
O poeta Arthur Rimbaud, que escreveu toda a sua obra da infância aos 20 anos de idade, não é recomendável a menores. Nem exemplo que possa ser seguido por ninguém. Seja na poesia ou naquilo que Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) chamou de “a vida apenas, sem mistificação”. Espírito indomável, mente lúcida e racional ao extremo. Alma atormentada, num corpo, de início, aparentemente sólido e inabalável de campônio. Mas, logo canceroso antes dos 40, talvez por causa de uma sífilis terciária. Viveu tão intensamente, que parece ter consumido todo o fogo de Prometeu e de Hefaistos que havia em si. Ainda muito jovem – para os padrões do século XXI –, aos 37 anos de idade, tombou. Por causa da degeneração, não então dos hábitos, mas dos ossos.
Sendo parte da literatura, ou muito mais do que isto, a poesia é o gênero verbal de maior dificuldade de realização. O mais exigente para quem cuida das palavras com intenções artísticas. Paradoxalmente, atrai dezenas, centenas, milhares, milhões de pretendentes, não tanto a leitores de poesia, mas a poetas. Como na parábola cristã que se refere ao festim das bodas: muitos são os chamados, poucos os escolhidos.
Raros são os livros de poesia que sobrevivem à passagem do tempo. Menos ainda os que superam um século. O livreto Une saison en enfer está entre os raros.
Escrito de abril a agosto de 1873 e publicado em outubro desse mesmo ano, foi, no início, lido apenas pelos “iniciados” nos círculos da poesia francesa menos convencional. De transição do Parnasianismo e Simbolismo para as Vanguardas. Logo conquistou leitores em diversas outras culturas.
Foi musicado, filmado, adaptado de muitas maneiras. Continuou a influenciar e a despertar paixões. Inclusive no meio da cultura pop. A multiartista e cantora Patti Smith talvez seja o maior exemplo disso.
O título
Do título Une saison en enfer a única palavra que permite mais de uma tradução é saison. Significa estação, temporada, estadia, época, tempo... Assim, o leitor vai encontrar suas equivalências nas diferentes versões em língua portuguesa: Uma estação no inferno (Xavier Placer; Larissa Drigo Agostinho), Uma estadia no inferno (Ivo Barroso), Uma temporada no inferno (Lêdo Ivo; Margarida Gil Moreira; Paulo Hecker Filho), Um tempo no inferno (Julio Castañon Guimarães).
O poeta surrealista português Mario Cesariny (1923-2006) propôs duas soluções: uma, convencional: Uma época no inferno; outra, anárquica: Uma cerveja no inferno. Neste caso, trata-se de uma referência ao estilo de cerveja belga chamado de Saison.
Há uma edição brasileira relativamente recente da “solução” Cesariny para Rimbaud, que reúne tanto Une saison quanto as Iluminações (Chão de Feira, Belo Horizonte, 2021).
Outros infernos
No mais famoso dos infernos literários – o da Commedia escrita pelo italiano Dante Alighieri (1265-1321) – é o espaço que protagoniza. No de Rimbaud, o tempo e a virtualidade. Mais do que o simplesmente sentido, o dos Sentidos, o das Sensações, o das Sensualizações. Borges escreveu um inteligente texto sobre a duração do Inferno. Parte dele pode servir para uma reflexão sobre a temporalização rimbaudiana. Em Rimbaud, o inferno é inverno, sem jogos de palavras. “Temo o inverno porque é a estação do conforto”, ele chegou a escrever. Não era uma frase de efeito; seu horror ao frio era absoluto.
Há, pelo menos, dois infernos em Rimbaud, duplicáveis, multiplicáveis. O inferno interno e o externo. O do mito e da literatura de que resultou o seu livro. O da vida real. Sua e dos outros. Sua em si e em relação com os outros. Em 23 de junho de 1891, ele, doente, no hospital da Imaculada Conceição, em Marselha, escreveu à irmã, Isabelle:
“Não deixo de chorar dia e noite, sou um homem morto, aleijado pra sempre”.
Estava ali reduzido a um quase esqueleto. A perna direita dele havia sido amputada. Sofria de um tumor sinovial, uma hidrartrose, doença das articulações e dos ossos. De modo cru e direto: foi morto por um câncer generalizado dos ossos.
O médico apontou o paliativo da perna artificial, depois da amputação. O paciente teria de exercer o máximo da “ardente paciência”. Pelo menos, por seis meses. Rimbaud, (convidado a ir à casa da irmã), temia a chegada do inverno; mas, ainda no conforto do verão em Marselha, em junho, ele escreve a ela:
“Se eu me fosse contigo, o frio me liquidaria em três meses, ou até menos”. Calculou que não poderia sair a exercitar-se com muletas em menos de seis semanas. Planejava evadir-se em setembro. Confessou, desolado:
“Não consigo dormir nem um só minuto. Enfim, nossa vida é miserável, uma miséria eterna. Para que vivemos?”
Menos de um mês antes da morte do irmão, Isabelle relata:
“Penso e escrevo tudo isto enquanto ele está mergulhado numa espécie de letargia, que não é sono, mas antes fraqueza. Ao despertar, olha pela janela o sol sempre a brilhar num céu sem nuvens, e põe-se a chorar dizendo que nunca mais verá o sol lá fora. ‘Irei para debaixo da terra, me diz, enquanto você caminhará ao sol!’”
O contexto
A primeira edição de Une saison en enfer foi uma autoedição. Diz-se que financiada pela mãe do poeta, Vitalie. No entanto, o fato de que, praticamente, não tenha saído da gráfica o produto contratado sinaliza algum problema entre a encomenda e o pagamento.
Persiste, porém, um ponto legendário intacto, do diálogo entre o poeta e a sua mãe sobre Une saison en enfer. Ela teria perguntado o que ele quis dizer com aquele livro. Resposta: “Quis dizer o que está escrito, literalmente e em todos os sentidos”. Noutras palavras, trata-se de uma “obra aberta”, em que os “direitos” do autor e os do leitor estão imbricados e livres ao mesmo tempo. Talvez uma das melhores abordagens para a literatura e a arte que prospera nos tempos modernos que, segundo o mesmo poeta, é o tempo dos assassinos.
Não houve lançamento nem sessão de autógrafos. Parece que Rimbaud tomou uns poucos exemplares e presenteou a alguns amigos. “A minha vida depende desse livro”, declarou, numa carta a um amigo. Uma vez o livreto impresso, nada aconteceu. Ou melhor: o que se sucedeu a isso sabe-se bem: o poeta deu as costas à poesia e à Europa. Foi tentar fazer a vida na África, como comerciante. Ganhou bastante dinheiro, sem alcançar sua ambição de ficar rico. A doença – precoce como quase tudo em sua vida – impediu-o. Baixou ao Hades, aos 37 anos (recém- completados), no dia 10 de novembro de 1891.
O que representa
Une saison en enfer é uma autobiografia precoce? Uma autoficção? Em ambos os casos, trata-se menos de enfileirar fatos e lembranças e mais inquietações cheias de expectações e expectativas filtradas (no duplo sentido do termo). Daí não faltar quem visse e veja nas, por assim dizer, “camadas tectônicas” do livro, qualidades proféticas, destacáveis em trechos como este:
“Minha jornada se concluiu; deixo a Europa. O ar marítimo queimará meus pulmões; os climas perdidos me tostarão. Nadar, triturar a erva, caçar, sobretudo fumar; beber licores fortes como o metal fundido – como o faziam nossos queridos antepassados ao redor das fogueiras”.
O adeus à Europa e a si mesmo, ao “Rimbaud” adolescente, dá-se por etapas. Em 1876, ingressa na armada real das Índias Holandesas e segue a Java. Ele, que cunhou a frase “fixar vertigens”, não parece fixar-se em nada, exceto como sombra e luz nas fotografias. Tudo o mais é fogo e fuga. Logo abandona o exército, como o faz com outros ofícios. Deserta, escapa, entra na selva escura, e já cumprira mais do que o “meio do caminho” de sua curta vida.
O poeta mexicano Octavio Paz, enxergou no livro Une saison en enfer uma dupla condenação:
“Talvez tenha sido Rimbaud o primeiro poeta que viu, no sentido de perceber e no de vidência, a realidade presente como a forma infernal ou circular de movimento. Sua obra é uma condenação da sociedade moderna, mas sua palavra final, Une saison en enfer, também é uma condenação da poesia. O árido mundo atual, o inferno circular, é o espelho do homem cercado em suas faculdades poetizantes”.
A crítica literária Leyla Perrone-Moisés resumiu o sentido desse livro:
“Em Uma temporada no inferno, ele abandona as formas tradicionais em proveito de uma prosa poética alquímica e alucinatória. ‘É preciso ser vidente, fazer-se vidente. O poeta se torna vidente por um longo, imenso e racional desregramento de todos os sentidos’. Não se deve ver, nessa proposta, uma entrega à ‘inspiração’ ou ao automatismo do inconsciente, como quiseram os surrealistas. Os delírios de Rimbaud são controlados, e suas visões obtidas pela ‘alucinação das palavras’. Sua ‘ópera fabulosa’ resulta da prática desabusada da colagem do intertexto, da mescla do discurso poético com ‘o latim de igreja’, os ‘livros eróticos de má ortografia’, os contos de fadas, as canções populares. É a partir daí que Rimbaud se torna um fantástico manipulador de imagens e de ritmos, o criador de um novo lirismo que ganha força impressiva por ser anti-expressivo e despersonalizado”. (Cultura, O Estado de S. Paulo, 9/11/1991)
Como objeto
Une saison en enfer é uma brochura impressa em papel comum, em outubro de 1873 na Alliance Typographique (M.J. Poot & Cia), em Bruxelas, Bélgica. Peso de 40 gramas. A capa em letras pretas e vermelhas é de C. Leonard. A tiragem – não se pode garantir com exatidão – teria sido de 450 ou de 500 exemplares. Preço: 1 franco. Sequer circulou a primeira edição. Na atualidade, quem quiser ler um exemplar daqueles de 1873 terá de desembolsar dezenas de milhares de euros. Em 2014 a empresa Christie’s pôs a leilão Une saison en enfer e o preço começou em 9 mil euros.
Na casa Sothebys, o livro Vowels, de Rimbaud, com aquarelas de Henri Cartier-Bresson custa quase 2 mil dólares. Um desenho retratando Rimbaud feito por Giacometti foi vendido em setembro deste 2023 por mais de 6 mil libras esterlinas. Em maio de 2021, o livro Relicário, que reúne suas “poesias”, publicado em 1891, foi arrematado por mais de 9 mil euros, um exemplar da primeira edição de Une Saison en Enfer, por 15 mil euros. E uma edição especial, de 1951, por mais de 16 mil euros.
A arte contemporânea vem alcançando bons preços com o tema Rimbaud. De Robert Mapplethorpe, na mesma Sothebys, em 2019, vendeu por 15 mil dólares uma representação rimbaudiana, e um trabalho de David Wojnarowicz (1954-1992) saiu por mais de 12 mil.
No mundo das letras também os números podem alcançar o preço de uma bolsa ou um sapato caríssimo de grife: um manuscrito de Verlaine foi vendido, em 2018, por mais de 55 mil euros, e uma carta de Rimbaud a Isabelle, sua irmã, nada menos que 405.000 euros. A carta fazia parte da coleção da baronesa Alexandrine de Rothschild (1884-1965). Foi vendida em 9 de outubro de 2018, na Sothebys. Certamente, ajudaram a aumentar o preço, além de todos os aspectos óbvios, a morbidez. A carta é datada de 10 de julho de 1891. Inseridos nela estão três desenhos do próprio punho de Rimbaud. Não são desenhos quaisquer. Mostram sua perna de madeira, suas duas muletas e um modelo de perna artificial. Servem como testamento e testemunho. No imenso rosário de desabafo, culmina com este: por mais estúpida que seja sua existência, os seres humanos sempre se apegam à vida. Quatro meses depois, Arthur Rimbaud estará morto. Não, ele não se casou na França, como havia sonhado, num hipotético e malogrado regresso. Não formou uma família sua nem teve futuro. Exceto na Poesia.
Durante décadas correu a lenda de que o autor tomara para si alguns exemplares e queimara o restante da tiragem. Até o achado de 1901 de Léon Losseau (1869-1949), advogado, bibliófilo e colecionador. Esquecidos no estoque da tipografia, mais de 400 exemplares de Une saison en enfer. Por que não saíram da gráfica? Provável falta de pagamento sólido para os custos de impressão.
Losseau diz que tratou de salvar logo o que se deteriorava por força da umidade. Adquiriu então 425 exemplares. Ele conta os detalhes no opúsculo publicado em 1916: A lenda da destruição por Rimbaud da primeira edição de Une saison en enfer.
O livrinho de Rimbaud estrutura-se como um conjunto de poemas em prosa. Antes de optar pelo título definitivo, ele chamou-o de Livro Pagão e de Livro Negro. Um tanto do frêmito novo que provoca vem justamente dessa magia negra e do paganismo latentes como eflúvio da linguagem. Vidência e alquimia do verbo são expressões que permeiam a intenção e a feitura do volume.
Como produto gráfico Une saison en enfer é, em sua primeira edição, um tanto quanto peculiar. Sobretudo na forma de enfeixar os fólios. Com o uso abundante de páginas em branco, que alcançam 17. Quase um terço do total das páginas.
É fácil notar que os cadernos são irregulares. Partindo de um de quatro páginas, vêm, na sequência, três cadernos de 12 páginas, e depois, de 16. Parece que a soma de 52 páginas foi insuficiente, e por isto colocou-se uma folha adicional após o último caderno.
O leiaute da impressão tampouco segue um padrão de todo regular.
Essa edição princeps, segundo os que a examinaram detidamente, como André Guyaux, contém muitos erros. Na Plêiade, os especialistas, corrigiram esses equívocos a partir do manuscrito. David Ducofree, numa nota de junho de 2011, fez referências a essas correções, no blog Rimbaud ivre.
É altamente improvável que Rimbaud tenha corrigido alguma prova antes da impressão. Dá-se, então, o que os leitores especializados consideram um jogo perturbador. Um tipógrafo ao “corrigir” erros com outros erros aumenta os erros. Tudo pode começar com não conseguir ler decifrar corretamente um termo do manuscrito. A parte irônica disso é que uma poesia hermética como a de Rimbaud está muito mais propensa a esse tipo de jogo de sabe-se-lá-de-quantos-erros. Associações surpreendentes de palavras e outras peculiaridades do estilo terminam por “estimular” uma forma de edição surrealista, involuntariamente. Embora as falhas de transcrição editorial não costumem melhorar a poesia de ninguém.
A estrutura do texto
Ao ler a palavra poesia, a maioria dos leitores pensa em verso, métrica e rima. Une saison en enfer é composto utilizando uma estrutura diferente. A do poema em prosa. Algo mais frequente na poesia de outros países do que no Brasil. Na literatura de língua árabe a prosa alcança níveis de elaboração e riqueza notáveis, presentes no Ocidente apenas nos grandes romancistas e poetas. Um dos exemplos é a maqama. No caso de Une saison en enfer cabe pensar no prosimetrum, uma forma literária usada na literatura escrita em latim, que reúne tanto prosa quanto verso. Mas, o melhor é não avançarmos muito nessas sutilezas tão especiais e específicas e nos determos apenas na estrutura do livro como um conjunto de poemas em prosa: Depois de uma introdução sem título, vêm, na sequência: “Sangue ruim”; “Noite do inferno”; “Delírios I”; “Delírios II”; “O impossível”; “O relâmpago”; “Manhã”; “Adeus”.
O poeta e tradutor Lêdo Ivo explica o contexto francês:
“Um dos mistérios da língua francesa: a presença, desde o seu alvorejar, de uma linhagem de poetas que se exprimiram em prosa, e desta souberam extrair tesouros talvez não encontradiços nos poemas feitos em versos. a essa numerosa e até suntuosa família de poetas em prosa pertencem, entre muitos outros, o orador sacro Bossuet, com a pompa rítmica de seus sermões encantatórios (...) E grandes poetas também em versos que escreveram poemas em prosa, como Victor Hugo, Théophile Gautier, Baudelaire e Mallarmé - sendo que, no caso do Victor Hugo, os seus poemas em prosa têm a proporção monumental dos romances Les misérables e Notre Dame de Paris, epopeias modernas.
“A tradição do poema em prosa, presente em nosso século em grandes poetas como Pierre Reverdy e Saint John Perse, André Breton e Leon-Paul Farque, atravessa toda a literatura francesa, tornando discutíveis, em muitos casos, as divisas entre prosa e poesia, quando diante de nós está um texto prosístico de Flaubert e Renan, de Michelet ou Barrés, de Proust ou Claudel, de Cocteau ou Cendrars.”