Havana, Tancredo, a trova e os correios

O Brasil não tinha relações diplomáticas com Cuba. No meio da doença que levaria à morte de Tancredo Neves, em 1985, eu estava em Havana.

Minha mulher, Bia Wouk, que me acompanhou, foi recebida com flores no aeroporto. Nos meios oficiais achavam que, não por acaso, um diplomata lotado no México tivesse sido designado para integrar uma delegação técnica. Reunião longa, do começo de abril ao dia 20, com o objetivo de mudar a constituição da União Postal das Américas e Espanha.

Era previsível o interesse local em conhecer a nova perspectiva do governo brasileiro. Tanto que, antes da viagem, liguei para Brasília e recebi a resposta: “Ouça tudo e não diga nada”.

Quanto à reunião técnica, recebi instruções precisas e inúteis: ponto por ponto, diziam que, no caso da proposta sugerindo “x”, eis os argumentos para “y”. Só que a discussão era sobre “z”, e não havia como se comunicar com agilidade seja com o México seja com o Brasil.

Felizmente eu não tinha só agenda oficial. Trazia cartas de apresentação de amigos no México com laços pessoais em Cuba.

Na área literária, várias delas do poeta e ficcionista Álvaro Mutis. Elas me levaram a escritores do grupo da revista Orígenes (1944-1956), Eliseo Diego, Cintio Vitier e a poeta Fina García Maruz.

Carta de outro amigo era para um produtor musical. Através dele, conhecemos uma Havana divertida. Viramos noite regada a rum ouvindo no apartamento do compositor Frank Fernández seu virtuosismo ao piano. Conhecemos membros da nova trova. Um deles, Vicente Feliú, deixou-nos, na véspera de nossa partida, cópia datilografada dos poemas sobre os quais compunha suas canções, entre os quais o que daria o título ao disco que lançaria naquele ano: “No sé quedarme.”

A reunião técnica havia permitido camaradagem com o Presidente dos Correios cubanos, que mandaria para o México os dois grandes sacos de livros que eu havia acumulado.

Uma funcionária do Ministério da Cultura nos levou à casa de Hemingway, ao teatro, ao museu com obras de Wifredo Lam, sempre interessada em tudo o que fazíamos, e não sabíamos se a extrema gentileza incluía a obrigação de nos vigiar. Mas que risco isso poderia trazer?

Hospedados no Hotel Riviera, um dia recebi uma chamada. Aceitaria o convite para descer ao quarto número tal do mesmo hotel? Havia entre os diplomatas, um encarregado de Brasil. Ouvi tudo, inclusive sobre as vantagens do comércio recíproco. Nada tinha a dizer.

À medida que a saúde de Tancredo se agravava, sentíamos o nervosismo local. Sem que os telefones funcionassem sequer para me comunicar com a Embaixada no México, outro contato passado por amigos se tornou nossa melhor fonte de notícias: o correspondente da France Press.

Saímos de Cuba no dia da morte de Tancredo, 21 de abril, e um dia depois de um consenso na reunião técnica sobre a nova constituição do organismo e sobre o Correio Aéreo Acelerado.

Ironia que tenha levado seis meses o transporte dos livros. Lento também foi o processo de restabelecimento das relações diplomáticas. Já em Brasília, encarregado de um setor de planejamento ligado ao Gabinete, recebi a incumbência de minutar a exposição de motivos a ser enviada à presidência, primeiro passo para a mudança da posição brasileira.

Um dia, em Miami, recebo mensagem pelo Facebook do produtor musical que nos havia introduzido a todo um mundo da música de seu país. Num almoço em nossa casa, soubemos do inferno após nossa passagem, que começou com uma investigação sobre como e por que ele havia conhecido o diplomata brasileiro. Aproveitando um show, veio para São Paulo, via México, com sua família, que agora emigrava para a Flórida.