Um lobo-guará gosta de refri? A pergunta, curiosa e divertida, é o título do lançamento infantojuvenil da Companhia Editora de Pernambuco (Cepe Editora). Com linguagem original e criativa, o livro traduz o espanto de uma criança, Ana, ao descobrir em sala de aula que espécies animais foram dizimadas do planeta. A indignação da menina ao aprender o significado da palavra extinção conduz a narrativa de Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira, ilustrada com primor por Laura Morgado. A obra já está disponível em livrarias.
Na primeira página do livro o leitor é apresentado a Ana, que chega da escola com um nó na garganta depois de saber que alguns animais já foram extintos e muitos outros correm o risco de desaparecer em um futuro próximo. “Vou catalogar os bichinhos do quintal, um por um, antes que seja tarde! Porque agora o bicho tá pegando... quer dizer, sendo pego, né?”, diz a menina, num diálogo com a mãe repleto de aflições e preocupações. Um lobo-guará gosta de refri? tem 40 páginas e a frase do título aparece durante um sonho de Ana.
De acordo com Antonio Geraldo, nascido em São Paulo e residente em Minas Gerais, “esse livro é a história de um espanto que, imagino, todas as crianças deveriam ter diante de uma situação causada, na maioria das vezes, pelo ser humano.” Sem conseguir tirar o assunto da cabeça, Ana escreve num caderno: “É terrível quando desaparecem animais terrestres, aguarrível, quando não há mais peixes e o mundo será arrível se nenhum canarinho rabiscar o céu de amarelo.”
O desassossego acompanha a menina ao longo do dia e entra pela noite. Enquanto dorme, Ana sonha com uma baleia-franca que não conta mentiras, um orangotango que em visita ao Brasil conhece uma orangossamba com quem vai se casar, uma galinha que bate-papo com o agulhão e um macaco-prego que tem pesadelo ao achar que é um tubarão-martelo. Antonio Geraldo faz um jogo de palavras para tratar da questão central da história: o que perdemos com a extinção animal.
A literatura infantil e infantojuvenil, observa Antonio Geraldo, “ainda que façam rir, que brinquem com as palavras, com as frases, com as ideias, precisam ir além do mero passatempo”. E é essa a proposta do livro, o segundo que ele fez para crianças. “Um lobo-guará gosta de refri?, creio, além de divertir, mostra a importância de se pensar com seriedade uma das questões mais urgentes do mundo contemporâneo, porque cobra-cipó que se preza não dá corda pra Tarzã…”, afirma o escritor, na entrevista a seguir.
De onde veio a ideia para escrever Um lobo-guará gosta de refri?
— Os livros, de modo geral, nascem da observação. O escritor espia aqui, espia ali, e, de repente, sabe que precisa escrever. Muitas vezes, olha para dentro de si, inclusive. Um lobo-guará gosta de refri? surgiu assim, da memória. Lembrei-me da angústia que senti, quando nem sequer sabia o nomezinho daquele aperto que sentia no peito, ao descobrir que uma espécie inteira poderia desaparecer. Acho que foi o pássaro dodô... Ou o mamute... Meu pai lia para mim um verbete de enciclopédia. Que susto! Esse livro é a história de um espanto que, imagino, todas as crianças deveriam ter diante de uma situação causada, na maioria das vezes, pelo ser humano. Ou pelo ser desumano, vá lá...
Queria que você falasse sobre o processo de criação da história, sobre as misturas de palavras e coisas, sobre os jogos de palavras.
— A literatura é uma experiência artística, de modo que a palavra deve carregar a força do pensamento e da beleza para além dos enredos, porque assim ela se mistura à existência, em qualquer época, em qualquer lugar, para leitores de todas as idades. Nomear as coisas, os animais, as pessoas é a experiência fundamental da linguagem, visto ser a maneira que inventamos para dizer o mundo. Então, o fascínio pelo nome de bichos que poderiam desaparecer, na cabeça de Ana ‒ criança que aprendeu na escola o significado da palavra “extinção” ‒, é uma séria brincadeira para manter acesa essa vida que invocamos, se é verdade que “um zangão só provoca, faz o que lhe dá na telha porque zum-zum é fofoca de abelha! ” Será?
O livro fala sobre a extinção de espécies de animais. Podemos dizer que o sonho de Ana, a personagem do livro, representa o que perderíamos com a extinção dos bichos? A ideia é mostrar que dependemos uns dos outros - gente, animais, coisas - para viver?
— Você fez uma pergunta que define de modo muito bonito o livro. Sim, o relacionamento com o outro é acreditar numa ideia de altruísmo que transcende os reinos (animal, vegetal, mineral), única possibilidade de a própria espécie humana não se extinguir. É preciso falar a respeito do especismo. É preciso encontrar um limite para o nosso egoísmo, não acha?
Como foi a experiência de tratar o tema da extinção de animais para o público infantojuvenil?
— É gratificante quando um escritor conversa com seu leitor. Dia desses, estava numa escola de ensino fundamental, falando com os alunos a respeito de outro livro infantojuvenil que escrevi. Um deles perguntou se eu escreveria mais um. Falei de Um lobo-guará gosta de refri? Ele queria saber mais, curioso. Lembrava-me de um trecho: “Até o macaco-prego teve um pesadelo... Sonhou que era um tubarão-martelo.” O menino caiu na gargalhada, ao me ouvir, fazendo aquele sinal com o polegar e o indicador bem próximos, virando a mão pra lá e pra cá, rapidinho, mostrando que percebera a relação entre o prego e o martelo. Literatura não é isso?
Quanto tempo levou a construção do livro?
— Demoro bastante... Fiquei uns bons três anos escrevendo e reescrevendo. É assim com todos os meus livros. Digo isso porque é uma delícia reescrever. A gente vai saindo de um mergulho e chega à tona das palavras, onde tudo começa a respirar, a fazer sentido. Mesmo que o sentido seja uma pergunta sem resposta, o contrassenso, a falta de ar, entende?
O que você gostaria de destacar no livro?
— A literatura infantil e infantojuvenil devem ter a força de também preparar o leitor para a boa literatura, sempre. Ainda que façam rir, que brinquem com as palavras, com as frases, com as ideias, precisam ir além do mero passatempo, única preocupação de um mercado que direciona os objetivos existenciais apenas para o sucesso, a fama. Isso não pode ser a única finalidade da literatura, ora, ora. É preciso ensinar também o gosto pela arte que, afinal, fundou o gênero humano, não apenas um consumidor. Um lobo-guará gosta de refri?, creio, além de divertir, mostra a importância de se pensar com seriedade uma das questões mais urgentes do mundo contemporâneo, porque “cobra-cipó que se preza não dá corda pra Tarzã”...
Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira nasceu em Mococa, SP. Estudou na USP. Mora há muitos anos em Arceburgo, MG. Escreveu vários livros, entre eles, as visitas que hoje estamos, Editora Iluminuras; siameses, Kotter Editorial, romance que recebeu o Prêmio Machado de Assis, da Biblioteca Nacional, em 2022; o amor pega feito um bocejo, Cia das Letrinhas. Em casa, faz questão de conversar com as andorinhas que o visitam.