César Leal: os primeiros tempos

César Leal ia construindo a sua poesia e os fundamentos da sua crítica literária ao mesmo tempo em que fazia reportagens e traduções, atuava na política e na saúde pública

Antes de fixar-se definitivamente no Recife, César Leal andou pelo Amazonas e por Minas Gerais, com paradas também no Pará e no Rio de Janeiro. No período de Manaus ainda não era a literatura o que o fazia conhecido em sociedade, e, sim, o jornalismo e a política. Sim, a política. Ele foi um dos membros do Partido Comunista amazonense, chegando a integrar o diretório da capital, como “subsecretário de organização”. Levava o assunto a sério, e parece ter sido assim ao longo de muito tempo. Do contrário não teria Aníbal Fernandes afirmado, já no fim da década de 1950, sobre ele: “puxa pela perna esquerda, a ponto de estar a falar-me sempre no maravilhoso panorama cultural da União Soviética”.

Algumas pistas da sua colaboração na imprensa do Norte, com pouco mais de 20 anos de idade, podem ser rastreadas. Uma delas é um texto que reflete a atividade profissional na área da saúde pública.

“A maior arma no combate e prevenção da sífilis é, sem nenhuma dúvida, as medidas educacionais. O assunto é vasto e não temos a pretensão de explicá-lo em um simples artigo. Contudo, chamamos a atenção para o aspecto individual do problema. Nenhuma pessoa deve utilizar objetos de uso pessoal de outrem, como sejam toalhas, escovas, navalhas etc. Castelló cita casos de transmissão da sífilis pela simples utilização de um copo recentemente usado por um enfermo. Após o ato sexual, deve-se fazer uma limpeza cuidadosa das partes genitais. Se mesmo assim aparecer no fim de três semanas um pequeno botão rosado que varia do tamanho de uma cabeça de alfinete até um grão de arroz ou mesmo maior, deve-se imediatamente procurar um médico e seguir os seus conselhos. Somente com o apoio do povo será possível, como tão sabiamente afirma o dr. Stimson – ‘fazer desaparecer da face da terra a sombra escura da sífilis’.”

Foi assim, em tom didático, que ele tratou do problema no artigo “Os perigos da sífilis”, publicado no Jornal do Commercio, do Amazonas, em 13 de maio de 1947. No mesmo jornal e ano, ele escreveu um outro artigo, sobre a “Colônia cearense”, que integrava, aliás. Em 24 de agosto de 1948, saiu esta nota no JC:

“FRANCISCO CÉSAR LEAL – Pelo avião da Panair do Brasil, que decolará da Ponta Pelada às 10 horas e 30 minutos de hoje, segue até à capital da República, a tratamento de saúde, o sr. Francisco César Leal, destacado funcionário do Departamento Nacional de Imigração, secção deste estado, desenvolvendo suas atividades há anos junto à Hospedaria do Pensador. O sr. Francisco César Leal, nosso confrade de imprensa, pretende demorar-se alguns dias em Belém e Fortaleza, onde tem família, após o que seguirá para o Rio de Janeiro, dali regressando a Manaus, logo que termine o tratamento de saúde que necessita”.

É em Minas Gerais, no entanto, que sua vocação literária faz-se pública, justamente numa revista chamada Vocação. Dirigida pelo poeta Affonso Ávila e o crítico Fábio Lucas. Parece tão bem integrado ele em Belo Horizonte que, numa notícia publicada no Diario de Pernambuco, assim é descrito:

“Cearense de nascimento, diz-se mineiro de coração. Embora pertencendo a uma geração de novos, entre os elementos da velha guarda modernista foi que formou suas amizades. É amigo íntimo do poeta Emílio Moura e do ensaísta Cristiano Martins”.

Segundo registra o Diario de Pernambuco (5 de julho de 1953), teria chegado a Pernambuco em outubro de 1952, procedente de Manaus. Antes de residir no Recife, morou em Palmares e Ribeirão – zona da mata sul. Sua primeira colaboração no Diario como teórico da literatura parece ter sido com o artigo “Poetas ingleses contemporâneos” (1º de novembro de 1953). Já demonstrava, aos 29 anos de idade, que eram maduros e sólidos os seus conhecimentos da história e teoria da literatura. Isto, por exemplo, afirmava sobre Dylan Thomas:

“A moderna poesia inglesa cresce sob o sino da fulgurante personalidade de Dylan Thomas, este jovem poeta, renovador da poesia britânica a partir da última guerra, pertence à Nova Apocalipse, escola de poesia liderada por Henry Treece. De grande precocidade, aos 18 anos conquistava na Inglaterra o que Rimbaud somente aos 19 conseguiria na França. Dylan Thomas não apresenta em seus poemas a frieza intelectual que caracteriza os trabalhos de Auden e de Empson”.

Logo trataria também de divulgar no DP a sua poesia. Um exemplo: os “Dois sonetos acrobáticos”, que publica em 6 de dezembro de 1953, e “O profeta”, em 14 de março de 1954. Ambos escritos em Palmares.

Nesse ano de 1954, sai sua nomeação para o cargo de auxiliar técnico, padrão C, do departamento de saúde pública. Data igualmente da época o início da sua atuação como repórter do Diario de Pernambuco. Uma das primeiras reportagens tem como título “Mar: fonte de amor e poesia”:“Estamos em agosto, às vésperas da próxima temporada dos banhos de mar. Dentro de alguns dias as praias estarão repletas de banhistas atraídos pela irresistível magia do oceano”.

As suas observações despretensiosas terminam por servir também de um pequeno retrato social da praia. Nelas combina desde considerações líricas sobre o mar a uma descrição de alguns hábitos dos seus frequentadores e até informações sobre concurso de beleza:

“De toda parte surgem meninas ruivas, louras e morenas, sereias bronzeadas, ofertando às brisas da manhã a suavidade deliciosa de sua epiderme e o encanto de seus cabelos úmidos. Muito já permanecem o dia inteiro sob o sol, e para isso trazem cestas cheias de frutos, sanduíches, ovos cozidos e refrigerantes. Infelizmente, como diz o poeta Neveaux, essa é também a época dos primeiros náufragos...”

Em resposta aos que dizem existir praias visitadas apenas por pessoas refinadas (ele usa o termo francês raffinée), pondera:

“Todos sabemos que a praia não é propriedade de animais humanos. Todo indivíduo, desde que se comporte como um peixe ou como um caramujo, pode frequentar qualquer praia. Ali vemos ombro a ombro príncipes e plebeus, políticos influentes e simples líderes operários, filhos de usineiros e empregadas do comércio. O mar não exige carteira de identidade social para que se possa penetrar nos seus salões líquidos. É uma piscina construída por deus e oferecida a toda humanidade; um local de educação urbanista, onde se deve evitar atitudes capazes de perturbar a paz dos que vão ali fazer sua higiene mental e física.”

Indaga ele no texto quem será a futura rainha do verão, e lembra que:

“No ano passado, na Praia do Farol, em Olinda, a temporada balneária iniciou-se com uma corrida de jangadas. A competição foi empolgante, cobrindo o percurso Olinda-Itamaracá-Olinda, em 5 horas e 30 minutos. O feito foi irradiado pela Tamandaré, sob o patrocínio de uma de nossas casas comerciais”.

Conta o repórter que cerca de 5 mil pessoas assistiram ao desfile das candidatas à rainha da Praia do Farol e que foi eleita Gerda Medeiros. Na reflexão sobre o florescimento do amor e da poesia, sublinha como suas características a renovação da luz no verão – que serviria de título de um dos seus livros, o Jornal do Verão – estação em que “os domingos são esperados com ansiedade”. Mas alerta: “O mar, apesar de toda sua aparente beleza, é cruel”.

A reportagem conclui-se com um poema evocando a mitologia grega. Está sem título nem autor e parece algo truncado no final. As primeiras estrofes são estas: “Leva-te o mar, Helena, e vais a medo/ por entre fluidas algas e correntes,/ bocas te fitam, ilhas em segredo,/ acendem tua dor sanguíneos dentes.// Golpes de Xiphias Gladius reluzentes/ cadaverizam gestos num penedo,/ recuam horizontes, sóis nascentes,/ teus gritos se hermetizam num rochedo.” Embora não esteja assinado, o poema é de autoria de César Leal, que o incluiu em livro como “Soneto narrativo”. Esta é a versão tal como aparece no Tambor cósmico:

SONETO NARRATIVO
LEVA-TE o mar, Helena, e vais a medo
por entre fluidas algas e correntes,
olhos marinhos fitam-te em segredo,
acendem tua dor sanguíneos dentes.

Golpes de velhos peixes reluzentes
cadaverizam gestos num penedo,
recuam horizontes, sóis nascentes,
teus gritos se hermetizam num rochedo.
Fugiste, Helena, às prometidas cãs!
Teus cílios no verão, era de vê-los
envoltos pela ebórea luz das trans-

lúcidas estrelas. E agora, em mágoas,
nas praias sonho teus gregos cabelos
dispersos em angústia pelas águas.

Nesse tempo de grande vigor intelectual, é possível começar acompanhar outro talento menos conhecido de César Leal: o de tradutor. Tradutor bissexto, talvez, poder-se-ia acrescentar, com maior exatidão, pois não foi atividade que exercesse de modo constante. Um dos primeiros exemplos da sua recriação de autores estrangeiros está um poema do francês Paul Éluard. Não há título, apenas estas informações: “Um poema de Éluard, tradução de César Leal”. Alguns meses depois, em 1º de janeiro de 1956, no mesmo Diario, publica outra, feita desta vez a quatro mãos com o seu colega Marco-Aurélio de Alcântara. Um soneto de Luis Martín de la Plaza, cujos versos de abertura são: “Vejo, senhora, ao som deste instrumento,/ ao cantar minha voz teu nome santo,/ parar os rios a escutar meu canto,/ correr os montes e calar o vento”.

As línguas de que traduz são variadas – francês, espanhol, inglês (uma versão sua do poema “A ti, ó democracia”, de Whitman, foi publicada no Diario). Em 27 de maio de 1956, é uma página de prosa por ele traduzida: “Hierarquia das artes”, de Felicien Challaye; e quase dois anos depois, em 28 de fevereiro de 1958, divulga “A resposta de Giotto”, um trecho da obra de Boccaccio, na sua versão.

Como repórter, sua versatilidade parece ainda maior, embora nunca se constate o mero prosaísmo da reportagem em si nos seus textos. Daí talvez a observação do também jornalista Marco-Aurélio de Alcântara:

“Não exageraria até mesmo quem dissesse que o sr. César Leal, se não tivesse encontrado no verso a sua vocação intelectual seria ilegível como ensaísta ou extremamente cientificista como professor de filosofia. É espantosa a sua contradição como jornalista”.

A “espantosa contradição como jornalista” fez com que produzisse reportagens que abrangem campos tão diversos. Em 22 de outubro de 1955, sobre “a primeira reunião dos médicos do programa do Nordeste do serviço especial de saúde pública”. Aconteceu em Palmares. A reportagem está intitulada “Notas à margem de um congresso médico. Destaque para as questões de saneamento e abastecimento de água”. Disso salta para outra: “O Recife dominado pelo espírito do Natal: Papai Noel saiu às ruas e as lojas foram ornamentadas; preços e presentes; a ceia e a Missa do Galo”. Em 25 de dezembro de 1955.

Além das praias, do comércio, da saúde, havia nas pautas do repórter César Leal espaço para a literatura. Um exemplo é a série Escritores do Nordeste, que começou a publicar em janeiro de 1956. Waldemar Valente foi o primeiro. Depois veio uma entrevista com Eduardo Portella: “Ou a nossa crítica se renova, ou desaparecerá, perderá a razão de ser”. Em seguida, em 4 de março de 1956, enfocou Gonçalves Fernandes. Já em 3 de fevereiro de 1957, a reportagem centra-se em Angela Delouche: “Não me preocupam os problemas da técnica literária de construção”.

Esteve longe, porém, de ser a literatura o tema principal das suas reportagens. Em 3 de junho de 1956, é sobre política e economia que escreve César Leal: “Desigualdade de tratamento nos coloca em plano de colônia: 2 bilhões para construção de estradas no Sul, e apenas 37 milhões para nosso estado”. Em 24 de junho desse mesmo ano trata da “Utilização de adubos orgânicos na cultura canavieira do Nordeste.” Menos de um mês depois, volta-se para a arte, na reportagem sobre Eva e Américo Makk: “As telas que emocionam pela serena autenticidade de sua poesia. Desenho exato e harmoniosa distribuição de cores dominam a pintura de Makk – uma arte que se integra na melhor tradição impressionista”.

Por volta desse mesmo tempo, é a vez, em 19 de agosto de 1956, de se voltar de novo para as questões de saúde pública: “O Instituto de Micologia mantém contacto com 150 órgãos científicos. Instituição que honra o Brasil ante os demais países do mundo”.

Em 28 de abril de 1959 publicou “Severas críticas ao latifúndio no Nordeste: usinas engolirão os fornecedores de cana”. Passou vários dias em Garanhuns cobrindo um seminário econômico. Na série foram publicadas ainda as seguintes reportagens: “Incentivo ao desenvolvimento da indústria algodoeira”; “Deslocamento da fronteira agrícola para interior de Goiás e Maranhão: ambas em 29 de abril 1959. No dia 1º de maio de 1959 foi a vez de “Uma indústria petroquímica para a Bahia”.

Além da literatura, parecia estar mais à vontade como repórter quando escrevia sobre saúde. Vale a pena ler “Mais de 100 mil doentes mentais nas ruas do Recife” (Diario de Pernambuco, 13 setembro de 1959). Como se não bastasse, enquanto refletia sobre as abstrações da poesia e da teoria literária, resenhava as mais de 500 páginas da Monografia dos fungos micropeltaceae, de Chaves Batista.

Até o fim da década de 1950, era assim variada a atividade de César Leal, e antes de fixar-se definitivamente no Recife, trafega por cidades do interior de Pernambuco, e com retornos a Minas Gerais. Tanto é que, em 1955, é de Belo Horizonte que situa e data uma colaboração enviada ao Diario de Pernambuco: a respeito da poesia de Antero de Quental. Paralelamente à atividade que se intensifica de crítica e teoria literárias – sobretudo da poesia – passa a divulgar mais constantemente os seus próprios poemas nos periódicos. Um deles, a “Ode quase bíblica”, pode ser incluído naquele tipo de poesia engajada ou interessada na política. Isso está explicitado no subtítulo: “Aqui se fala da paz por ocasião do armistício de Pan Mun Jom”, e está dedicado a Ronald Bottrall. O poema foi publicado no Diario em 18 de setembro de 1955. Cabe explicar o contexto que o motivou, desencadeado dois anos antes. A guerra da Coreia.

Em 27 de julho de 1953, na cidade de Panmunjom foi firmado o armistício por Kim Il Sung, líder da Coreia do Norte, Mark Clark – da ONU – e Peng Dehuai, comandante dos voluntários chineses. Significava o cessar fogo, o fim das hostilidades, mas não a paz definitiva. Em posterior publicação de sua “Ode quase bíblica” o autor mudou o subtítulo para algo mais amplo, e passou a falar da “da paz aos homens de boa vontade”, e estendeu a dedicatória a Bueno de Rivera.

Em 1956, obteve o primeiro reconhecimento por um trabalho de relevo intelectual. O seu ensaio “Menéndez Pelayo e a estética hegeliana” foi o vencedor de um concurso promovido pelo Instituto de Cultura Hispânica e pela Faculdade de Filosofia do Recife para marcar o centenário de nascimento do escritor espanhol.

Faltava-lhe estrear como poeta em livro. Em 22 de janeiro de 1956, o Diario de Pernambuco noticiou: “César Leal publicará este ano Invenções da noite menor, em edição limitada para subscritores.” O livro terminou saindo no ano seguinte, sob o selo da Editorial Argo. Por trás da marca mitológica estava o próprio autor. Teve várias críticas favoráveis, como a de Marco-Aurélio de Alcântara: “A impressão que se tem da leitura de Invenções da noite menor (livro I) é a de um artista que expressa uma angústia existencial do tipo que Sartre caracterizou em Antonio Roquentin”. Mas nenhuma divulgada naquele tempo foi mais certeira do que a opinião do jornalista Aníbal Fernandes:

“O poeta César Leal fez-se editor de si mesmo: ele mesmo desenhou a capa do seu livro Invenções da noite menor, ele mesmo escolheu os tipos, ele mesmo criou uma editora, que pode, por sua vez, editar outros poetas. César Leal é amigo de outros poetas: e fugindo à regra de que o nosso maior inimigo é o oficial do mesmo ofício, dedica o seu livro a nada menos de sete poetas e artistas. Isso quer dizer que ele tem uma capacidade de admiração, que lava a sua alma da peçonha.

“Esse poeta, que nasceu no Ceará, e andou pelas Alterosas, penso que acabará no Recife, onde se fixou, para trabalhar num ramo, que às vezes, a rigor, nada tem de poético, mas outras vezes oferece margem a aventura: reportagem.

“Do Recife não fala; parece que a cidade ainda não o penetrou; mas nos ‘Quatro poemas rurais’ falam das ruínas de Belmonte; das vacas de Belmonte; dos currais de Belmonte e das ruínas do açude. Isso tanto pode aplicar-se a Belmonte, quanto a qualquer outro cenário parecido. Nesse ponto, Belmonte deixa de ser um motivo regional, para ser universal.

“Não é César Leal um poeta que se agarre a esses temas; por isso é o que se pode chamar de menos folclórico possível. Ele mesmo diz, num de seus ‘Sonetos acrobáticos’, que o seu pensamento é pluma, que o liberta do fácil; que lhe possa prender a voz. Para ele, poema sem mistério é prosa pura. Prefere assim os vales abstratos; os negros veleiros, carregados de lágrimas; os abismos de âmbar da noite.

“Com o seu ar meio distante e distraído, o seu olho estrábico e a sua voz mansa, César Leal é um poeta que o Recife incorporou ao seu patrimônio. Mas o que nele sobreleva é sempre universal; o regional, nunca.”

Também muito exato é Mauro Mota quando afirma:

“O Recife habituou-se tanto a conhecer César Leal, com as suas esquivanças e as suas neuroses, que ainda não tomou todas as dimensões da importância dele.”

Mário Hélio é editor das revistas Pernambuco e Continente