Livro de André Girardo evoca ancestralidade, resistência e espiritualidade

Em "A travessia de N’ Koko", autor mostra a jornada de uma criança escolhida para liderar seu povo, revisitando a dor da escravidão e a herança cultural afro indígena

Sacerdote da Umbanda, André usa a cosmogonia banto na narrativa do livro, trazendo denominações e costumes usados pelos primeiros povos africanos escravizados
Sacerdote da Umbanda, André usa a cosmogonia banto na narrativa do livro, trazendo denominações e costumes usados pelos primeiros povos africanos escravizados

O livro  "A Travessia de N’Koko", do escritor e sacerdote André Girardo, é uma opção para quem deseja uma leitura que explique a importância do Dia da Consciência Negra, comemorado nesta quinta, dia 20, no Brasil, data da morte de Zumbi dos Palmares. O romance lançado pela editora Iluminuras, convida o leitor a atravessar séculos de memórias afro-brasileiras, evocando ancestralidade, resistência e espiritualidade em uma narrativa que une mito e história

.A obra tem como eixo central a jornada de N’Koko, uma criança escolhida para liderar seu povo. A travessia que dá título ao livro não é apenas geográfica, é espiritual e comunitária. N’Koko se torna símbolo de esperança num Brasil que revisita a dor da escravidão para reinterpretar sua herança cultural a partir do protagonismo negro e indígena.

Girardo cria uma trama que se inicia nas senzalas e avança até a formação de um quilombo. Nesse trajeto, o autor combina pesquisa histórica com elementos da oralidade tradicional, aproximando o leitor de cosmovisões africanas e ameríndias que moldaram o país, mas que por muito tempo foram silenciadas.

Como sacerdote de umbanda, ele incorpora à obra aspectos espirituais que ampliam a dimensão do enredo. A fé, a memória e o pertencimento tornam-se pilares da construção de N’Koko, personagem que cresce não só como líder, mas como representação de uma coletividade que aprende a resistir pela cultura.

Ao entrelaçar referências bantus, tradições indígenas e elementos do imaginário afro-diaspórico, o romance propõe uma nova forma de olhar para a história do Brasil. Não a partir dos registros oficiais, mas das vozes que preservaram a identidade e reinventaram a liberdade em territórios quilombolas.

Bantu

Um elemento fundamental no livro, é a preocupação do autor em registrar a cosmologia do povo bantu, que diferente da iorubá e nagô - vertente mais comum em Pernambuco -, nomeia e tem um conceito e terminologia dos deuses, diferentes do que estamos acostumados a ver na atualidade. 

“A maioria do povo bantu, os primeiros a serem escravizados, morreu logo no começo da colonização. Seus costumes e terminologias se perderam durante os séculos, são menos utilizados.”, explicou André, que completa:

 “Os iorubás vêm para cá depois de 1750 para frente, principalmente em 1800. Eles vêm  para essas regiões litorâneas: no Rio Grande do Sul, São Paulo, Rio de Janeiro e na região portuária de Salvador, Bahia. O iorubá, ele nomeia Orixá. Os bantus Nkisi ou Inquice.” O povo bantu, segundo André, foi dizimado, “desmembrado”, pouco restou da sua memória e denominações. 

Ainda de acordo com André, foram os bantus os primeiros a criar os quilombos. Zumbi dos Palmares, segundo artigo publicado por Ney Lopes - que foi assessor da Fundação Cultural Palmares -, teria origem bantu, por ter nascido em 1655 (o que é historicamente aceito). Ganga Zumba, que é anterior a Zumbi, também. O que dá mais força e significado à abordagem e ao livro de André. 

“Foram eles (os bantus)  que fundaram os quilombo . Que se envolveram com os índios por causa dessa crença , dessa cosmovisão de respeitar aqueles que vieram antes. Então, por serem dois povos (bantus e iorubás), são denominações diferentes.”, explica André.

Ele também detalha, que enquanto na cultura bantu a noção de religiosidade está mais ligada à natureza, na iorubá os orixás têm forma humana. “É outra forma de culto. Os bantos se pautam muito na ancestralidade”.

Os nomes dados às divindades também são totalmente diferentes. Dandalunda é uma divindade do rio, semelhante a Oxum. Micaiá é Iemanjá. Lembá é Oxalá. Mavambo é Exu. Só para citar alguns deuses.

André explica, ainda, as diferenças entre os deuses e os rituais dos dois povos. “O Orixá é uma personagem, é uma personificação. Eram ancestrais vivos aqui na Terra, né? Então, Ogum era um que se encantou. Se divinizou e se tornou Orixá. Era, de fato, alguém. Teve carne e osso, vamos dizer assim. Inquice, por sua vez,  é a própria natureza. Então, o rio é Dandalunda. A pedra, a pedreira é Zaze. O que que dá o transe no ritual de inquice? Não é o orixá que baixa propriamente: o transe se dá na centelha que retira da natureza. Tira do rio, a essência do rio. Porque aquela pessoa, ela tem uma ligação de personalidade com o rio. E assenta o rio na cabeça da pessoa.”, explica o sacerdote. 

 As denominações bantus, adotadas por sacerdotes como André, muitas vezes são desconhecidas dos atuais seguidores do candomblé. A pesquisa trazida no livro, diante do desconhecimento de muitos brasileiros, é um importante estímulo para que as pessoas se conscientizem de que os escravizados eram diversos, e tinham culturas e denominações específicas. É também uma deixa para que se estude as levas de povos diferentes que contribuíram na formação da sociedade brasileira. 

"A travessia de N’Koko" se destaca, portanto, como um gesto de reparação simbólica. Não se trata apenas de revisitar o passado, mas de iluminar o presente. É um livro que dialoga com obras como Um Defeito de Cor, de Ana Maria Gonçalves, e com toda a tradição literária que busca resgatar memórias apagadas e reposicioná-las no centro da narrativa nacional.

André Girardo é pedagogo, atua há décadas na política pública de assistência social do município de São Paulo e em organizações sociais, nas áreas de garantia dos direitos das crianças, adolescentes e jovens. Atualmente gerencia o serviço Centro para Crianças e Adolescentes - CCA Zumbi dos Palmares, da Ação Social Padre Paschoal Bianco. Ele é também sacerdote de umbanda, dirigente da Tenda Espiritualista de Umbanda Filhos de Aruanda. 

Serviço

A travessia de N’ Koko

André Girardo

234 páginas

R$ 79,90

Editora Iluminuras

Confira entrevista com André Girardo no Instagram da Revista Pernambuco