R. Magalhães Jr., em sua Poesia e vida de Augusto dos Anjos, comenta que a morte inesperada de Martins Jr., aos 44 anos, ocorreu em agosto de 1904, causando grande comoção no Recife e na Faculdade de Direito, onde Augusto já estudava. Ele registra a influência, em Martins Jr., “do evolucionismo spenceriano, do transformismo darwínico, do monismo haeckelista e do realismo científico materialista”. Ou seja, praticamente a base filosófica de onde decolava a poesia de Augusto.
E Augusto foi muito mais longe que seu mestre. Com a publicação de seu livro único, Eu, em 1912 (e nos poemas subsequentes), abriu um leque de imagens que envolviam não somente as abstrações filosóficas, mas a ciência e a tecnologia de sua época. Ele falava do futuro que surgia nas páginas dos jornais.
Pode o homem bruto, adstrito à ciência grave,
arrancar, num triunfo surpreendente,
das profundezas do Subconsciente
o milagre estupendo da aeronave!
(“O fim das coisas”)
A passagem dos séculos me assombra.
Para onde irá correndo minha sombra
nesse cavalo de eletricidade?!
(“Poema negro”)
Ah! Tudo, como um lúgubre ciclone,
exercia sobre ele ação funesta,
desde o desbravamento da floresta
à ultrajante invenção do telefone!
(“Os doentes”)
Nas eterizações indefiníveis
da energia intra-atômica liberta!
(“Monólogo de uma sombra”)
Será calor, causa ubíqua de gozo,
raio X, magnetismo misterioso,
quimiotaxia, ondulação aérea,
fonte de repulsões e de prazeres,
sonoridade potencial dos seres
estrangulada dentro da matéria!
(“Monólogo de uma sombra”)
Esta última estrofe puxa o fio de um tema evolucionista em que Augusto dos Anjos imagina não somente a evolução da raça humana, a partir de ancestrais remotos, mas uma evolução progressiva da matéria, dando origem a uma espécie de autoconsciência nos minerais:
Nessa época que os sábios não ensinam,
a pedra dura, os montes argilosos
criariam feixes de cordões nervosos
e o neuroplasma dos que raciocinam!
(“As cismas do destino”, II)
Chamado “o Poeta da Morte”, Augusto é na verdade o poeta das transformações da matéria, em ciclos que se repetem ou que atingem níveis mais altos. Ele é um evolucionista num sentido cósmico, num sentido amplo que lembra a imaginação conjunta de Arthur C. Clarke e Stanley Kubrick em 2001: uma odisseia no espaço:
E eu, com os pés atolados no Nirvana,
acompanhava, com um prazer secreto,
a gestação daquele grande feto
que vinha substituir a Espécie Humana!
(“Os Doentes”, IX)
Augusto não escreveu sobre guerras nas estrelas, astronautas, colonização de outros planetas; o que está presente é um impulso impossível de subir aos astros, de fundir o corpo ao Universo. O desejo de acessar “outras constelações e outros espaços” (“Gemidos de Arte”), de transportar um grãozinho físico de existência humana para dimensões mais vastas e mais desconhecidas:
Era um sonho ladrão de submergir-me
na vida universal, e, em tudo imerso,
fazer da parte abstrata do Universo,
minha morada equilibrada e firme!
(“As cismas do destino”, II)
Troveja! E anelo ter, sôfrega e ansiosa,
o sistema nervoso de um gigante
para sofrer na minha carne estuante
a dor da força cósmica furiosa.
(“Depois da orgia”)
As minhas roupas, quero até rompê-las!
Quero, arrancado das prisões carnais,
viver na luz dos astros imortais
abraçado com todas as estrelas!
(“Queixas noturnas”)
Vestido de hidrogênio incandescente,
vaguei um século, improficuamente,
pelas monotonias siderais...
Subi talvez às máximas alturas,
mas, se hoje volto asim, com a alma às escuras,
é necessário que inda eu suba mais!
(“Solilóquio de um visionário”)
À poesia científica e à ficção científica não cabe a função de prever o futuro, mas de expandir o presente. Pensar o seu momento presente assimilando todas as suas contradições, suas exceções, suas novidades e suas surpresas, suas anomalias inexplicáveis e seus milagres ameaçadores. Não nos cabe perguntar se a poesia de Augusto, em 1914, estava certa ou errada à luz do que sabemos agora em 2024, mas perguntar se essa poesia representou um enriquecimento para as ideias de quem a leu em sua época.
Enquanto os parnasianos cantavam, com todo o talento que tinham, a mitologia grega e a Antiguidade clássica, Augusto usava a ciência e a filosofia dos seus contemporâneos para inspirar suas visões. Apesar de adotarem muitas vezes um tom profético ou revelatório, seus poemas são visões, ficções, experiências imaginativas de um rapaz neurótico que ergueu os olhos para o abismo.
E o abismo olhava-o de volta, como o pesadelo kafkiano de uma sociedade de supervigilância:
Ninguém, decerto, estava ali a espiar-me,
mas um lampião, lembrava ante o meu rosto,
um sugestionador olho, ali posto
de propósito, para hipnotizar-me.
(“As cismas do destino”, II)
E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente sobre a minha rede!
(“O morcego”)
No Céu, de onde se vê o Homem de rastros,
brilhava, vingadora, a esclarecer
as manchas subjetivas do meu ser
a espionagem fatídica dos astros!
(“Viagem de um Vencido”)
O poeta já conseguia imaginar, com os dados de sua época, a chamada “morte térmica do Universo”, quando o efeito da entropia terá feito extinguir-se toda a energia dos astros:
Morra o éter. Cesse a luz. Parem as vidas.
Sobre a pancosmológica exaustão[.]
(“Caput immortale”)
O mundo resignava-se invertido
nas forças principais do seu trabalho...
A gravidade era um princípio falho,
a análise espectral tinha mentido!
(“As cismas do destino”, IV)
Quis compreender, quebrando estéreis normas,
a vida fenomênica das Formas
que, iguais a fogos passageiros, luzem...
E apenas encontrou na ideia gasta
o horror dessa mecânica nefasta,
a que todas as cousas se reduzem!
(“Monólogo de uma sombra”)
Era, numa alta aclamação, sem gritos,
o regresso dos átomos aflitos
ao descanso perpétuo da Unidade!
(“Louvor à Unidade”)
A ficção científica literária tem suas raízes nos contos filosóficos dos séculos XVII e XVIII, e nos chamados “romances científicos” do século XIX. Obras especulativas e filosóficas, como Somnium, de Kepler (1634), que descreve uma viagem à Lua e as criaturas que ali habitam; Micrômegas, de Voltaire (1753), onde dois habitantes das estrelas ironizam a espécie humana; Frankenstein, de Mary Shelley (1818), a primeira história de criação da vida em laboratório; e assim por diante.
Augusto dos Anjos criou sua poesia dentro de um ambiente de crenças evolucionistas, em que os pensadores se perguntavam: o que é a humanidade? O que nos distingue dos animais, dos vegetais, dos micro-organismos? De onde surgimos? Em que iremos um dia nos transformar?
Essa visão em escala cósmica, de milhões ou bilhões de anos, estava praticamente ausente da literatura brasileira, na época em que Augusto dos Anjos escrevia. E da poesia brasileira, então, nem se fala. O que impressiona no único livro de Augusto não é o quanto foi novo quando surgiu, é o quanto ainda é novo mais de 100 anos depois.