O resultado é a promessa de uma versão ampliada de Camões para o público. “O livro traz algumas novidades, sim. Se não exatamente algo de novo, uma informação apresentada de outra forma, inclusive do ponto de vista biográfico”, reforça a escritora, após o mergulho de cabeça nos calhamaços de papéis amarelados pelo passar dos séculos. Documentos nem sempre relacionados a Camões, mas a pessoas do seu círculo próximo e que, indiretamente, acrescentaram dados relevantes da vida dele.
“Não quero falar mal dos acadêmicos, até porque sou em certa medida uma, mas em Portugal trabalham uns de costas para os outros, de maneira que alguém descobre uma coisinha aqui e o outro corre para descobrir uma coisinha ali. Às vezes, falta quem tenha a paciência de encarar a rotina morosa, rigorosa e custosa de recolher as migalhas e relacioná-las com o que já se sabe. E eu me dei a esse trabalho”, justifica.
Das valiosas “migalhas” recolhidas por Isabel Rio Novo, surge, por exemplo, um Camões devidamente reconhecido pelos seus contemporâneos e consciente da sua importância como poeta. “Ao contrário do que se pensa, Camões não passou tão ignorado assim”, garante Isabel, baseando-se sobretudo no interesse dos primeiros biógrafos e dos livreiros a republicaram a obra do poeta ainda em vida.
“Após a publicação de Os Lusíadas, Camões obteve reconhecimento entre um conjunto de pessoas que o reputava como um relevante autor, procurado por quem desejava produzir peças baseadas em suas obras líricas. E Camões tinha consciência do seu talento, sim. Há passagens em Os Lusíadas onde ele afirma, de uma forma muito clara, ter a noção de que se converteria naquilo que é hoje”, afirma.
Um dos primeiros influencers portugueses, mas que, cinco séculos antes do surgimento da indústria cultural e das redes sociais, não conseguiu traduzir a fama em dinheiro. “Camões foi considerado como poeta, mas isso não trouxe para ele nem riquezas, nem muito menos um final de vida, digamos, mais folgado”, revela.
A falta de “uma vida mais folgada” não diminui a riqueza da obra de Camões, considerado pela pesquisadora um dos três grandes nomes da literatura universal.
Antes de se aprofundar na vida e obra do poeta, Isabel era uma “leitora e fruidora da poesia de Camões” como qualquer português, mas a obrigação de ir muito mais além a levou a admitir não conhecer Camões tão bem assim, e, ainda, que a maioria das pessoas também não desconfiam da exata dimensão da importância dele.
“Como leitora, reconhecia em Camões o status de maior poeta da língua portuguesa e um dos maiores da literatura universal, como o genial Machado de Assis. O trabalho me obrigou a reler muitas coisas e a ler pela primeira vez outras e, após repassar a obra completa, a minha opinião é a de que Camões está um passo acima, entre os tops, na primeira linha, junto com Cervantes e Shakespeare”, afirma.
Um Camões no top da literatura e da boemia portuguesa da época, apesar de ser contemporâneo da temida e famigerada Inquisição, do Concílio de Trento e do Index Librorum Prohibitorum, a lista de livros proibidos. “Para nós, do século XXI, e até para alguns biógrafos e estudiosos do passado, é contraditório que um indivíduo libertino tenha se movimentado durante a Inquisição. Mas à época era natural aos homens da nobreza e até da pequena nobreza, como era o caso de Camões, frequentar os ambientes palacianos e o submundo das tabernas e bordéis”, conta Isabel.
Se o Camões das tabernas e dos bordéis não chegou a preocupar a Inquisição, segundo Isabel mais atenta a comportamentos “heterodoxos ao ideário da Igreja Católica Romana”, o mesmo não se pode dizer de alguns estudiosos da obra camoniana, a torcer o nariz à sua versão libertina. “A falta de uma sensibilidade do contexto histórico levou alguns camonistas a se oporem a esse Camões, digamos, malcomportado, afirmando que as cartas atribuídas a eles ou não eram obras dele ou então tudo o que escrevera era metafórico. Francamente, acho uma opinião exagerada de quem não conhece as rotinas de um rapaz daquele tempo”, reflete.
Um tempo em que Camões soube honrar, transformando a sua existência em modelo de vida de uma época. “A poesia de Camões é fantástica, mas apesar de o público reconhecer isso, antes de enxergar Camões como o símbolo de uma nação, está mais interessado em sua biografia. E ele não decepciona”, afirma a escritora, que enxerga o poeta como um homem perfeitamente integrado a uma época.
“Camões foi tudo o que alguém daquela época poderia ser: poeta, soldado, viajante, estudioso, humanista. Viveu num período da história de Portugal e do mundo cheio de glórias e misérias, e conseguiu provar as grandezas e crueldades do império português. Uma dualidade que o faz interessante justamente por isso”, enfatiza.
Apesar do interesse do público nas aventuras de Camões, Isabel Rio Novo reforça a importância de não esquecer do valor do seu texto, apesar de nem sempre ser fácil reconhecer um texto camoniano. “O que é considerado de Camões nem sempre é consensual. Em vida, ele publicou Os Lusíadas e três composições poéticas em prefácios a outras obras. O resto tem sido estabelecido com base em deduções. O que é ou não de Camões está longe de ser uma questão resolvida, mas o que lhe é atribuído ou atribuível eu li e só tenho a dizer que realmente estamos na presença de um gênio da literatura”, insiste.
Uma obra valiosa e que, cinco séculos depois, não perdeu a validade. “Basta abrir qualquer livro de Camões para encontrar uma referência à nossa atualidade. E nem sempre pelas melhores razões. Em Os Lusíadas, cada canto termina sempre num tom de censura, amargura ou crítica aos contemporâneos. E o mais interessante e mais triste também é que esses versos poderiam estar no comentário político atual”, indica a autora que, ao contrário de Camões, prefere não se intrometer no noticiário político.
Como a que envolve as celebrações dos 500 anos do poeta, ainda sem uma agenda de eventos definida pelo governo português, dividido por uma crise política e o acirramento dos debates ideológicos, como o que levou o presidente Marcelo Rebelo de Sousa a sugerir que Portugal deveria indenizar as antigas colônias pelos danos causados durante o período imperial.
Como, então, celebrar um dos maiores ícones desse período? “Sobre a polêmica, não me pronuncio. Mas sou otimista e penso que estão a reservar grandes eventos para a celebração. Modestamente, fiz a minha parte e se, depois de publicada a biografia, houver mais pessoas a ler e a conhecer o homem antes de ser o busto de pedra em todas as escolas, a estátua em todas as praças ou nos nomes nas placas das ruas, independentemente de comemorações ou não, já vou me dar por satisfeita”, afirma.
Satisfeita, Isabel também está com o resultado livro, a ser publicado em 10 de junho, quando se assinala o Dia de Camões e o Dia de Portugal. Até a data da entrevista, o título permanecia mais um dos mistérios camonianos por ser desvendado. “Ainda não posso revelar, é parte da estratégia do lançamento. Mas eu acho que é um título muito bonito e estou satisfeita com ele”, despista.
Isabel permite-se revelar apenas ter escolhido o título a partir de uma das estrofes dos poemas de Camões. “A escrita de um livro só arranca quando tenho o título. Nesse caso, estava ainda naquela fase de pesar os prós e os contras quando peguei no primeiro livro de Camões da estante e pensei: Bem, eu acredito nos sinais e se eu estiver destinada a fazer isto vou encontrar o título. Abri o livro ao acaso e parei numa estrofe e pensei: Este é o título da biografia, Isabel, estás tramada, vais fazer isto.”
E a tramada Isabel não só fez como gostou do que fez. “Penso ter cumprido o desafio de apresentar um enorme poeta aos homens e mulheres do século XXI, com a particularidade deste poeta ter vivido cinco séculos atrás e ter transformado suas qualidades e contradições em uma expressão poética, exprimindo-a de uma forma tão bela e tão intensa, que até hoje nos interpela e nos emociona.”