Quito, um reencontro com João Cabral

Tomamos a estrada pelo corredor dos vulcões; na direção de Riobamba, pude contemplar a paisagem por excelência da poesia equatoriana de Cabral

Removido para Quito, não podia prever a revolta indígena de outubro de 2019 nem a pandemia iniciada em dezembro. Sabia que faltava ar a quase 3.000 metros de altura. À minha mulher, Bia Wouk, sim, faltou. A João Cabral também. Apesar disso, escreveu sobre o quanto gostou da experiência equatoriana. O que eu tinha certeza era que moraria na mesma casa em que ele. Reli seus poemas equatorianos e me fixei num verso de O corredor de vulcões: “a geometria do Cotopaxi,/ que até minha janela de Quito,/ com seu cone perfeito e de neve,/ vem lembrar-me que a boa eloquência/ é a de falar forte mas sem febre”.

Num almoço antes da partida, quando perguntado sobre projetos para Quito, o que se esperava era o de sempre — relações políticas e comerciais —  e não o para sempre. Lembrei João Cabral, sua janela de paisagem geométrica e sua aversão à retórica. Creio que ele teria gostado do silêncio que gerou minha observação.

Na casa não encontrei a tal janela. Tampouco na Embaixada. Algum funcionário trabalhava ali quando serviu João Cabral? Sim. O Senhor Alfonso Montúfar, de 86 anos.

“Senhor Montúfar, li este verso. Existe a janela com vista para o Cotopaxi?”

“Claro, eu mesmo mudei a mesa do Embaixador no dia da chegada. Ele pediu que ficasse de frente para a janela.”

Estava num antigo endereço, onde a poluição visual dos prédios contrastava com o poema. 

Em Quito, Cabral já não se sentia com idade para reviver Sevilha: “decerto por Quito, há Sevilhas”, mas onde “o impulso de sair-se/ da ilha que é conforto e preguiça”?  

Convidei o poeta Ivan Carvajal a escrever um ensaio para um primeiro livro exclusivamente dedicado aos poemas equatorianos de Cabral.  O poeta Antonio Carlos Secchin, que fez o prefácio, alertado pela pesquisadora Edneia Ribeiro, localizou inéditos na Fundação Casa de Rui Barbosa, entre os quais vários poemas antirretóricos e explicitamente antiNeruda. Um dos inéditos, “Joaquim Cardozo & Quito”, foi escrito depois da morte daquele poeta e engenheiro meses antes da chegada de Cabral a Quito em 1979. 

Quem teria conhecido João Cabral em seus anos de Equador? Um deles, o romancista Javier Vásconez, o encontrava na livraria El Cronopio. Ainda que lhe fosse oferecida uma poltrona, preferia se sentar num banco de madeira para folhear livros em silêncio.

Cabral aproximou-se do chanceler, o ensaísta e crítico Alfredo Pareja Diezcanseco, que  escrevia sobre a artista Araceli Gilbert, cujo rigor construtivista é da família da poesia de João Cabral. Dizia que seu geometrismo abstrato, “com um estilo de forma sintética e clara”, “no es sentimental”. Poderia ter dito o mesmo sobre a poesia de Cabral, que ele conhecia bem, tendo mais tarde incluído vários livros do pernambucano na coleção doada à Universidade Católica.

Quando da revolta indígena que ocupou a Assembleia Nacional e muitos temiam a derrubada do governo, fui convidado por um dos líderes para um encontro, juntamente com o embaixador da Espanha e o da Guatemala, ele mesmo indígena. Tomamos uma estrada pelo corredor dos vulcões e, na direção de Riobamba, pude contemplar a paisagem por excelência da poesia equatoriana de Cabral. O corredor dos vulcões abrangia o Cotopaxi e o Chimborazo, que “aprenderam a ser sem gritar-se”, simbolizando o silêncio e a aversão à retórica, e contrastava com o “índio formiga”, pobre e marginalizado.