Aluna da professora Yun Jung Im, primeira a traduzir Han Kang para o português, a paulista Natália T. M. Okabayashi, formada em 2016, pela Universidade de São Paulo (USP), foi a responsável pela tradução brasileira de O livro branco. O resultado agradou à Todavia, que a convidou a trabalhar, mais uma vez, com a escrita de Han Kang. Seu novo desafio: verter I do not bid farewell, publicado na Coreia do Sul, em 2021. Ainda sem título divulgado em português, o livro chegará às livrarias no primeiro semestre deste ano.
Em conversa com a revista Pernambuco, Natália Okabayashi contou sobre os processos de tradução do coreano lírico de Han Kang para o português e adiantou o que os leitores podem esperar do novo lançamento.
Natália, você traduziu O livro branco, de Han Kang. Entre as obras que temos disponíveis em português, essa é a mais pessoal, até então. Como se deu seu contato com a escrita de Kang e a efetiva tradução desse livro?
— O livro branco tem uma coisa muito própria, é a sensação de mergulhar em algo que é muito íntimo dela, e isso foi um dos desafios para a tradução. Parece que pegamos um caderno que ela estava guardando, onde ela escrevia todos os seus pensamentos e agora a gente está lendo.
Han Kang faz obras muito diferentes umas das outras, formas muito diferentes. Mesmo mantendo uma identidade, ela é muito experimental e O livro branco é mais ainda. Ela entra fundo nessa - no experimental, no sensorial. Então um dos desafios para traduzir o livro foi a minha vontade de manter toda essa carga e sensibilidade que ela traz sem mudar muito o texto, porque ela também é muito direta. Alguns trechos são tão poéticos, que parecem mesmo um poema, então saímos da prosa e vamos para a poesia. Minha preocupação era a de respeitar os espaços dela, sem colocar ou tirar muitas coisas.
Você fala de um cuidado em não mudar o que a autora está falando no texto. Como isso acontece na tradução?
— Acho que a luta de todo tradutor, independentemente da língua, é seguir o caminho do meio. Existem linhas diferentes, mas eu sou defensora da linha onde o tradutor tenta chegar no meio termo, sem trazer tanto para cá, domesticando o conteúdo que está ali, substituindo coisas muito culturais para algo muito brasileiro para não descaracterizar o texto, nem também deixar tão distante que o leitor não consiga se conectar à narrativa. É muito isso de trazer para cá para que o leitor consiga se conectar sem tirar essa identidade do que está posto ali.
O livro é sobre a Coreia, então vai ser muito diferente da nossa cultura. Existem coisas culturais ali que realmente não fazem sentido para a gente, para nossa cultura, é algo que temos que ler e pesquisar para entender.
O idioma coreano é uma língua muito distinta do português, tem um alfabeto próprio, expressões, jargões e variações particulares. De que maneira essas particularidades são transferidas entre as línguas?
— Entre os tradutores de coreano, isso é algo que estamos sempre conversando. Existem coisas que não tem como (traduzir) porque a estrutura da língua é muito diferente, tem nuances que infelizmente não vamos conseguir replicar, que não temos mecanismos para trazer isso, tanto do português para o coreano quanto do coreano para o português. A gente tenta chegar o mais próximo possível, mas têm coisas que ficam.
O coreano tem uma estrutura gramatical, além do vocabulário, muito diferente do português, então quando traduzimos tem toda uma mudança que precisamos fazer. É muito desafiador trazer o texto tentando não perder coisas que ela expressa ali.
No começo de O livro branco, Kang fala um pouco sobre uma amizade com a tradutora da sua obra para o polonês. Ela encontra a tradutora e fala da troca entre elas. Fiquei curiosa: você chegou a ter algum contato com ela?
— Não, nunca tive, infelizmente. Eu sei que outros tradutores já tiveram algum contato. Sei que a tradutora que traduziu para o inglês teve contato com a Han Kang e a minha professora lá da USP, a primeira a traduzir para o Brasil, também tinha certo contato.
Isso realmente faz muita diferença: o tradutor poder falar com o escritor. Ter esse tipo de troca é muito bacana, é uma oportunidade muito boa do autor também poder se colocar ali, observar se aquilo reflete o que ele desejava dizer. É muito importante.
Como tradutora, mas também como leitora, o que mais lhe encanta na literatura coreana?
— O que sempre me encantou é que ela é sempre muito intensa, muito brutal. Muitos temas são trazidos de forma muito aberta. Han Kang, por exemplo, tem toda a sensibilidade, o lado de sentir muito e olhar o mundo, mas tem uma violência muito grande também, sempre embutida. A literatura coreana, em geral, tem muito disso, até mesmo na literatura infantil. Alguns livros foram traduzidos para cá e eles trazem temáticas muito profundas.
Eu acho incrível essa forma de a literatura coreana trazer temas que são tensos, violentos, para a arte; e isso é muito característico. Não tem como você ler, consumir a literatura coreana e não sentir nada: ela vai reverberar em você. Acredito que isso seja um reflexo da cultura e da história do país. Eles tiveram um período consideravelmente curto com muitos acontecimentos históricos, muitas coisas traumáticas e violentas para a população, então não tem como isso tudo não refletir na arte.
A cultura coreana, como um todo, vem crescendo exponencialmente no Brasil com os “doramas” e os grupos de k-pop, especialmente. Quando comecei a ler mais da literatura coreana, fiquei surpresa por ela trazer essa brutalidade, que é bem diferente do que o país apresenta majoritariamente nas músicas e séries. Você observa um movimento de ruptura com essa idealização por parte da literatura coreana?
— Com toda certeza, existe realmente uma discrepância muito grande. Quem conhece a Coreia do Sul apenas pelos dramas e pelo k-pop vai ter uma impressão totalmente diferente de quem lê os livros, consome literatura, e até mesmo assiste aos filmes. Essas pessoas vão ver uma Coreia extremamente diferente.
Esse movimento da Coreia de exportação da cultura pop foi um projeto do governo, um projeto realmente pensado e com um investimento gigante. Faz muito sentido eles não quererem ter como principal questão todas essas dores. Ninguém quer ser conhecido dessa forma, então faz sentido que eles exportem uma coisa mais leve, uma imagem mais alegre, apenas a parte mais calorosa do país. Mesmo assim, esse movimento das pessoas estarem se interessando pelos dramas e pelas músicas atiça a curiosidade para saber o que mais tem na Coreia do Sul. A partir disso, essas pessoas conhecem outras artes.
Você está no processo de tradução da próxima obra da Han Kang, a ser publicada pela Editora Todavia, I do not bid farewell. O que pode adiantar sobre o livro?
— (No novo livro) A protagonista tem uma amiga que sofre um acidente e fica hospitalizada, por isso pede que ela vá até Jeju cuidar do seu passarinho. Ela larga tudo e vai tentar salvar o passarinho. É a partir daí que ela vê a cidade, vê a ilha e começa a haver uma investigação.
I do not bid farewell lembra um pouquinho Atos humanos, porém, neste livro, Han Kang traz uma outra forma de contar esses fatos históricos. É uma investigação. Aos poucos vamos descobrindo episódios, ouvindo relatos… É uma outra forma de adentrar na história. E é muito interessante como ela vai construindo, nós também vamos nos familiarizando com a ilha, conhecendo aos pouquinhos as coisas de lá. É uma forma bem interessante de fazer com que a gente se conecte com a história.
Além da violência e da dor, que sempre estão na obra dela, nesse livro também tem muito afeto. É uma das questões diferentes dele, tem muito da ligação das duas mulheres e até o carinho com o pássaro. No meio de todo o trauma, temos também esse laço de amor. Eu até estava questionando outro dia: “quem largaria tudo, pegar um avião, ir até a ilha de Jeju, no inverno, que lá é muito intenso, para salvar o passarinho da amiga?” É uma coisa muito forte.
Quais foram as maiores diferenças entre traduzir O livro branco e o novo livro?
— O livro branco tem essa questão da poesia muito mais forte. A prosa de Han Kang sempre tem essa poética, mas, n’O livro branco, parece que foi na forma mais concentrada. No novo livro dela já não tem tanto essa condensação da poesia. O ritmo dele é muito diferente, a forma como as histórias, o presente e o passado vão se intercalando.
Além de ele ser mais extenso, para a tradução em si existem algumas questões como trechos em que Kang traz o dialeto de Jeju. Na Coreia, os dialetos são muito diferentes entre si e o de Jeju parece que, em especial, é ainda mais diferente. Jeju é uma ilha, então ficou mais afastada da península e teve menos influências. Isso foi um desafio para mim, como tradutora, porque eu não conhecia o dialeto. Eu tive que pesquisar, pedir ajuda para algumas pessoas, porque é muito diferente.
Como você avalia a obra de Han Kang até aqui e o que pensa para o futuro dessa obra aqui no Brasil?
— Uma coisa especial de Han Kang é que ela consegue fazer livros muito diferentes entre si. O leitor sempre vai ter essa surpresa, essa novidade. A forma como ela traz o tema é muito diferente, mesmo mantendo uma identidade. Isso é muito poderoso na escrita dela, a sensibilidade com a qual ela fala sobre vários assuntos, sobre dores, afetos. Ela traz uma lupa para as coisas que ela enxerga no mundo, é uma coisa muito dela.
Eu espero que depois de ganhar o Nobel, isso sirva como um abridor de portas para as pessoas quererem, pelo menos, entrar em contato com a obra. Eu estava procurando na internet a opinião dos leitores de O livro branco, porque a gente quer ter esse retorno, saber as impressões. Algumas pessoas, que eu suponho que nunca tiveram contato com a literatura de Han Kang, acharam o livro esquisito. Espero que os livros dela passem por essa barreira desconfortável e consigam trazer fascínio para as pessoas.