SONETO NARRATIVO
LEVA-TE o mar, Helena, e vais a medo
por entre fluidas algas e correntes,
olhos marinhos fitam-te em segredo,
acendem tua dor sanguíneos dentes.
Golpes de velhos peixes reluzentes
cadaverizam gestos num penedo,
recuam horizontes, sóis nascentes,
teus gritos se hermetizam num rochedo.
Fugiste, Helena, às prometidas cãs!
Teus cílios no verão, era de vê-los
envoltos pela ebórea luz das trans-
lúcidas estrelas. E agora, em mágoas,
nas praias sonho teus gregos cabelos
dispersos em angústia pelas águas.
Nesse tempo de grande vigor intelectual, é possível começar acompanhar outro talento menos conhecido de César Leal: o de tradutor. Tradutor bissexto, talvez, poder-se-ia acrescentar, com maior exatidão, pois não foi atividade que exercesse de modo constante. Um dos primeiros exemplos da sua recriação de autores estrangeiros está um poema do francês Paul Éluard. Não há título, apenas estas informações: “Um poema de Éluard, tradução de César Leal”. Alguns meses depois, em 1º de janeiro de 1956, no mesmo Diario, publica outra, feita desta vez a quatro mãos com o seu colega Marco-Aurélio de Alcântara. Um soneto de Luis Martín de la Plaza, cujos versos de abertura são: “Vejo, senhora, ao som deste instrumento,/ ao cantar minha voz teu nome santo,/ parar os rios a escutar meu canto,/ correr os montes e calar o vento”.
As línguas de que traduz são variadas – francês, espanhol, inglês (uma versão sua do poema “A ti, ó democracia”, de Whitman, foi publicada no Diario). Em 27 de maio de 1956, é uma página de prosa por ele traduzida: “Hierarquia das artes”, de Felicien Challaye; e quase dois anos depois, em 28 de fevereiro de 1958, divulga “A resposta de Giotto”, um trecho da obra de Boccaccio, na sua versão.
Como repórter, sua versatilidade parece ainda maior, embora nunca se constate o mero prosaísmo da reportagem em si nos seus textos. Daí talvez a observação do também jornalista Marco-Aurélio de Alcântara:
“Não exageraria até mesmo quem dissesse que o sr. César Leal, se não tivesse encontrado no verso a sua vocação intelectual seria ilegível como ensaísta ou extremamente cientificista como professor de filosofia. É espantosa a sua contradição como jornalista”.
A “espantosa contradição como jornalista” fez com que produzisse reportagens que abrangem campos tão diversos. Em 22 de outubro de 1955, sobre “a primeira reunião dos médicos do programa do Nordeste do serviço especial de saúde pública”. Aconteceu em Palmares. A reportagem está intitulada “Notas à margem de um congresso médico. Destaque para as questões de saneamento e abastecimento de água”. Disso salta para outra: “O Recife dominado pelo espírito do Natal: Papai Noel saiu às ruas e as lojas foram ornamentadas; preços e presentes; a ceia e a Missa do Galo”. Em 25 de dezembro de 1955.
Além das praias, do comércio, da saúde, havia nas pautas do repórter César Leal espaço para a literatura. Um exemplo é a série Escritores do Nordeste, que começou a publicar em janeiro de 1956. Waldemar Valente foi o primeiro. Depois veio uma entrevista com Eduardo Portella: “Ou a nossa crítica se renova, ou desaparecerá, perderá a razão de ser”. Em seguida, em 4 de março de 1956, enfocou Gonçalves Fernandes. Já em 3 de fevereiro de 1957, a reportagem centra-se em Angela Delouche: “Não me preocupam os problemas da técnica literária de construção”.
Esteve longe, porém, de ser a literatura o tema principal das suas reportagens. Em 3 de junho de 1956, é sobre política e economia que escreve César Leal: “Desigualdade de tratamento nos coloca em plano de colônia: 2 bilhões para construção de estradas no Sul, e apenas 37 milhões para nosso estado”. Em 24 de junho desse mesmo ano trata da “Utilização de adubos orgânicos na cultura canavieira do Nordeste.” Menos de um mês depois, volta-se para a arte, na reportagem sobre Eva e Américo Makk: “As telas que emocionam pela serena autenticidade de sua poesia. Desenho exato e harmoniosa distribuição de cores dominam a pintura de Makk – uma arte que se integra na melhor tradição impressionista”.
Por volta desse mesmo tempo, é a vez, em 19 de agosto de 1956, de se voltar de novo para as questões de saúde pública: “O Instituto de Micologia mantém contacto com 150 órgãos científicos. Instituição que honra o Brasil ante os demais países do mundo”.
Em 28 de abril de 1959 publicou “Severas críticas ao latifúndio no Nordeste: usinas engolirão os fornecedores de cana”. Passou vários dias em Garanhuns cobrindo um seminário econômico. Na série foram publicadas ainda as seguintes reportagens: “Incentivo ao desenvolvimento da indústria algodoeira”; “Deslocamento da fronteira agrícola para interior de Goiás e Maranhão: ambas em 29 de abril 1959. No dia 1º de maio de 1959 foi a vez de “Uma indústria petroquímica para a Bahia”.
Além da literatura, parecia estar mais à vontade como repórter quando escrevia sobre saúde. Vale a pena ler “Mais de 100 mil doentes mentais nas ruas do Recife” (Diario de Pernambuco, 13 setembro de 1959). Como se não bastasse, enquanto refletia sobre as abstrações da poesia e da teoria literária, resenhava as mais de 500 páginas da Monografia dos fungos micropeltaceae, de Chaves Batista.
Até o fim da década de 1950, era assim variada a atividade de César Leal, e antes de fixar-se definitivamente no Recife, trafega por cidades do interior de Pernambuco, e com retornos a Minas Gerais. Tanto é que, em 1955, é de Belo Horizonte que situa e data uma colaboração enviada ao Diario de Pernambuco: a respeito da poesia de Antero de Quental. Paralelamente à atividade que se intensifica de crítica e teoria literárias – sobretudo da poesia – passa a divulgar mais constantemente os seus próprios poemas nos periódicos. Um deles, a “Ode quase bíblica”, pode ser incluído naquele tipo de poesia engajada ou interessada na política. Isso está explicitado no subtítulo: “Aqui se fala da paz por ocasião do armistício de Pan Mun Jom”, e está dedicado a Ronald Bottrall. O poema foi publicado no Diario em 18 de setembro de 1955. Cabe explicar o contexto que o motivou, desencadeado dois anos antes. A guerra da Coreia.
Em 27 de julho de 1953, na cidade de Panmunjom foi firmado o armistício por Kim Il Sung, líder da Coreia do Norte, Mark Clark – da ONU – e Peng Dehuai, comandante dos voluntários chineses. Significava o cessar fogo, o fim das hostilidades, mas não a paz definitiva. Em posterior publicação de sua “Ode quase bíblica” o autor mudou o subtítulo para algo mais amplo, e passou a falar da “da paz aos homens de boa vontade”, e estendeu a dedicatória a Bueno de Rivera.
Em 1956, obteve o primeiro reconhecimento por um trabalho de relevo intelectual. O seu ensaio “Menéndez Pelayo e a estética hegeliana” foi o vencedor de um concurso promovido pelo Instituto de Cultura Hispânica e pela Faculdade de Filosofia do Recife para marcar o centenário de nascimento do escritor espanhol.
Faltava-lhe estrear como poeta em livro. Em 22 de janeiro de 1956, o Diario de Pernambuco noticiou: “César Leal publicará este ano Invenções da noite menor, em edição limitada para subscritores.” O livro terminou saindo no ano seguinte, sob o selo da Editorial Argo. Por trás da marca mitológica estava o próprio autor. Teve várias críticas favoráveis, como a de Marco-Aurélio de Alcântara: “A impressão que se tem da leitura de Invenções da noite menor (livro I) é a de um artista que expressa uma angústia existencial do tipo que Sartre caracterizou em Antonio Roquentin”. Mas nenhuma divulgada naquele tempo foi mais certeira do que a opinião do jornalista Aníbal Fernandes:
“O poeta César Leal fez-se editor de si mesmo: ele mesmo desenhou a capa do seu livro Invenções da noite menor, ele mesmo escolheu os tipos, ele mesmo criou uma editora, que pode, por sua vez, editar outros poetas. César Leal é amigo de outros poetas: e fugindo à regra de que o nosso maior inimigo é o oficial do mesmo ofício, dedica o seu livro a nada menos de sete poetas e artistas. Isso quer dizer que ele tem uma capacidade de admiração, que lava a sua alma da peçonha.
“Esse poeta, que nasceu no Ceará, e andou pelas Alterosas, penso que acabará no Recife, onde se fixou, para trabalhar num ramo, que às vezes, a rigor, nada tem de poético, mas outras vezes oferece margem a aventura: reportagem.
“Do Recife não fala; parece que a cidade ainda não o penetrou; mas nos ‘Quatro poemas rurais’ falam das ruínas de Belmonte; das vacas de Belmonte; dos currais de Belmonte e das ruínas do açude. Isso tanto pode aplicar-se a Belmonte, quanto a qualquer outro cenário parecido. Nesse ponto, Belmonte deixa de ser um motivo regional, para ser universal.
“Não é César Leal um poeta que se agarre a esses temas; por isso é o que se pode chamar de menos folclórico possível. Ele mesmo diz, num de seus ‘Sonetos acrobáticos’, que o seu pensamento é pluma, que o liberta do fácil; que lhe possa prender a voz. Para ele, poema sem mistério é prosa pura. Prefere assim os vales abstratos; os negros veleiros, carregados de lágrimas; os abismos de âmbar da noite.
“Com o seu ar meio distante e distraído, o seu olho estrábico e a sua voz mansa, César Leal é um poeta que o Recife incorporou ao seu patrimônio. Mas o que nele sobreleva é sempre universal; o regional, nunca.”
Também muito exato é Mauro Mota quando afirma:
“O Recife habituou-se tanto a conhecer César Leal, com as suas esquivanças e as suas neuroses, que ainda não tomou todas as dimensões da importância dele.”
Mário Hélio é editor das revistas Pernambuco e Continente