Volvió a la isla el viernes 16 de agosto em el transportador de las três de la tarde. Llevava pantalones vaqueros, camisa de cuadros escoceses, sapatos sencillos de tacón bajo y sin medias, una sombrilla de raso, su bolso de mano y como único equipaje un maletín de playa. En la fila de taxis del muelle fue directo a un modelo viejo carcomido por el salitre. El chofer la recebió com un saluto de amigo y la llevó dando tumbos a través del pueblo indigente, com casas de bahareque y trechos de palma amarga, y calles de arena ardiente frente a un mar en llamas.
O início do romance deixado inédito pelo escritor Gabriel García Márquez, morto em 2014, por si só alerta para um autêntico texto do Nobel de Literatura de 1982. Tudo parte de uma imagem: uma mulher que chega a uma ilha. Todos os livros do colombiano partem de uma imagem. Foi a lembrança do avô o levando para conhecer o gelo que desencadeou seu mais famoso romance, Cem anos de solidão (1967).
Em agosto nos vemos, depois da chegada da protagonista Ana Magdalena Bach à ilha, o escritor traça, em narrativas que se entrelaçam, um painel da vida da mulher, uma senhora casada há 20 anos com um diretor de um conservatório de música. Vive feliz com o marido e os filhos e, todos os dias 16 de agosto, visita o túmulo da mãe. Daí decorre o grande salto do livro. Nessas visitas Ana se envolve com amantes que vão de um bispo a um marginal procurado pela polícia.
Descrevendo essas aventuras amorosas, García Márquez usa de toda sensualidade caribenha sem se deixar cair em vulgaridades. Segundo Maribel Luque, diretora da Agência Balcells, o livro é “uma exploração da feminidade, da sexualidade e do desejo, absolutamente cativante e moderna. Um magnífico broche de ouro legado pelo autor”.
O escritor Eric Nepomuceno, tradutor da obra para o português, concorda com Maribel e salienta que “nem se quisesse García Márquez conseguiria cair no pieguismo e na vulgaridade. Sim, há exaltação à liberdade feminina e no livro escorrega na sexualidade, tudo porém escrito com grande categoria, sem uma gota de banalidade”.
O livro chega às livrarias em março, quando se comemorariam os 97 anos do escritor. 2024 marca ainda duas outras datas fechadas, 10 anos de morte de Gabo e 20 anos da publicação de seu último livro, Memórias de minhas putas tristes (2004).
A expectativa em torno de Em agosto nos vemos começou quando os filhos do escritor, o cineasta Rodrigo García Barcha e o pintor e ator Gonzalo García Barcha, na Feira de Livro de Frankfurt de 2023, anunciaram a existência do original e a decisão da família em publicá-lo.
Os herdeiros salientaram que se tratava de uma obra inconcluída, mas perfeitamente fechada como narrativa, e isso faz com que o livro seja condizente com tudo que o escritor publicou enquanto vivo. Nepomuceno partilha desse entusiasmo: “É mais que suficiente para se ter uma pequena ideia do calibre olímpico da sua escrita. É um livro formidável.” Embora destaque que “tem pequenas imperfeições, repetições de palavras, por exemplo, mas é tremendamente bem escrito e estruturado.”
Os filhos, em nota, falam ainda que o novo romance seria o último esforço para dar seguimento à criação de um projeto nunca finalizado, chamado Faça chuva, faça sol. Já o jornalista colombiano José Salgar garantia ter ouvido de Gabo a notícia de que estaria, com a história de Ana Magdalena, fechando um ciclo iniciado com o romance O amor nos tempos do cólera (1985), onde conta o intenso amor de Florentino Ariza que, por anos, envolvido com amantes furtivas, enriquece esperando concretizar a paixão por Fermina Daza.
O projeto seguiria com dois outros livros. Do amor e outros demônios (1994), narração poética dos laços que envolvem Sierva María de Todos Los Ángeles, filha única de um marquês criada no convívio com escravos e orixás, cujo cabelo se estendia como a cauda de um vestido de noiva, e o padre espanhol Cayetano Delaura, encarregado de exorcizar os demônios que se acredita terem possuído a menina, e Memórias de minhas putas tristes, onde um velho jornalista, ao completar 90 anos, pede à dona de um bordel que lhe consiga uma virgem com quem deseja passar a noite, e esta lhe entrega a ninfeta Delgadina.
Quatro histórias de paixão e solidão. Aliás, García Márquez, em várias entrevistas, salientou que a solidão, mais que a paixão, a política e o amor, era o único tema de toda sua obra. Mesmo em livros como O outono do patriarca (1975), segundo ele seu melhor trabalho – “de todos os meus livros este é o mais experimental e o que mais me interessa como aventura poética”, disse ao escritor Plinio Apuleyo Mendoza – o mote é a solidão do poder, e não, como muitos defendem, uma releitura dos caudilhos ditadores latino-americanos.
“O segredo de uma velhice agradável consiste apenas na assinatura de um honroso pacto com a solidão.” A frase escrita no romance Cem anos de solidão demonstra a importância do tema para o escritor colombiano.
Eric Nepomuceno admite que não pensou no livro Em agosto nos vemos como o fechamento de um ciclo. “Prefiro pensar em sequência. E como foi a última coisa que escreveu, termina aí...”. Garante que nunca soube do projeto Faça chuva, faça sol, mas que manteve no trabalho de tradução “o imenso prazer de conversar com ele, trazendo para o meu idioma o que ele fez no dele”. E revela o desafio de manter o clima poético da obra de Gabo: “Sendo absolutamente leal a ele, ao que ele escreveu. Transportar para o meu idioma o que ele escreveu no dele. Buscando a melodia oculta atrás de cada palavra, cada frase.”
Há uma parcela da crítica que vê uma mudança de orientação literária no escritor depois da publicação de Cem anos de solidão, a intensa saga do Coronel Aureliano Buendía e seus descendentes. O escritor se afastou de tudo, inclusive do emprego, para escrever o livro. Durante um ano e seis meses, trancado em sua casa no México, trabalhou intensamente. Quando foi mandar os originais para o editor na Argentina, o dinheiro que tinha não dava para pagar as custas postais. Dividiu o calhamaço em duas partes e mandou, por descuido, a segunda metade para Buenos Aires.
Encantados com o que leram, os editores da Editorial Sudamericana deram um adiantamento que os permitiu receberem o restante do original. E o livro, publicado, surpreendeu a todos. A primeira edição, 8 mil exemplares, esgotou-se em 15 dias e foi toda vendida só em Buenos Aires. Gabo nunca quis saber os motivos de tamanho sucesso. “Acho muito perigoso descobrir por que motivo um livro que escrevi pensando apenas em alguns amigos é vendido em todos os lugares como cachorro-quente”, confessou ao amigo Plinio Apuleyo Mendoza.
Não seria exagero dizer que o livro desencadeou o boom latino-americano, movimento acontecido entre as décadas de 1960 e 1970, em que a leitura de escritores sul-americanos, sobretudo de língua espanhola, virou febre na Europa, com reflexo no mundo todo. Todos – o argentino Julio Cortázar, o mexicano Carlos Fuentes, o peruano Mario Vargas Llosa, Gabriel García Márquez e outros – estavam, escudados sob a guarda da agente literária espanhola Carmén Balcells e traziam uma prosa com influências do modernismo europeu, das vanguardas norte-americanas e de autores como José Martí, Rubén Darío e José Assunción Silva, mas com forte cargo do imaginário e do debate político latino-americanos. Ou seja, traziam a base do realismo mágico.
Cem anos de solidão é o romance em que Gabo se filia com maior radicalidade ao realismo mágico. O movimento que envolveu toda uma geração de autores latino-americanos, a geração de Gabriel García Márquez, incluindo o peruano Manuel Scorza, mas começou nos idos da década de 1940 com a chegada à Europa dos primeiros livros dos argentinos Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares, e primou pela descrição de uma realidade mítica, fantástica.
Na década seguinte, 1950, autores como Miguel Ángel Asturias, Alejo Carpentier, Juan Carlos Onetti e Juan Rulfo são publicados na Europa, mas sofrem certa discriminação. Só no início dos anos 1960, o movimento passa a ser melhor aceito com a publicação dos romances A cidade e os cachorros (1962), de Mario Vargas Llosa, e O jogo da amarelinha (1963), de Julio Cortázar.
“Ele sempre rejeitou a expressão ‘realismo mágico’. E eu concordo com ele, no caso específico de sua obra”, lembra Eric Nepomuceno. É verdade, em muitas entrevistas o escritor sempre disse que sua obra está amparada no real e que tudo que descreveu é perfeitamente plausível dentro da atmosfera caribenha.
No discurso pronunciado ao receber o Prêmio Nobel, descreve o que seria o realismo latino-americano: “Antonio Pigafetta, um navegante florentino que acompanhou Magalhães na primeira viagem ao redor do mundo, ao passar pela nossa América meridional escreveu uma crônica rigorosa que, no entanto, parece uma aventura da imaginação. Contou que havia visto porcos com o umbigo no lombo e uns pássaros sem patas cujas fêmeas usavam as costas dos machos para chocar, e outros como alcatrazes sem língua cujos bicos pareciam uma colher. Contou que havia visto um engendro animal com cabeça e orelhas de mula, corpo de camelo, patas de cervo e relincho de cavalo. Contou que puseram um espelho na frente do primeiro nativo que encontraram na Patagônia e que aquele gigante ensandecido perdeu o uso da razão pelo pavor de sua própria imagem”. Ou seja, ao Sul do Equador, e um pouco antes, tudo é possível e real.
No entanto, os críticos insistem na defesa de uma narrativa bem mais escudada no real a partir de O outono do patriarca, mesmo contando a saga de um velho ditador feudal e agropecuário que vive cercado de vacas em seu palácio carcomido. O realismo viria também mais densamente trabalhado nos romances do chamado projeto Faça chuva, faça sol, mesmo vendo-se que nenhuma dessas narrativas foge ou nega a atmosfera mágica caribenha.
Amigo pessoal de Gabriel García Márquez e seu principal tradutor para o português, Eric Nepomuceno sempre destaca o poder poético da prosa do colombiano. Uma poesia, aliás, cercada de muita veracidade, pois é do conhecimento geral que o escritor sempre buscava em fatos reais a base para sua prosa. O romance agora publicado segue no mesmo ritmo. Perguntado sobre o que há de real nele, Eric é enfático: “Tudo. Só lendo para entender. O que ele conta, sua forma de narrar, vira verdade verdadeira.”
A verdade é a base, enfim, da literatura fantástica latino-americana. Eric, também amigo de vários daqueles escritores, escreve agora um livro, Seis teclados e um bandoneón – Álbum de memórias, contando sua convivência com García Márquez, Julio Cortázar, Juan Rulfo, Juan Carlos Onetti, Eduardo Galeano, Juan Gelman e Astor Piazzolla. Não há ainda uma previsão de lançamento, pois a escrita “tem sido difícil e dolorosa. Quando comecei, ainda havia amigos vivos. Agora todos partiram...”
Eric acredita que nada mais de inédito pode aparecer dos arquivos do escritor, que ele não conhece, hoje guardados no Harry Ransom Center, da Universidade do Texas, nos Estados Unidos.
Mesmo não tendo, possivelmente, mais o que revelar os arquivos, o que temos disponível do autor já é um imenso painel de sua incansável imaginação. E Em agosto nos vemos está dentro do contexto geral dessa obra nada comum, que começou por acaso: “Nunca tinha me ocorrido que poderia ser escritor, mas, em meus tempos de estudante, Eduardo Zalamea Borda (...) publicou um artigo no qual dizia que as novas gerações de escritores não ofereciam nada. (...) Bateu em mim, então, um sentimento de solidariedade com meus companheiros de geração e resolvi escrever um conto, só para calar a boca de Eduardo Zalamea Borda”, declarou a estudantes de Caracas, na Venezuela, em 1970.
Ana Magdalena, talvez o último fruto dessa aventura, em uma das visitas à ilha, encontra o túmulo da mãe coberto com flores novas. Quem as pôs ali? A partir dessa simples pergunta começa a desvendar os mistérios da mulher que tanto venera. E isso é puro Gabriel García Márquez.
O último broche de ouro de Gabo
Texto: Maurício Melo Júnior
04 de Março de 2024
Em agosto nos vemos, romance inédito de Gabriel García Márquez, fecha a vasta aventura narrativa do colombiano