O último dia da Feira Literária Internacional de Pernambuco (Fliporto) contou com uma programação variada e extensa. Um dos destaques do dia foi a palestra “A atualidade da obra de Albert Camus”, proferida pelo professor universitário, escritor e ensaísta Lucilo Varejão, com mediação de Luiz Otávio.
Amante da literatura e da filosofia de Albert Camus, Lucilo justificou porque o autor franco-angelino continua sendo atual, o que é demonstrado pela adoção de seus livros por universidade e milhões de leitores de todo o planeta.
“A questão de Camus é que ele cuida de uma filosofia que trata dos questionamentos humanos, da questão da existência do indivíduo. São as preocupações existenciais. Qualquer pessoa se pergunta quem é, de onde veio, para onde vai, o porquê disso. Seus livros trazem todas essas questões, no sentido individual e coletivo.”, explicou Lucilo.
Para lembrar da atualidade de Camus, o professor recorda dos acontecimentos que o ser humano vivencia na atualidade, e a pertinência do absurdismo, termo criado a partir da literatura de Camus. Mesmo após 80 anos de publicação, livros como “A Peste”, que na época foi escrito como uma crítica ao nazismo e à Segunda Guerra, hoje se adapta a outras situações tão absurdas quanto às da década de 1940.
“Você teve uma pandemia (a da Covid 19) você diz, porque existiu um negócio desse? Não tem explicação. Elas surgem, os males surgem e o mundo é silencioso. As pessoas, o que as pessoas fazem? Muitas vezes se apegam a crenças e religiões, porque acham que aquilo é a válvula de escape. Em “A Peste” temos esse questionamento. Camus nos mostrava isso, a vida é o tipo da coisa: a única certeza do indivíduo é a morte. Morreu, acabou tudo.”
Origens
Durante a conversa com o público, no final da tarde do domingo, 16, Lucilo Varejão avaliou as origens do autor, lembrando que ele era filho de um francês que trabalhava na área de vinhos, Lucien Auguste Camus, um cavista (que lida com os toneis de vinho) que foi enviado para a Argélia por uma empresa, cujo solo era propício para a plantação de uvas.
Lá conheceu Catherine Elène Sintes, argelina de ascendência espanhola, com quem se casou. As famílias de ambos eram miseráveis, pobres, os avós paternos e maternos analfabetos, o pai com pouca instrução. Camus, que nasceu em 1913, em Mondovi (hoje chamada Drèan) portanto, teve uma infância com quase nenhum acesso à cultura e grandes dificuldades financeiras. Além disso, teve que conviver com uma tragédia que impactou ainda mais sua vida: o pai morreu em 1914, na Primeira Guerra Mundial com uma bala na cabeça. O escritor tinha apenas um ano.
“O governo francês não teve a mínima sensibilidade em anunciar esta morte: chegou na casa da viúva, com uma caixa onde estava a bala que matou o Lucien, e a entregou à família à vista das crianças. Foi a recompensa que os Camus tiveram por defender a pátria.”, narrou Lucilo, lembrando que a partir daí a mãe foi morar na casa dos genitores. E que os Camus tiveram que conviver com a avó, uma mulher muito dura e rígida.
A ascendência espanhola da família materna faz com que o leitor compreenda um pouco mais o homem e o escritor. Ele era claramente anti-franquista. A ascendência francesa o deixou sempre num impasse na guerra civil entre os dois países, apesar de Camus ter se oposto abertamente aos ataques terroristas perpetrados pelo grupos rebeldes argelinos na década de 1950. Ele criticava a França pelas condições miseráveis do seu pai. Mas também se opôs fortemente aos ataques dos grupos que partiram para a luta armada.
“Ele cresceu com essas dúvidas constantes. Sou francês ou argelino? E também com uma profunda visão humanista diante da miséria do povo da Argélia. Como jornalista, nos anos antes da guerra, fez uma série de matérias sobre a fome, a falta de educação proporcionada aos cidadãos do país onde morava e principalmente à falta de cuidados médicos: em um artigo lembrava que havia um médico para cada 60 mil pessoas.” A coletânea que reúne seus artigos jornalísticos sobre sua terra natal, publicados a partir de 1939 (primeiro no jornal Alger-Républicain e depois em outros periódicos), é conhecida em português como "Crônicas Argelinas" (título original em francês: Chroniques algériennes).
Mesmo sem uma educação formal em casa, teve a sorte de encontrar um mestre na escola primária do bairro popular de Belcourt, motivo pelo qual a literatura entrou na sua vida.
Graças ao professor Louis Germain, que enxergou em Camus uma inteligência viva e uma sensibilidade incomum, o mestre virou um mentor: incentivou-o a ler, a expressar-se, a acreditar que tinha algo a dizer ao mundo. Foi ele também quem insistiu para que Camus tentasse o exame que lhe permitiria obter uma bolsa e continuar os estudos no liceu, algo raro para alguém da sua origem.
Dessa época surge uma frase de Camus, muito emblematica. “Eu fui colocado sob a miséria e o sol.”. Em 1937, o autor publcou o seu primeiro livro, “O direito e o aviso”. “Tudo que ele escreveu, toda teora absurdista está nesse primeiro livro. A solidão do homem, a necessidade de amar, o amor à natureza, o medo da morte são questões com as quais ele já lidava e se questionava.”, diz Lucilo Varejão, que classifica o absurdismo de uma forma simples. “A pessoa pergunta e espera uma resposta. Não recebe nada além desse silêncio. Esse silêncio é o absurdo.”
Além de jornalista, Camus também atuou no teatro, gostava de conviver, de trabalhar em grupo, da camaradagem e da solidariedade. Quando a Segunda Guerra estourou, trabalhou como diretor clandestino no jornal Combat, fazendo a coordenação de notícias em toda a França ocupada.
Após a guerra escreveu “A Peste”, e rompeu com amigos que apoiavam o stalinismo, a exemplo de Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, de quem era muito próximo. Também iniciou uma cruzada contra alguns traidores da pátria, entre eles comerciantes, escritores, intelectuais que apoiaram o regime de Vichy e a perseguição aos judeus e opositores. Exigia qualidade nas sentenças, não quantidade. Não aceitava que amigos e conhecidos, além de milhares de franceses, tivessem sido mortos por nada, sem que os culpados fossem responsabilizados.
Continuou escrevendo livros como O estrangeiro, O mito de Sísifo e Calígula nos anos seguintes, onde foi expandindo sua fama, mas também inimizades com os que apoiavam Moscou.
Ao receber o Prêmio Nobel, em 1957, Camus chamou atenção por dois gestos. Por dizer a um jornalista que achava que Jean Paul Sartre era o merecedor do Nobel, e não ele. E ao escrever uma carta ao professor primário da Argélia, dizendo que “nenhum dos sucessos” teria acontecido sem a ajuda dele.
A sua morte, em 1960, segundo Lucilo, é algo totalmente sem sentido, mais uma das facetas do absurdismo. “Não era para Camus embarcar naquele carro com o editor da Galimard. Ele iria viajar de trem. Foi convencido, e por incrível que pareça, só ele morreu, só o lado onde estava bateu na árvore. Para quem empregou a filosofia do absurdo, nada mais absurdo do que isso.”, comenta Lucilo