As mais trágicas formas de manifestação do fogo, os incêndios estão na gênese de inúmeras obras da literatura. Às vezes, são quase que personagens, embora o fogo seja um processo químico, não propriamente um ser. Outras vezes, as chamas são um detalhe ou um catalisador de narrativas. Não importa. Um incêndio não passa despercebido, na vida ou nos livros.
Foram as dores da perda e as cicatrizes das vítimas de um incêndio que levaram a escritora argentina Camila Fabbri a escrever O dia em que apagaram a luz (160 páginas, Nós, R$ 70), seu primeiro livro lançado no Brasil. É um romance de não ficção que gira em torno de uma tragédia ocorrida em Buenos Aires no dia 30 de dezembro de 2004. Mais do que um exercício de reconstituição do acontecimento, o livro parece uma tentativa de exorcizar um trauma que atingiu diretamente pessoas da geração da autora, algumas das vítimas inclusive conhecidas dela.
O incêndio ocorreu na casa de show República Cromañón, nos instantes iniciais de um show da banda de rock Callejeros. O grupo ainda estava na primeira música. Alguém na plateia disparou fogos de artifício que atingiram uma espécie de lona decorativa fixada abaixo do teto.
Bastante inflamável, a cobertura pegou fogo rapidamente e se alastrou pela espuma que servia de isolante acústico no teto da boate. Consumida pelas chamas, essa espuma gerou uma fumaça altamente tóxica, responsável por muitas das 194 mortes provocadas pela tragédia. Outros 1.432 ficaram feridos, um montante superior ao da capacidade da casa, que deveria ser de cerca de mil. Naquela antevéspera de ano-novo, estima-se que 4,5 mil pessoas ocupavam o espaço.
O leitor não deve esperar encontrar em O dia em que apagaram a luz um livro-reportagem sobre a tragédia ou algo do tipo. Não é o caso. Embora o centro da história seja o incêndio da Cromañón, Camila Fabbri não se dedica tanto aos detalhes do incidente ou a investigar as circunstâncias. É muito mais uma colagem das lembranças, dos traumas e dos pesares dos que sobreviveram e da memória sobre os que se foram.
A própria autora é como uma sobrevivente, embora não estivesse na trágica noite. Ela esteve justamente na apresentação da banda na véspera. Provavelmente, como fã da Callejeros, ela gostaria de ter estado em todos os shows de uma trinca de apresentações do grupo na boate, nos dias 28, 29 e 30 de dezembro. A cada noite, tocavam um dos três álbuns da carreira. Ela, à época com 15 anos, conseguiu permissão da mãe para ir a um dos shows. Escolheu o do dia 29, quando tocariam o disco Presión, o favorito da adolescente.
À voz da escritora se juntam os relatos de outras pessoas, a maioria de sua geração, que eram pouco mais do que crianças quanto tudo aconteceu. Alguns são sobreviventes do incêndio, outros não estavam lá, mas perderam amigos ou familiares. Os depoimentos colhidos pela autora se concentram nas memórias relativas à tragédia, enquanto outros se dedicam ao presente dos que vivem. Em comum, todas as vozes desse coro carregam inevitáveis marcas daquela noite.
Mesmo que se concentre em relatos e situações ocorridas em 2004, O dia em que apagaram a luz só poderia ter ganhado a forma que tem com um distanciamento temporal do incidente. Lançado originalmente em 2019, o livro se debruça nas marcas que o incêndio da Cromañón deixou em uma geração da Argentina e de como a tragédia se fez (e se faz) presente na vida de tantos no decorrer dos anos.
Uma tragédia similar à relatada por Camila Fabbri ganhou as páginas de uma publicação nacional, Todo dia a mesma noite (248 páginas, Intrínseca, R$ 69,90), de Daniela Arbex. Publicado em 2018 e adaptado para a televisão pela Netflix em 2023, o livro-reportagem vai a fundo na reconstituição do incêndio da boate Kiss, ocorrido em 27 de janeiro de 2013, em Santa Maria, no Rio Grande do Sul.
O desastre brasileiro guarda muitas semelhanças com o da boate argentina. Era uma casa operando acima do limite de lotação e o incêndio teve origem também com fogos de artifício disparados durante um show. Do mesmo modo, as chamas se alastraram pelo revestimento acústico da boate, gerando uma fumaça tóxica que vitimou muitos dos 242 mortos, quase todos estudantes do segundo grau.
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