamente e capaz de um pensamento ágil e surpreendente sobre assuntos diversos (linguística, filosofia, política, semiótica), tinha livre interlocução com grandes poetas e intelectuais da segunda metade do século XX, como Augusto e Haroldo de Campos, Décio Pignatari, Affonso Ávila, Boris Schnaiderman, Jerusa Pires Ferreira, além de companheiros de sua geração, entre eles Antônio Risério, Gilberto Gil, Waly Salomão, Julio Plaza, Antônio Cícero e Alice Ruiz, sua esposa por quase 20 anos. A par da reconhecida erudição, cultivava hábitos boêmios e transgressores, tanto no plano artístico quanto comportamental. Essa era uma grande diferença: ao mesmo tempo em que era capaz de ler o Satyricon, de Petrônio, no original em latim, discorria com indisfarçável prazer sobre os achados poéticos e melódicos das composições de Bob Dylan ou dos Rolling Stones.
O breve arrazoado introdutório, ainda que bem-conhecido pelos estudiosos de sua obra, parece-me razoável para abrir algumas picadas que delimitem um rápido passeio pela selva sígnica da prosa leminskiana (bem menos lida), a começar pelo Catatau, visto por muitos como seu projeto criativo mais ambicioso. Os dois polos constitutivos da personalidade intelectual do poeta (erudito e desregrado, apolíneo e dionisíaco, se assim quisermos) se mostram claramente em seu primeiro livro, que lhe garantiu imediato prestígio e poucos leitores. Não à toa, o personagem central trata-se de ninguém menos que René Descartes (ou Renatus Cartesius, na forma latinizada), o pai do racionalismo moderno, deslocado para o Recife do período de domínio holandês (século XVII), tentando entender a caótica realidade dos trópicos (ao menos para a mente racionalista europeia), munido de uma luneta e um cachimbo de maconha.
Catatau: radicalmente inovador
A partir de algumas pistas deixadas pelo próprio autor na segunda edição do livro (1989), pode-se presumir uma sinopse bem simples: sentado sob uma árvore no palácio de Vrijburg, uma das residências de Maurício de Nassau, governador da colônia neerlandesa no Brasil, Cartesio (outra grafia adotada) não consegue compreender o mundo dos trópicos, com suas exuberantes florestas, feras “exóticas” e nativos “selvagens”. Atacado por pensamentos desconexos, espera alguém que lhe traga alguma explicação: Artiscewsky, alusão ao militar polonês Krzysztof Arciszewski, que serviu aos holandeses no Brasil. Há, porém, um terceiro personagem: Occam, baseado na figura histórica do teólogo inglês Guilherme de Ockham. Mas o Occam de Leminski é uma espécie de símile do malin génie, que atormentava o René Descartes real: toda vez que o “gênio maligno” aparece nas páginas do Catatau, os pensamentos cartesianos se confundem ainda mais e o texto, literalmente, enlouquece. Então, tudo se complica. Os personagens e elementos que poderiam servir como pilares de um romance histórico, na verdade, despavimentam o terreno movediço de uma antinarrativa, paródica, carnavalesca e metalinguística.
Conforme as pistas lançadas pelo autor no texto “Quinze Pontos nos Iis”, 14 anos após a publicação da primeira edição, “o Catatau é um caso textual de ‘possessão diabólica’: um texto ‘clássico’ é possuído por um monstro ‘de vanguarda’” e Occam se trata de “um princípio de perturbação da ordem, um agente subversivo, uma estática: o monstro é a personificação (prosopopeia) do conceito cibernético de ruído.” (...) “Occam é um monstro que habita as profundezas do Loch Ness do texto, um princípio de incerteza e erro; (...) suspeito ter criado o primeiro personagem puramente semiótico, abstrato, da ficção brasileira”, anotou Leminski.
Catatau não tem enredo, fio narrativo, desenvolvimento de personagens ou passagens de tempo e espaço bem-delimitadas – características que costumam habitar a estrutura de quase todo romance tradicional. Pode-se dizer que ele se passa na antiga Mauritsstad (a Cidade Maurícia), nas entranhas da atual Recife, simplesmente por Leminski ali ter colocado, hipoteticamente, o personagem Cartesio. Porém, o “romance-ideia”, como o próprio autor o classificou, se passa puramente na cabeça do personagem principal, ou melhor: o livro é o jorro de pensamento, perplexidade e loucura de René Descartes, estruturado em um único parágrafo de 213 páginas, na edição original. Na intrincada floresta de signos verbais, há passagens inteiras em holandês e latim (trechos menores), resquícios de idiomas nativos, neologismos, palavras-montagem, paradoxos filosóficos, recorrências históricas, enigmas teológicos e uma ampla gama de provérbios populares, deturpados, deformados, transfigurados.
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