Seria suficiente dizer que Brasília tem uma importância especial para mim porque foi aí onde nasceu nossa (minha e da Bia) primeira filha, Letícia, filmada até seus 2 anos pelo pai coruja com uma filmadora pesada sobre os ombros, gravando em VHS.
Outro nascimento foi o de minha literatura, muito antes de publicado meu primeiro romance. Numa visita em 1970 a minha irmã Salete, que tinha me alfabetizado e então morava em Brasília, escrevi dois contos que guardei na gaveta. Quando Ideias para onde passar o fim do mundo saiu 17 anos depois, as duas personagens femininas e nordestinas dos dois contos, a sertaneja Berenice e a profetisa Iris Quelemém, entraram no romance e depois migraram para outros.
No entanto, Brasília vinha de antes, associada a sonhos do futuro. Em 1960, com 9 anos de idade, plantei-me na companhia de meus pais e irmãs em frente ao enorme rádio no corredor de nossa casa de Mossoró, onde nasci, para ouvir o discurso de JK durante a inauguração da cidade. Transpus a emoção daquele momento para a do narrador de meu quinto romance, Cidade livre, que rememora sua infância naquele acampamento surgido em 1957, cujo nome me apropriei para o título do livro: “Nos emocionamos com a emoção do presidente quando ele, quase chorando, pronunciou as palavras finais de seu discurso: ‘Neste dia 21 de abril, consagrado ao alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, ao centésimo trigésimo oitavo ano da Independência e septuagésimo primeiro da República, declaro, sob a proteção de Deus, inaugurada a cidade de Brasília, capital dos Estados Unidos do Brasil’”.
Dois anos depois, já em Fortaleza, eu ouvia de meu tio engenheiro os prognósticos sobre o futuro promissor para o Brasil que vinha do Planalto Central. Sobrevivia, portanto, na mente de muitos, a utopia de Brasília, inaugurada por José Bonifácio e confirmada por Varnhagen e tantos outros ainda no século XIX.
Vim a me interessar pelo tema da utopia tanto no ensaio quanto na ficção. Já no primeiro romance, contrastei os sonhos com os pesadelos, dedicando-me à Brasília real, sem negligenciar o projeto de Brasília.
A pergunta que mais passei a ouvir foi: “Por que Brasília?” Como foi muitas vezes repetida, cunhei duas possíveis respostas. Uma sob a forma de outra pergunta: “Por que não Brasília?” A segunda, de maneira afirmativa, pedia uma explicação: “Porque é uma cidade como nenhuma outra e porque é uma cidade como qualquer outra”. Como nenhuma outra, porque era uma ideia que havia acompanhado toda a história do Brasil independente, associada ao futuro e mais tarde à modernização, ao desenvolvimento e à integração do país. Como qualquer outra, porque, em que rincão do mundo onde haja gente, não existem drama, tragédia, esperança e desespero, tristeza e alegria, emoção, enfim, com que se tecem histórias?
Concluo esta crônica completando a frase que esse extraordinário editor Mário Hélio não me deixou terminar. Tive a ideia de propor a publicação mensal do fragmento de um nono romance em andamento, como nos Folhetins aos quais recorreram Dickens, Machado e Lima Barreto. “E onde se passa a história?” me perguntou. “Em Brasília”, respondi, “porque, tendo morado em 18 cidades…” “Dezoito cidades? Pois acho que seria uma boa ideia para essas crônicas”.
Preferi não levar minhas histórias de um lugar a outro. Queria trazer o mundo a uma referência brasileira. A Mossoró, onde passei minha infância? A Fortaleza, de minha adolescência? Ou àquela cidade com uma identidade em construção, na qual vim a morar por 13 anos, mais do que em qualquer outra?