Os leitores de Mia Couto tiveram, neste sábado, 11, uma noite de conexão com o moçambicano. Com a serenidade de quem carrega dentro de si muitas vozes e muitos mundos, o escritor transformou a palestra realizada na 15ª Bienal Internacional do Livro de Pernambuco, num momento de reflexão, de beleza. De contato com o homem que carrega em si sua obra, e que se expressa de uma forma poética, como se estivéssemos lendo seus livros.
Com a mediação da poeta Cida Pedrosa, Mia Couto falou não apenas do seu novo livro, A cegueira do Rio, mas também sobre suas origens, ancestralidade, o universo da sua terra, em Moçambique, e das muitas guerras que viveu.
Mas uma fala sua, em especial, surpreendeu. Além de contar que foi o escritor mineiro Guimarães Rosa quem lhe deu a licença poética para usar a linguagem a seu modo, “transgredir a linguagem”, foi Jorge Amado quem influenciou toda uma geração de africanos de origem portuguesa, inclusive ele próprio.
“Jorge Amado teve mais impacto do que qualquer escritor do mundo em países como Moçambique, Angola, Guiné Bissau. Durante um encontro que tive aqui no Brasil, através da Companhia das Letras, afirmei isso: da dívida de Moçambique para com Jorge Amado.“
Conversa
Tímido - apesar dos amigos garantirem que é brincalhão na intimidade - Mia Couto iniciou a palestra afirmando estar acanhado pela atenção que atraiu no Recife. “Sempre pensei que eram importantes meus livros. Mas acho que hoje autores e livros se confundem.”, afirmou.
Logo em seguida, falou das suas origens, do degredo do seu pai, que participava do Partido Comunista Português, durante o regime de Salazar, para a colônia moçambicana. Foi lá, em Beira, em 5 de julho de 1955, que nasceu Antônio Emílio Leite Couto, que cresceu numa família “nuclear”, com pai, mãe e três irmãos.
E que descreveu que apesar da descendência europeia, teve uma infância de um menino africano, que morava numa cidade onde a maré enchia e as pessoas eram obrigadas a ir para a casa, pois a água invadia tudo.
“Isso foi muito bom, me fez viver num mundo muito líquido, não sólido. O que faz com que eu não tenha medo de ficar sem chão.”
Essa infância afastada da Europa, e da família, fazia com que Mia - chamado assim pelos irmão mais novo - não tivesse memórias de seu passado. O que foi resolvido pela mãe. Ela contava-lhe relatos dos avós, a ponto do autor contar que algumas vezes ouvia passos deles pela casa. “Eles passaram a habitar conosco.”
Quando o avô paterno morreu, a mãe lhe avisou que fosse consolar o pai. “Fui no quarto, ele tinha encolhido, a cama estava enorme, e eu sem saber o que dizer perguntei: Ele morreu de verdade? Ao que meu pai respondeu: “Ele morreu de verdade lá, aqui não!.”
Nesse universo quase mágico da sua família, Mia ia à escola e não prestava atenção em nada. Afirma que passava as horas a fitar o rio. “Ia para a escola e não estava lá. A diretora, finalmente, resolveu mandar uma mensagem à minha família. “Esse aluno nunca faltou, mas também nunca esteve presente.”
Mulheres
As mulheres são fundamentais na obra de Mia Couto. Questionado sobre o porquê desta voz feminina, o escritor lembrou que é filho de uma geração onde a masculinidade era muito importante. “Homem não podia chorar, se sensibilizar, havia um estereótipo cobrado”.
Quando começou a escrever, questionou-se:”Como podia dar voz a uma mulher com toda essa carga?”. Mas deu conta, principalmente, por causa de sua mãe Maria de Jesus, a mulher que contara a história de seus descendentes, e cuja criatividade para criar narrativas, com certeza, influenciou o filho.
Para se ter ideia do poder dessa mulher, Mia conta como se deu a morte do seu pai. A mãe ligou avisando-o que seu pai morrera, que ele voltasse para casa. Ao chegar, ele lhe perguntou o que acontecera. O pai havia morrido engasgado com uma maça, disse-lhe. Logo em seguida outro filho chegou, e a história foi diferente. O marido morreu devido a uma queda. E sucessivamente, a cada pessoa que chegava, ela ia contando nova história. “Até que todos começaram a rir. Minha mãe conseguiu inverter um momento trágico em algo surpreendente.”
Ele também pondera, que a complexidade do seu país, que possui 30 línguas e 30 etnias diferentes, o permitiram observar os mais diversos tipos de linguagens, comportamentos, mulheres e relacionamentos.
“O Norte de Moçambique é muçulmano, mas as mulheres têm o poder. No Sul é mais patriarcal.” O preconceito é grande, afirma ele, mas foi escutando essas falas e essas formas de falar e viver, que foi construindo as diversas vozes que reproduz nos seus livros.
“Eu tenho o enorme privilégio de viver num mundo que tem vários mitos, várias cosmogonias…Essa visitação que eu faço não preciso nem sair de casa. As pessoas que passam na minha janela trazem essas informações. Essa diversidade está viva. É moderna.”
Cegueira
A recorrência do termo cegueira, não enxergar, não ver, percebida nos seus livros, também foi abordada pelo escritor. “Acho que a cegueira que me ocupa é a cegueira de não ver a realidade. Às vezes é preciso fechar os olhos para ver.”
Mia Couto diz que na atualidade “existe uma espécie de ditadura da realidade. Grandes guerras no mundo, mas alguns só veem as que querem. Não vemos os outros. Saltamos dos armários para as gavetas. Classificamos os outros por identidades. Não falamos com pessoas de extrema direita, porque nos abomina (o que de fato não gosto do pensamento) ..Mas o que eu penso é que é sempre importante ouvir o diferente, porque eu conto histórias. E que muita gente é racista porque é ignorante.”
Com a calma de quem viveu muitas guerras, Mia Couto ressaltou que as pessoas têm memória curta. “A história da África não é só de colonização. Tivemos grandes impérios. Hoje, os nossos maiores inimigos não estão fora, mas dentro dos nossos países. Aqui no Brasil ou em Moçambique.”
Também lembrou que existem guerras terriveis acontecendo, como na Palestina. “Mas não se pode apagar a história: genocídios sempre aconteceram.”
Se você disser que esse é o fim do mundo, a um africano, ele vai dizer: “Mais um?”.
Mia Couto atravessou duas guerras em Moçambique, ambas profundamente marcantes para sua vida e sua literatura. Ele era adolescente quando Moçambique lutava para se libertar do domínio colonial português. Embora não tenha participado diretamente dos combates, cresceu num ambiente de tensão e censura. Seu pai, Fernando Couto, era jornalista e militante anticolonial, o que fez com que Mia testemunhasse de perto o ambiente de resistência.
Depois da independência, o país mergulhou num conflito devastador entre o FRELIMO (o partido do poder)e a RENAMO (grupo de oposição armado).
Trabalhando como jornalista nesse período - no qual perdeu amigos queridos - Mia Couto encarou a violência, a perda, a destruição e a necessidade da reconstrução humana e simbólica.
A guerra civil marcou profundamente sua escrita. Sobretudo nos livros Terra Sonâmbula (1992) e Jerusalém (2009), livros nos quais ele aborda a desumanização e a busca pela esperança em meio à ruína.
Mia Couto é um dos escritores africanos mais premiados da atualidade e sua obra é traduzida em mais de 30 idiomas. Entre os prêmios que recebeu estão o Camões (2013), Neustadt de Literatura (2014, considerado o Nobel americano),e o Internacional de Literatura Casa das Américas (2010), entre muitos outros.
XV Bienal Internacional do Livro de Pernambuco
Centro de Convenções de Pernambuco – Olinda
Último dia neste domingo
Horário: 10h às 21h
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