Gullar junta Augusto e João Cabral na mesma vida e morte nordestina

Já pensou se “a aritmética hedionda dos coveiros”, verso pandêmico de Augusto dos Anjos, fosse aplicada nos cemitérios pernambucanos de João Cabral de Melo Neto? Já pensasse? – agora usamos o verbo na conjugação especial do Recife, para combinar as assombrações com a prosódia.

O maranhense Ferreira Gullar (1930-2016) pensou nessas coincidências mortais que unem dois poetas tão dessemelhantes em torno da “velha da foice”. Cismou, em uma noite em Lima, no exílio peruano de 1974, que o indigente retratado pelo gótico da Paraíba é o mesmo da obra do poeta-engenheiro de Pernambuco.

Vamos ao cabralino “Congresso no Polígono das Secas”, por exemplo, e encontramos os esoterismos sombrios dos “Versos a um coveiro” convertidos em miséria social e matemática: – Aqui, toda aritmética/ dá o resultado nada, /pois dividir e subtrair/ são as operações empregadas.

Augusto dos Anjos evocou Pitágoras e a progressão dos números inteiros para o além-túmulo; João Cabral viu os cemitérios do interior como lugar de quem não jaz, de quem leva suas próprias moscas para ser despejado na terra. Se Augusto é orgânico (decomposição da carne, ossos, cadáveres, caveiras), João é mineral (cal, giz, pedra, deserto).

Cada um com o acerto de contas que cabe no seu poema, no seu repertório e estilo; ambos diante da cova. Sete palmos finais da matéria (diria João), rebuliço dos vermes, estes operários das ruínas (discursaria Augusto).

Ao cismar, ainda na cidade de Lima, com a ideia de unir os dois poetas, Gullar se empolgou e nos deu um ensaio extraordinário: Augusto dos Anjos ou Vida e morte nordestina. Terminou de escrever em 1975, no seu novo endereço de exilado, Buenos Aires. O estudo crítico faz parte do livro Toda poesia de Augusto dos Anjos, publicado pela editora José Olympio.

“É impressionante a quantidade de poemas de João Cabral acerca de cemitérios, defuntos e enterros. Sem falar em Morte e vida Severina”, escreveu o autor. “É uma afinidade de contrários: ambos são obcecados pela morte. Ambos, descendentes de famílias decadentes da oligarquia rural nordestina, dos engenhos, são testemunhas de um mundo que deteriora, têm a morte presente.”

Última quimera
Ferreira Gullar tinha uma autêntica obsessão por Augusto dos Anjos e defendia a obra do gótico paraibano, de forma passional, até em mesas de bares, como testemunhei no Cantinho do Leblon, nos anos 1990. Naquela ocasião, o gênio do “Poema Sujo” acabou recitando, em cima de uma cadeira de fórmica vermelha, “Versos Íntimos”, um dos sonetos mais célebres do seu ídolo: Vês?! Ninguém assistiu ao formidável/ Enterro de tua última quimera./ Somente a Ingratidão – esta pantera – /Foi tua companheira inseparável!

Foi em uma resenha movida a uísque, aliás, que Gullar convenceu o amigo Darcy Ribeiro, outro notável brasileiro exilado em Lima, da grandeza do autor do livro Eu. Nesse encontro, por ironia gutenberguiana do destino, o maranhense conseguiu mostrar ao antropólogo mineiro que Augusto tem uma obra breve, mas importantíssima para a poesia brasileira. No embalo, Darcy, convencidíssimo, praticamente decidiu sobre a publicação do ensaio Augusto dos Anjos ou Vida e morte nordestina.

Em 2010, uma semana depois de ganhar o Prêmio Camões, o mais importante da língua portuguesa, Gullar relembrou esse momento, em uma entrevista ao repórter João Pombo Barile, do jornal O Tempo, de Belo Horizonte:
“Um dia eu estava na casa do Darcy, em Lima, e começamos a conversar sobre poesia. E eu disse para ele: "Um dos meus poetas prediletos é o Augusto dos Anjos". E aí o Darcy falou: "Ah, que Augusto dos Anjos que nada. Aquele negócio de Escarra nessa boca que te beija". E eu falei: "Oh, Darcy. Augusto não escreveu só isso... Eu vou te dizer uns poemas que eu sei de cor".
Soneto vai, soneto vem, o poeta maranhense filiou mais um intelectual à confraria augustiana, uma missão que levou a sério até o ano da sua morte, em 2016.

“E disparei (a dizer poemas). Aí ele se entusiasmou: "Cara, eu nunca imaginei que o Augusto fosse um poeta tão bom", contou Gullar. “Daí a uma semana, o editor Fernando Gasparian chegou a Lima para tratar de negócios. E nós fomos almoçar com ele. No meio do almoço, o Darcy falou: "Olha, o Gullar está escrevendo um ensaio sobre o Augusto dos Anjos e queria que você publicasse, Fernando". Ele topou na hora. E o Darcy então falou: "Mas tem que adiantar um dinheiro. Ele então me deu US$ 100, para um livro que eu nem tinha escrito”.

Embora o tema mais valioso seja a comparação com João Cabral de Melo Neto – motivo inclusive da homenagem do título a Morte e vida Severina – o ensaio abarca também a miséria e as malasartes fúnebres & funerárias no Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa, no Infância de Graciliano Ramos e n`Os sertões” de Euclides da Cunha. Aí está uma geografia literária da terra do sol, com o recorte sobre os indigentes e os cemitérios gerais.

Gullar fez também uma viagem ao fim da noite na poesia brasileira. Uma aula de educação pelo lado soturno da existência:

“Para Cruz e Sousa, a noite é ‘a grande Monja negra’; para Carlos Drummond de Andrade, ‘a noite banha tua roupa’; para Augusto dos Anjos, ‘a noite funcionava como um pulso’”, comparou. “Para Raimundo Correia, a lua é um ‘golfão de cinzas’; para Drummond, a lua é ‘diurética’; para Augusto, ‘um doente de icterícia’”.

O sim contra o sim
As revelações do ensaio de Ferreira Gullar encontram lastros em uma confissão feita por João Cabral ainda na sua mocidade, conforme relato do professor Ivan Marques, na biografia mais relevante do poeta pernambucano, lançada em 2021 pela editora Todavia.

“No Recife, nas conversas com os amigos da roda literária de Willy Lewin, que se estendiam pelas madrugadas, João repetia sempre que, à exceção de Augusto dos Anjos, a tradição lírica brasileira, com seus poetas românticos e parnasianos, não lhe despertava o menor interesse”, conta o biógrafo.

No poema “O sim contra o sim”, do livro Serial (1961) João escala Augusto entre quatro pares de mestres do fazer poético, decifrando os segredos das oficinas de cada dupla. Os eleitos são Marianne Moore e Francis Ponge, João Miró e Piet Mondrian, Juan Gris e Jean Dubuffet e Augusto dos Anjos e Cesário Verde.

Assim, o autor de “O cão sem plumas” faz a leitura preciosa do universo do ídolo paraibano: Augusto dos Anjos não tinha/ dessa tinta água clara./ Se água, do Paraíba/ nordestino, que ignora a Fábula./ Tais águas não são lavadeiras,/ deixam tudo encardido:/ o vermelho das chitas/ ou o reluzente dos estilos./ E quando usadas como tinta/ escrevem negro tudo:/ dão um mundo velado/ por véus de lama, véus de luto./ Donde decerto o timbre fúnebre,/ dureza da pisada,/ geometria de enterro/ de sua poesia enfileirada.

Paisagens com figuras
A presença dos cemitérios na obra de João Cabral de Melo Neto daria um roteiro turístico-literário, para a sorte do seu leitor e carona dos fãs de Augusto dos Anjos. A maior parte desses lugares conheceu em viagens com o guia Francisco Bandeira de Mello, também poeta e secretário de Turismo e Cultura de Pernambuco nos anos 1980.

No livro Paisagens com figuras, encontramos “Cemitério pernambucano”, com os sítios fúnebres de Toritama, São Lourenço da Mata e Nossa Senhora da Luz. No Quaderna, visita-se o “Cemitério alagoano”, no Trapiche da Barra, na capital de Maceió – um raro campo santo litorâneo.

É, porém, na cartografia de São Lourenço, na região metropolitana do Recife, que o autor dialoga com o cemitério marinho do colega francês Paul Valéry:

É cemitério marinho
mas marinho de outro mar.
Foi aberto para os mortos
que afoga o canavial.

As covas no chão parecem
as ondas de qualquer mar,
mesmo as de cana, lá fora,
lambendo os muros de cal.

Pois que os caneiros de terra
parecem ondas de mar,
não levam nomes: uma onda
onde se viu batizar?

Também marinho: porque
as caídas cruzes que há
são menos cruzes que mastros
quando a meio naufragar.

Depois do mar de cana, nem tão assombrado assim, a viagem segue para o sertão, com as visões do “Cemitério paraibano” (Entre Flores e Princesa) e das catacumbas pernambucanas de Floresta do Navio e Custódia.
Voltar à vida e morte nordestina de Ferreira Gullar é preciso, neste ponto final que emparelha as redes dos indigentes de Augusto dos Anjos e João Cabral de Melo Neto.

O universo metafórico de Augusto, grifa o poeta maranhense, se alimenta da podridão, dos vermes, da noite, do luto, do carvão, dos signos zodiacais, da superstição; o de João Cabral, da calcinação, da aridez, do ossuário, da cal viva – a morte diurna. Os mortos de Augusto apodrecem e fedem; os de João secam, viram cal; Augusto fala de sua própria morte; João, da morte dos outros.

Foi com a aritmética hedionda do gótico da Paraíba que contamos as vítimas na pandemia da Covid-19. É com a matemática do poeta-engenheiro pernambucano que sentimos a partida dos indigentes que dividem o resto pelo nada.

*Xico Sá é autor de A Falta (Tusquets), Big Jato (Companhia das Letras) e Sertão Japão (Casa de Irene), entre outros livros.