Que fim levou o Jorge Amado de Gabriela?

Poucas vezes um escritor terá conseguido tornar-se, tanto como ele, o espelho e o retrato de um povo inteiro

Desejo, liberdade e resistência

Jorge Amado ocupa um lugar central na literatura brasileira do século XX. Foi o responsável por construir um romance popular e acessível. Conseguiu dar visibilidade a um Brasil que muitas vezes era retratado de forma marginalizada.

O povo do cacau ou das ruas de cidades baianas é constante em sua temática. Coronéis, pescadores, pais de santo, meretrizes e outros tipos se mesclam em todas as histórias. Porém, uma das características mais marcantes da sua obra é o protagonismo das mulheres.

Fortes, sensuais e cheias de atitude, elas se tornaram uma espécie de heroínas da literatura brasileira. Da brejeira Gabriela à encantadora Dona Flor, personificam desejo, liberdade e resistência. São protagonistas que desafiam normas sociais, expressam suas vontades e possuem grande autonomia.

A obra de Jorge Amado, certamente, mais do que qualquer outra no Brasil, contribuiu para a construção de imagens femininas poderosas e autênticas. Suas personagens marcaram gerações, inspirando discussões sobre liberdade, sexualidade e papel da mulher na sociedade.

Figuras como Gabriela (Gabriela, cravo e canela), Tieta (Tieta do Agreste) e Dona Flor (Dona Flor e seus dois maridos) são retratadas como sensuais e livres, frequentemente desafiando as convenções morais da sociedade patriarcal. Já mulheres como Tereza Batista (Tereza Batista cansada de guerra), que é vendida ainda criança pelos pais a um fazendeiro pedófilo e se torna prostituta no interior baiano, ostenta uma personalidade forte, enfrentando adversidades e resistindo à opressão masculina.

​​O autor também dá espaço às mulheres negras e de classes mais baixas, como Quitéria (Tenda dos milagres), abordando sua marginalização. Ana Mercedes (Suor), por sua vez, é uma trabalhadora determinada, vivendo em condições precárias, mas que não se abate. Ela representa a luta das mulheres pobres da Bahia contra a miséria e a exploração.

Nesse “pacote” multirracial e cultural, temos ainda a adolescente Dora, uma menina-de-rua sensível e melancólica, que expõe a extrema fragilidade das crianças abandonadas pela sociedade em Capitães da Areia. No seu caso, há também o primeiro estupro registrado na literatura, ainda nos anos 1930. Jorge foi pioneiro na problematização da violência explícita contra as mulheres e as meninas pobres.

As protagonistas femininas de Jorge Amado, portanto, são complexas, misturando força, desejo e luta contra o preconceito, e muita polêmica em torno delas.

Até os anos 1970, o autor baiano era alvo de uma campanha cerrada dos conservadores, que não deixavam suas filhas terem acesso às obras por considerarem sua escrita “pornográfica”. A burguesia, portanto, via na independência e sensualidade amadianas um risco à moral das moças da sociedade.

Paradoxalmente, alguns intelectuais também começaram a questionar a liberdade das mulheres de seus romances. Apesar de celebradas por seu poder, e por terem refletido as realidades sociais da sua época, evidenciando as contradições e injustiças da sociedade brasileira, elas ainda são até os dias atuais alvos de polêmica: alguns críticos e feministas as apontam como excessivamente erotizadas.

Autores como Lélia Gonzalez questionaram a forma como Jorge Amado reforça o estereótipo da “mulata desejável”, especialmente em Gabriela. A sua opinião era de que essa visão acentua o estereótipo e o exotismo da mulher negra ou mestiça, perpetuando uma imagem ligada à servidão e à disponibilidade sexual.

O livro Tereza Batista cansada de guerra, lançando em 1972, especialmente, foi alvo da crítica feminista. O motivo? A obra foi criticada por “construir um perfil feminino patriarcal”. O desfecho da narrativa, em que Tereza se coloca debaixo de um homem – o Mestre Gereba – para receber a vida no lugar da morte, “minaria” – segundo os detratores – o mito da guerreira invulnerável e independente.

São “teses” assim que Paloma Amado, filha do autor, está cansada de ouvir, mas que se acostumou a ignorar. “Quem diz isso de meu pai, nunca leu um livro dele. O que eu escuto são chavões e palavras de ordem de movimentos um tanto ridículos. Meu pai foi um feminista – bem mais que minha mãe! – e sempre tratou as mulheres vivas e personagens com um respeito total. Quando ouço essas bobagens, me chateio, mas deschateio logo em seguida, pois a vida é curta, não há tempo a perder com baboseiras.”, afirma Paloma Amado à revista Pernambuco.

O próprio Jorge chegou a reclamar de ataques que recebera. Problema que escancarou nos anos 1980, quando, durante uma entrevista, queixou-se das críticas que recebia.

“As feministas me atacam muito, elas me tratam de machista! E quando foi feito o filme Dona Flor, uma mulher também escreveu qualquer coisa sobre o filme, uma escritora de esquerda, muito radical. Ela dizia que o livro era machista, mas manifestamente, nunca o lera… Houve reação análoga com Tereza Batista, um livro machista… Pergunto-me por quê… Para as feministas daqui, contar um fato, um acontecimento do machismo é ser machista. Elas se recusam a ver que é uma crítica, uma denúncia, é uma forma de luta contra esse estado de coisas”, desabafou Jorge Amado.

A escritora e jornalista Rosiska Darcy, membro da Academia Brasileira de Letras, concorda. Ela vê a narrativa amadiana exatamente como o autor a explica: uma crítica ao machismo, não um desrespeito à mulher.

“Não acho que os livros de Jorge Amado sejam machistas. Os livros dele descrevem situações que podem ser machistas, mas que eram absolutamente verdadeiras, ao seu tempo, ao tempo que ele viveu. E é muito importante não confundir o autor com as suas personagens. As personagens podem ser de todo tipo. Isso não faz do autor um machista, necessariamente.”

Rosiska vai além sobre a importância das figuras femininas. “Acho que as mulheres de Jorge Amado são guerreiras. Teresa Batista, Rosa Palmeirão, a própria Gabriela, são mulheres que sofreram muito, são mulheres castigadas pela vida e que conseguiram se levantar. Eu acho que são heroínas muitas vezes”, afirma.

Outra escritora que sai em defesa do autor baiano é a poeta e feminista Cida Pedrosa, fã dos romances de Amado. Ela reconhece que diversas mulheres criticam a obra amadiana pela sensualidade das personagens femininas. Mas pondera que esse é um erro: na sua visão, não se pode julgar autores de décadas passadas com o olhar de hoje. É preciso, segundo a escritora, pensar no tempo histórico.

“Julgar autores com o olhar do nosso tempo é muito ruim. Apesar da obra de Jorge continuar extremamente válida na atualidade, há essa questão de que ele erotizava as mulheres, principalmente as mulheres negras. Mas as pessoas esquecem que essa questão da erotização não é só uma coisa de Jorge. Você tem na obra de Jorge, de Gabriel García Márquez, de todos os escritores daquela época… Diferente da prosa escrita hoje, por exemplo. Então, há um traço da obra de Jorge que precisa ser visto, mas respeitando a época em que foi escrita”, defende Cida.

Academia

As críticas contra suas mulheres sensuais não foram os únicos entraves na caminhada de Jorge Amado. Há uma percepção de que a academia demonstra resistência à obra do autor baiano devido ao seu estilo antiformalista e à sua grande popularidade entre o público em geral. Pesquisador literário e doutor em Literatura pela USP, Eduardo Assis Duarte afirma que existe, sim, um preconceito contra Jorge Amado, caracterizando-o como um “elitismo típico da universidade brasileira”, que tende a valorizar autores menos acessíveis ao grande público.

Outra ressalva dos críticos diz respeito à qualidade desigual de sua produção, com alguns apontando um lirismo excessivo e soluções narrativas “previsíveis”. Além disso, sua opção por uma linguagem simples e direta, que alcança as massas, foi vista por estudiosos como uma escolha simplista. Sem profundidade formal e estilística. Muitos chegam a afirmar que Jorge era mais um contador de histórias, sem o peso de um Guimarães Rosa ou de um Graciliano Ramos.

Há quem afirme, ainda, que o autor, apesar de abordar a cultura popular em toda sua obra, não seria um representante legítimo do povo. Pecando, às vezes, por estereótipos e descrições não precisas ou em caricaturizações desses personagens.

“Grande parte da obra de Jorge Amado perpassa a obra da história do Brasil. O encontro dele com as camadas mais baixas fez com que ele se denominasse um homem do povo. Um homem que diz conhecer o candomblé, mas a crítica afirma que ele é um homem da elite, que fala desse povo com distanciamento, e que, portanto, ele é um paternalista”, explica Felipe Queiroga, professor da Uninassau, Ele fez sua graduação focada na obra de Jorge Amado e discorda do pensamento dominante dos acadêmicos: “Quando a gente fala que a elite não conhece o povo, podemos afirmar igualmente: a academia também não conhece o povo”.

Na visão de Felipe, a academia não conseguiu perceber a multiplicidade da identidade do autor baiano, um homem que se desdobrou e transitou por muitos espaços, do povo do cacau ao das ruas.

“Jorge tem o romantismo como base, mas a gente esquece que uma das bases do romantismo era exatamente a revolução, segundo lembra o escritor José Maria Gomes. Jorge, portanto, era um revolucionário. Temos que pensá-lo no nosso tempo”, ressalta Felipe.

Essa opinião é compartilhada por Saulo Neiva, professor titular de literatura brasileira e portuguesa da Université Clermont Auvergne. “A folclorização do Brasil é outra questão frequentemente levantada. É fato que seus romances ajudaram a consolidar, especialmente no exterior, uma imagem do Brasil como um país mestiço, sensual e exótico. No entanto, essa leitura simplificadora vem muitas vezes das adaptações audiovisuais de sua obra, que acentuaram os elementos pitorescos e deixaram em segundo plano a crítica social presente em seus romances. Na literatura, sua Bahia não é um cenário estático; é um espaço de conflitos, de resistência cultural e de lutas por liberdade”, diz o especialista.

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