Desenho: Gil Vicente
Se pedíssemos a alguma ferramenta de inteligência artificial para escrever dez mil linhas sobre César Leal, talvez o sistema respondesse: “Só?” Se um segundo pedido fosse para que os algoritmos criassem mil teses, a resposta poderia ser a mesma, e o sistema ainda desdenhar de nossa modesta limitação: — É preciso mais espaço para saber o que não sabe.
Um princípio minimamente seguro para o entendimento de um escritor pouco entendido é conhecer as suas admirações. As leituras e temas de sua curiosidade dirão mais sobre ele do que as milhares de páginas arrumadas por qualquer sistema de algoritmos. Lembro, por acaso, do título de um estudo de Alberto Manguel sobre a Divina Comédia — “Curiosity” —, uma crônica de sua leitura da obra de Dante. Noutro extremo, Ezra Pound já usara a palavra avisando aos jovens: “Curiosity: advice to the young, curiosity” (Curiosidade: aviso aos jovens, curiosidade). No caso de César Leal, um dos homens mais curiosos de quem se terá notícia, os temas de sua poesia e de sua ensaística eram sempre raros, quase sempre eruditos, pouco acessíveis aos leitores não especializados e, muitas vezes, incontornáveis por qualquer inteligência que não desejasse uma mesma altitude. Poderíamos dizer, lembrando a feliz expressão de Emile Cioran, que os ensaios de César Leal eram seus “exercícios de admiração”. E sua poesia era tão pouco acessível que ele não conheceu “o azar de ser compreendido, a pior coisa que pode acontecer com um autor” (Cioran).
Entre as admirações de César, aquelas que ele estudou, citou, parafraseou, sobre quem escreveu ensaios e se tornou quase íntimo, estavam Dante, Camões, Eliot, Valéry, Ortega y Gasset, Borges, Bandeira, Drummond, Ungaretti, Montale, filósofos e poetas gregos, latinos, ingleses e franceses, numa lista interminável e enciclopédica que facilmente lhe daria, ainda por suas leituras de outras artes e ciências, como a física, a astronomia, biologia, pintura e escultura, o incomum adjetivo de polímata.
Comemora-se neste março de 2024 provavelmente os 100 anos de nascimento de César Leal. E isto não é uma imprecisão, apenas a dúvida da dúvida. Ele mesmo tinha versões para o ano exato de seu nascimento, como documentos da dúvida. Oficialmente, entretanto, são 100 anos. Tal debate já seria alicerce para um personagem de ficção ou com vocação literária. Sabemos que nasceu no sertão do Ceará, na cidade de Saboeiro, e muito cedo mudou-se de cidade e para outros estados. Dizia, ele mesmo, que só aprendeu a ler “quase adolescente”. Depois da primeira palavra, nunca mais cansou de procurar a última. Foi um inventor, um criador, um fazedor. Não de neologismos, mas da multiplicação de sentidos para as palavras quando descobriu a poesia, máquina de imagens, metáforas e invenções. Poesia, essa primeira descoberta antes do homem escrever o primeiro traço: um quarto-crescente como uma cimitarra em brasa na noite do sertão.
Na poesia de César Leal, o céu, as estrelas e as constelações foram seu tema permanente, sua imagem primordial. Olhava os mapas do céu como quem lia — como um Dante, a quem reverenciou como a nenhum outro. O espírito de criador de universos e sentidos para as palavras está presente nos títulos de seus livros: Invenções da noite menor (1957), Tambor cósmico (1978); Constelações (1986) etc. Essa era sua maior identidade com Dante. Por sua obra de poesia e ensaios recebeu alguns dos maiores prêmios literários do país, como Prêmio Othon Bezerra de Melo, Prêmio Olavo Bilac e o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras.
Ao lado de uma biografia movimentada, desde o nascimento no Ceará, passando por Pernambuco, Amazonas, Minhas Gerais e voltando ao Recife para uma carreira definitiva e sem precedentes como jornalista, professor da Universidade Federal de Pernambuco, crítico literário e editor, além de membro do Conselho Federal de Cultura e finalmente da Academia Pernambucana de Letras, sua mais notável obra foi a descoberta e o desenvolvimento de mais de uma geração de poetas que desde os anos 1960 carregariam em seus currículos uma dívida de gratidão que, sem a orientação e divulgação sustentadas por César Leal em sua página “Panorama Literário”, no Diario de Pernambuco, seria impossível. Neste quesito de descobridor de gerações, lançou e incentivou por décadas poetas, escritores e artistas plásticos de Pernambuco e de outros estados do Brasil. Ao lado da lista de seus devedores, há ainda a de seus admiradores contemporâneos, que sempre reverenciaram César por sua poesia e erudição: João Cabral de Melo Neto, Ariano Suassuna, Francisco Brennand, Eduardo Portela, Lívio e Radha Abramo, Antonio Candido, Abgar Renault, Ferreira Gullar e muitos outros no Brasil e no exterior. O respeito de que gozava entre seus pares era tal, que uma indicação sua para que qualquer jovem poeta fosse recebido por um dos grandes era infalível. Sou, eu mesmo, uma testemunha fatal. Devo a César, no mínimo, metade dos grandes poetas e críticos que conheci em obra e em pessoa.
César era um homem do livro. E antes de tudo, era um poeta em sua essência. Sua inteligência crítica e linguística, assim como seu talento vernacular, eram de tal ordem que mesmo sem jamais ter vivido fora do Brasil ou assistido a uma única aula de idiomas estrangeiros, lia, interpretava, traduzia e criticava obras originais em inglês, francês, espanhol e principalmente italiano. Ouvi-lo comentar versos, estrofes ou cantos completos da Divina Comédia, com uma edição italiana nas mãos, era algo para espanto permanente. Não deixa de ser curioso o fato de um poeta/crítico que se afirmava agnóstico (às vezes, ateu) ter estudado com tal profundidade a mais “católica” das obras literárias do medievo, além das grandes obras de poetas místicos, vide os estudos de César sobre São João da Cruz, Luis de León, Teresa de Jesus — já não bastasse a inclusão do Purgatório no enredo dantesco —, quando a ideia ou invenção teológica de um “lugar para o cumprimento de penas purgatoriais”, entre os anos 1150 e 1200, apenas décadas antes do nascimento de Dante, ser algo ainda controverso. Até então, “no sistema dualista do além, entre o céu e o inferno, não havia lugar para o pagamento das penas purgatoriais”. Sobre o tema, sugiro o ótimo estudo O nascimento do Purgatório, de Jacques Le Goff.
Conheci César em 1983, quando fui apresentar-lhe alguns poemas para sua análise e opinião, e desde o nosso primeiro encontro — ou primeira “aula” — nossos sobrenomes homônimos foram motivo de graça e curiosidade. Desde então, o que me parecia admirável em sua erudição era sua interdisciplinaridade, vivida em sua prática universitária através da proximidade e diálogo com professores de outros departamentos da UFPE, como Física, História, Medicina. (Neste último caso, sua conhecida e divertida hipocondria o tornava quase um expert em algumas especialidades.) Sua inquietação, no entanto, era combustível para uma vitalidade criativa incomum. Uma permanente curiosidade sobre a vida na Terra e o cosmo era sua ponte entre a física, a astronomia e a poesia. Um caso exemplar dessas associações está no poema gráfico em que relaciona a bomba de Hidrogênio como o poema H, de Rimbaud, embora a Hortense rimbaldiana refira-se, mais provavelmente, a uma familiar do imperador Napoleão III, numa alusão jocosa do poeta de Charleville. (Hortense, aliás, era um nome bastante comum na França do século 19). Não obstante, cogumelos atômicos de bombas nucleares podem remeter, plasticamente, à estrutura arquitetônica dos círculos dantescos refletidos/invertidos num espelho.
César tinha um conhecimento absoluto de teoria e crítica literárias, especialmente notável na disciplina da Poesia. Nesta, o crítico alcançava profundidades tão abrangentes quanto em seus próprios poemas, e por isso se sentia irmanado a poetas como Octavio Paz, Unamuno, Eliot, Emerson, Samuel Johnson, Coleridge, Wordsworth e Goethe. Mas sua admiração por grandes críticos que lhe foram contemporâneos era igualmente verdadeira, como nos casos do americano Harold Bloom, do inglês I. A. Richards e do canadense Northrop Frye. Quando, em janeiro de 1991, lhe telefonei de Londres para avisar que Frye havia morrido, César lamentou como se tivesse perdido um familiar ou um amigo pessoal. Não saberíamos afirmar se, em César, o poeta era maior que o crítico. Ambos eram partes de uma mesma inteligência. César também era o outro.
No momento em que escrevo este depoimento, estou longe de minha biblioteca e, portanto, impossibilitado de outras fontes de citação, principalmente dos livros e poemas de César, o que seria enriquecedor. Por isso este texto não configura ensaio ou estudo, mas, antes, um depoimento de admiração, e, assim como a admiração, seus limites são expandidos e imprecisos. Entretanto, uma coisa é exata: nenhum outro crítico literário fez tanto pela poesia pernambucana quanto César Leal. Talvez, hoje, ele mesmo reconhecesse isto e nos respondesse, melhor do que qualquer Inteligência Artificial, com versos do seu livro Os Heróis: “Tudo o que realizei ficou gravado/ e o Tempo irá dizer quanto valeu: / o que foi feito o tempo não apaga/ e o que não foi: foi sonho e se perdeu.”
Weydson Barros Leal é poeta, crítico de arte e dramaturgo. Autor de O Aedo, Ópera jazz e Samico (Prêmio Jabuti 2012)