Com 12 anos, tive o sonho de aprender alemão. Foram quatro anos no Goethe de Fortaleza. Felizmente, quando cheguei a Munique, meu alemão agradava a quem se contentasse com meus arranhões e me socorresse com o inglês.
Minha primeira viagem à Alemanha foi no dia 5 de setembro de 1977. Morava em Paris, e uma ex-namorada alemã me convidou para visitá-la em Colônia. À medida que me aproximava do destino, meu carro foi revistado 5 vezes. Quando cheguei, policiais bateram à porta para saber quem era o cabeludo e barbudo que os vizinhos tinham dedurado. Minha amiga os convenceu que eu não pertencia ao grupo Baader-Meinhof, que sequestrara naquela manhã em Munique o industrial Hanns Martin Schleyer.
Minha segunda visita, no ano seguinte, foi a Munique. Lembro-me de um dia ensolarado na Marienplatz tomando cerveja por ocasião da Oktoberfest.
Em Munique, Bia e eu íamos a pé a uma das maiores feiras livres da Europa, a Viktualienmarkt, onde se erguia uma das “árvores de maio”, postes decorados com símbolos, entre outros, em homenagem à Lei da Pureza da Cerveja, de 1516.
Em 2020, eu era mais de 40 anos mais velho, a Oktoberfest havia se agigantado e, para mim e a Bia, Munique agora era a cidade dos museus, onde a coleção da Alte Pinakothek podia lembrar o Prado, o Brandhorst detinha a maior coleção de Cy Twombly do mundo e a Lenbachhaus abrigava o acervo dos expressionistas do grupo Der Blaue Reiter (O cavaleiro azul), fundado em Munique em 1911 por Kandinsky e Franz Marc.
Era a cidade das caminhadas quase diárias para o Parque Inglês, passando pelo Hofgarten, onde parávamos para um café. Em frente, a Odeon Platz e o Feldherrnhalle, monumento inaugurado por Ludwig I da Baviera em 1844 e apropriado pelo culto de Hitler. Uns 100 metros antes, passávamos por uma pequena ruela, apelidada de “Drückebergergasse” (“beco dos que evitam”), onde no chão há uma linha de paralelepípedos dourados que marca o caminho tomado para evitar a saudação nazista obrigatória em frente ao Feldherrnhalle.
Antes de seguir para o Jardim Inglês, passando o Hofgarten, não precisava esforço para se recordar das atrocidades do Nacional Socialismo. Um dos memoriais era dedicado aos membros do Grupo Rosa Branca (Weiße Rose), estudantes massacrados por distribuírem panfletos contra o regime.
No dia seguinte à minha chegada, tive de parar minha caminhada no Hofgarten porque uma manifestação da AfD (Alternativa para a Alemanha) protestava contra vacinas e uso de máscaras. Noutra, quase no mesmo lugar, um atleta de uma competição europeia foi preso por erguer o braço em símbolo nazista.
Munique era também a cidade da ópera. Voltávamos a pé em plena noite, sem medo de assalto, numa cidade segura e tranquila. O único susto teríamos se subíssemos pela escadaria. Na altura do segundo andar, enquanto lá morava a Cônsul-Geral de Israel, havia um plantão permanente de soldados armados. Do alto do Consulado de Israel, era possível ver crianças em recreio numa escola sem sinal do passado trágico, quando fora o quartel-general de Hitler.
Para o bem e para o mal, meu sonho de criança havia se concretizado, com um alemão quebrado, mas com uma Alemanha cujo modelo de democracia e reintegração era ameaçado pelos ovos da serpente dos anos 1920 e 1930 do século passado. Coincidência ou não, as coreografias das óperas passaram a privilegiar as cores cinza e preto.