Paletó, camisa de botão, calça social e os indefectíveis óculos de grau refletiam a seriedade de Francisco César Leal (1924-2013). Na sala de estar do apartamento da filha, a professora de linguística da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Virginia Leal, a máquina de escrever do poeta, crítico literário, jornalista e romancista virou memorabilia preciosa, junto ao desenho em preto e branco assinado pelo pintor Gil Vicente. Assim como a bengala que César passou a usar quando em idade avançada.
Para receber a reportagem da Pernambuco, Virginia deixou à mesa da sala as obras quase completas de César Leal. São mais de 30 livros de poesia e crítica literária – inclusive as duas edições de Os heróis (a de 1983 e a de 1996), ambas ilustradas pelo amigo Francisco Brennand (1927-2019). Mas um exemplar em especial, Animal do abismo e outras vozes do inverno, volume I (2011), dava pistas de que ele partiu deixando algo por completar. Virgínia confirma: “A ideia dele era, em quatro volumes, escrever sobre os Brics (Brasil, China, Índia, África do Sul e Rússia, já contemplada no primeiro volume).”
Reconhecido autor de uma poesia de nível internacional, César Leal acumulou prêmios no Brasil e no exterior, e atuou nos júris de outros, como a edição 2000 do Prêmio Camões de Literatura. Participou da equipe do Diario de Pernambuco por 37 anos, e passou a integrá-la antes da graduação em jornalismo pela Universidade Católica de Pernambuco. Autores de diversas gerações – especialmente a de 65 – foram lançados por ele no suplemento literário daquele jornal.
Do Ministério da Educação recebeu título de Notório Saber, equivalente ao doutorado, o que lhe permitiu orientar teses e integrar comissões de avaliação de concursos para professores de diversas universidades.
“Já trabalhávamos juntos, no Diario de Pernambuco, em 1970, quando, numa temporada nos Estados Unidos, César tornou-se o primeiro poeta da língua portuguesa a gravar ao vivo poemas para a Biblioteca de Poesia de Harvard”, recorda o jornalista e amigo Marcus Prado. Outro momento que ficou guardado na memória de Prado foi quando chegou à redação uma carta do (também poeta e jornalista carioca, membro da ABL) Cassiano Ricardo juntamente com o prefácio de Tambor Cósmico. “Entre muitos elogios, considerou-o ‘poeta de gênio em suas invenções’. E olha que Cassiano, apontado como um dos mais importantes poetas brasileiros de seu tempo, não era de elogios”, declara Marcus, exaltando a “ampla erudição, competência e capacidade de exegese das ideias e teorias literárias de várias épocas”.
O filho de Manuel Fernandes Leal e Francisca César Braga Leal nasceu em uma já decadente fazenda Belmonte, em Saboeiro, no Sertão de Inhamuns (CE). Descendente do clã dos chamados Carcarás, o partido conservador local, das famílias aparentadas Costa Braga e Fernandes Vieira – um deles, Francisco Fernandes Vieira, era Visconde de Icó. “Viveu sua primeira infância em Belmonte, onde havia muitos livros, inclusive uma Divina Comédia, cujas ilustrações despertavam nele grande desejo de aprender a ler, o que conseguiu aos cinco anos, causando admiração em todos pela velocidade da leitura”, comenta Virgínia.
Quanto às obras publicadas, talvez o compêndio de 644 páginas Dimensões temporais na poesia e outros ensaios (Imago, 2005) seja o volume mais completo até agora, contendo poesia e crítica literária. “Esta coletânea é parte de ensaios de crítica, história cultural e relações entre poesia e ciência, em particular a física moderna”, escreve o próprio César na apresentação da obra. Virgínia cita em seguida Tempo e Vida na Terra (Imago, 1998). “É uma coletânea, mas não é exatamente o conjunto de todos os poemas. Além de trazer muito material em fac-símile.”
A aparência organizada do poeta escondia uma característica talvez paradoxal: não obedecia às rotinas. A não ser como professor universitário, não era chegado a dedicar horário comercial ou dia útil para escrever. “Ele não era muito sistemático. Não tinha dia ou hora para produzir. Quando trabalhou no Diario e o jornal passou a receber somente arquivos em disquete, ele dependia das netas para digitar; entretanto, nem sempre elas estavam disponíveis. Era uma correria”, recorda em sorrisos a filha. O pai aprendeu a usar o computador depois, aos 80 anos.
A pouca familiaridade com a tecnologia não impediu o poeta de criar, em 2003, um poema cinético-visual chamado Hidrogênio luminoso, em parceria com o amigo e também poeta Delmo Montenegro. “Pareciam dois meninos brincando, rindo”, diz Virgínia sobre a dupla, tão próxima na expressão de ideias e tão distante no tempo cronológico. Enquanto César já tinha 80 anos, Delmo era um jovem de 30 que há muito já produzia poesia visual. “Sentados os dois diante do computador, as diferenças etárias inexistiam”, conta Delmo, que guarda com carinho a criação conjunta, nunca publicada. “Conheci César quando ele me chamou para ajudar a diagramar a publicação em alemão e português de seus versos [Der Triumph der Wasser: und andere Gedichte. Zweisprachig – em português, O triunfo das águas e outros poemas (Leipziger Literatura Verlag, 2014)]. Resolvemos então criar algo juntos e fizemos um videopoema sobre a queda das Torres Gêmeas, em 2001, relacionando-a aos conceitos da física e aos escritos de Dante, que ele adorava, e Rimbaud, minha paixão, resultando em um jazz nuclear”, conta Delmo. Certa feita, saudoso do amigo, imprimiu os quadros da animação do poema e os textos, encadernou e postou em seu perfil no Facebook.
César Leal fez da ciência amiga íntima da poesia. “Julgo que a ciência deve ser a cada instante mobilizada pelo poeta”, disse em um de seus livros. “Sua relação entre ciência e poesia fica mais evidente hoje, quando a física quântica, a nanotecnologia, mostram o mundo enquanto maravilha, fenômeno soberbo, admirável. Sua consequência: a relação entre tempo e espaço – que essa nova geração tornou evidente: qual a distância entre meu e-mail e o seu? Coisa que o espaço geométrico já não mede, como media entre uma rua e outra. César, como poeta, pressente esse tempo de sincronia”, diz à Pernambuco Lourival Holanda, presidente da Academia Pernambucana de Letras.
Há quem aponte o hermetismo na poesia de César. Mas Lourival não enxerga um hermetismo redutor no poeta. “César, hermético? seria incompreendê-lo; além de reduzir o sentido de ‘hermético’; ora, hermética é a poesia que se cumpre em seu melhor: a que chama a inteligência do leitor a ser mais inteligência ainda.”
Muito cedo César Leal perdeu a mãe, Francisca. “Uma morte terrível, que o deixou muito traumatizado”, relata Virginia. Ao pai, Manuel, César se agarrou com medo de perdê-lo. “Onde o pai ia, ele ia atrás. Essa neurose foi ficando tão forte, que, com 17 anos, ele resolveu deixar a casa paterna e ir para Fortaleza.” Debaixo das asas do pai, não frequentou escola formal. Ali começou seu autodidatismo, que levou por toda a vida. Sozinho aprendeu várias línguas e se aprofundou em autores internacionalmente consagrados. Além da Divina Comédia, estudou as obras de Shakespeare, Yeats, Wallace Stevens, Jorge Luis Borges, Manuel Bandeira, Joaquim Cardozo, Carlos Drummond de Andrade e tantos outros. Tinha várias edições da Commedia e fez questão de conhecer a casa de Dante em Firenze, Itália. Em 1965, na revista Estudos Literários da UFPE, da qual foi editor, publicou o ensaio “Dante e os modernos”, em celebração ao sétimo centenário do italiano, tornando a publicação internacionalmente conhecida.
“Um crítico agudo e ‘linkado’ com o mundo (à época, se dizia ‘antenado’); divulgador das vanguardas europeias e americanas, de Pound e Eliot a Mallarmé e Apollinaire, Huidobro e Neruda. Sua poesia já absorve essas técnicas todas”, resume Holanda. Entre os livros preferidos da produção de César Leal, ele destaca Tambor cósmico (1978), Constelações (1986) e O arranha-céu e outros poemas (1994).
“A capacidade que ele tinha de se comunicar com os jovens era muito grande, mesmo que a aparência dele não fosse de jovem. Nunca fumou, não era boêmio, não gostava de beber. Mas, apesar de ter uma aparência senhorial, não assustava os mais novos”, revela Virginia.
“Era uma época de muita efervescência cultural, nos anos 1960, quando os artistas, escritores e filósofos passavam os domingos na casa de Francisco Brennand”, lembra a filha, que tinha cerca de 7 anos à época. Brennand residia no Engenho São Francisco. O artista e os poetas César Leal, Ariano Suassuna e Tomás Seixas ali trocaram muitas ideias em festivas tardes de domingo, na chamada Academia dos Emparedados.
Nesses encontros, César ensinou, mas também aprendeu. “As discussões literárias, filosóficas, acadêmicas eram fundamentais para a criação de um espírito crítico, arguto, nada ingênuo sobre a arte, a ciência e a vida. Daí a ideia de fundar os cursos de pós-graduação em Letras, visando a elevar o nível dos estudos literários na universidade, especialmente com o olhar voltado para a formação cultural, científica e tecnológica dos jovens”, diz Virgínia.
Provocada a definir a obra de seu pai, a professora descreve: “É uma obra ampla, tanto na parte da poesia quanto na parte crítica. Eu não sou crítica literária, não posso falar dos aspectos literários, mas eu sei que ele vai, por exemplo, do soneto a experimentações extremamente interessantes na área da poesia visual, da poesia concreta”.
César Leal ocupou cargos importantes. Fez dupla com o amigo Brennand, na Casa Civil, no primeiro governo Miguel Arraes. Foi designado, em 1987, pelo presidente José Sarney, por indicação do ministro Celso Furtado, membro do Conselho Federal de Cultura. Em 1993, integrou a Comissão dos 17 com objetivo de promover o resgate do cinema nacional. Curioso é que, por sua personalidade reservada, não era de frequentar salas de cinema, como revela Virgínia. “Ele gostava mais de assistir a filmes de arte em casa, alugados em locadoras de vídeo.”
Nos anos 1960, quando a figura do curador e crítico de arte estava longe de se popularizar, César atuou nesse papel. “Participava dos salões de arte como membro de júri. É dessa época sua amizade com João Câmara, Maria Carmem, Guita Charifker, José Carlos Viana, Reinaldo Fonseca, Wellington Virgolino, Francisco Brennand, Ariano Suassuna, Cícero Dias e Vicente do Rego Monteiro”, relembra Virgínia. Com os três últimos firmou laços estreitos de amizade. “Vicente do Rego Monteiro dividia residência entre Paris e Recife. Quando estava por aqui, ficava em um apartamento no Edifício Holiday, em Boa Viagem, e sempre visitava papai. Nessas visitas, conversavam sobre pintura e literatura.” Na época em que Virgínia morava em Paris e o pai ia visitá-la, aproveitava para encontrar-se com Cícero Dias em jantares de conversa. “Os dois discutiam sobre o projeto Eu vi o mundo… ele começava no Recife, arte e poesia”.
“Ele não era de viajar, a não ser a trabalho. A passeio, turismo, de jeito nenhum”, revela a filha. “Só pisava na praia para ir atrás de mim e dos meus três irmãos, e sempre de paletó e gravata (risos).” O traje esportivo nunca preencheu o guarda-roupa afeito ao formalismo. Permitia-se substituir os sapatos pelos chinelos quando estava em casa. “Ultimamente, é que ele começou a usar parkas. Mas sempre com camisa de manga comprida e calça de alfaiataria.” A gravata só deixou de lado depois que saiu do trabalho diário na universidade.” “Não era de se exercitar, mas sempre foi magro, sempre cuidou da alimentação, que era saudável, sem gordura nem doces em excesso.”
No poema Romance do Pantaju (autobiografia), César Leal conta a história do cachorro de estimação. “O poema começa com o cachorro falando. É uma coisa engraçada. Ele teve esse amor por esse cachorro. E aproveitou a presença do animal para falar da vida no interior.” Os animais eram tão caros ao poeta, que, não raro, os levava da rua, abandonados e feridos, para casa, onde cuidava e alimentava com carinho. Cachorro, gato, cágado, peru, galinha, saguim, passarinho dividiam o espaço da residência na Rua das Pernambucanas. “Na universidade, era conhecido pelos gatos e cachorros que o seguiam do carro até à cantina, onde ele comprava uma coxinha pra cada um.”
Hipocondríaco, trabalhou com os primos em um laboratório de análises clínicas, onde aprendeu a realizar exames de sangue e se tornou estudioso das técnicas laboratoriais, chegando a conseguir emprego no então Serviço Especial de Saúde Pública (Sespe), que o levou a residir em cidades como Manaus, Belém e Belo Horizonte, até ser transferido para Palmares. “Foi quando conheceu minha mãe, que também trabalhou no Sespe, em Ribeirão. Apaixonaram-se e meu pai, que vivia pelo mundo para cima e para baixo, passou a residir no Recife, de onde não saiu mais”, recorda Virgínia, primogênita de César que, com a esposa, Jazete Costa Leal, teve cinco filhos: depois de Virgínia – única a seguir o caminho das letras – vieram Francisco, Carlos César, Manuel e Mônica. O medo de adoecer fez de César um ávido leitor de livros de medicina. A filha conta que o pai ostentava na biblioteca um tratado de farmacologia. “Tinha mania de doença.”
Torna-se quase anedótica a história de César Leal com um Jaguar, automóvel inglês de luxo. “Um amigo dele, Marcelo Carneiro Leão, que gostava muito de automóveis, tinha um Jaguar ano 1964, prata, lindo. E papai tinha um quadro de Reynaldo Fonseca. Os dois resolveram trocar um pelo outro. Era um carro importado numa época em que não se importavam peças, com dois tanques de gasolina. Era feito para rodar na Inglaterra. Se ficasse parado no trânsito, esquentava. Minha mãe vivia dizendo para ele vender. Pressionado, papai vendeu. No dia em que recebeu o cheque e depositou no banco, houve o confisco da poupança do governo Collor. Ele ficou sem carro e sem dinheiro”, lamenta a filha.
O incentivador literário de tantos alunos e pupilos não agiu diferente com Virgínia. “Aos 8 anos, ia muito com ele ao Gabinete Português de Leitura, um lugar sisudo de que eu gostava. Me perguntavam se eu entendia sobre o que estavam falando. Claro que não, mas havia um encantamento pela linguagem, porque ele tinha uma característica: quando estava escrevendo um poema, ele gostava de cantar os versos.” O seu preferido, aliás, é Carta aos rinocerontes.
Alfabetizada em casa, Virgínia sempre teve acesso livre à literatura, fosse ela de qualquer gênero, não apenas o infantojuvenil. Para César Leal, não havia gênero literário. Apenas literatura. “Minha mãe se preocupava, dizia que eu não iria entender um livro como O retrato de Dorian Gray (Oscar Wilde). Então, papai retrucou: ‘Ela lê hoje de um jeito, daqui a 10 anos, de outro. Como acontece com todo mundo: a cada vez que lemos um livro, vamos descobrindo algo diferente’”, relata Virgínia, que, aos 6 anos, leu Hermilo Borba Filho e Ariano Suassuna, e foi uma boa ouvinte das leituras em voz alta do pai para ela. “Ele gostava de ler pra mim o que estava escrevendo, perguntava o que eu achava, mesmo eu não sendo especialista.”
Nos livros, na memória de amigos e leitores e na cidade do Recife, César eternizou seus versos. Eles margeiam o mural da Batalha dos Guararapes, de Francisco Brennand, ao lado de versos de Ariano Suassuna – agora instalado na Avenida Antônio Falcão, em Boa Viagem –; na oficina do mestre da Várzea; na Rua do Sol… Para visitar o poeta, basta um passeio atento e aberto à poesia.
Carol Botelho é jornalista e repórter das revistas Pernambuco e Continente.