Até muito recentemente, Rui Couceiro tinha o seu nome tão associado aos seus próprios escritos quanto ao trabalho de editor e divulgador do Grupo Editorial Porto. Por quase duas décadas, fez ecoar por vários recantos do mundo as vozes de alguns dos principais autores da língua portuguesa. Agora, como curador de uma das mais conhecidas instituições culturais de Portugal, sua rotina muda na existência, mas não na essência, pois continuará a escrever os seus livros e a promover os dos outros.
Com pouco mais de 40 anos de idade, ele é um exemplo de estreia como romancista em plena maturidade, algo destacado pelos seus pares, como Alberto Manguel e Valter Hugo Mãe. No Brasil foi lançado o seu romance Baiôa sem data para morrer (resenhado aqui na Pernambuco) e, em breve, o público do “país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza” poderá ler Morro da Pena Ventosa.
Rui Couceiro, consegue lembrar-se de qual foi o primeiro livro que teve em mãos na vida e de como iniciou sua aventura pelo mundo da leitura?
— O livro mais antigo de que tenho memória é um objeto magnífico. Trata-se de uma obra ilustrada, de grande formato, e com abas que movimentam as personagens e emprestam movimento à ação. É uma espécie de máquina de papel e cartão com uns 70 ou mais anos. Pertence ao meu pai desde que ele próprio era criança e conta a história de João e o pé de feijão. É um livro que eu gostaria muito de herdar um dia. Aliás, recordo com total nitidez algumas das páginas, bem como vários movimentos das abas.
Pode resumir algo de sua trajetória com os livros, antes de tornar-se editor e escritor, inclusive os desafios e projetos atuais?
— Tive o privilégio de crescer numa casa com livros e de tanto a minha mãe como o meu pai serem leitores. Por outro lado, todas as noites, na primeira infância, os meus pais liam para mim, o que hoje é, de forma incontroversa, considerado um dos melhores métodos para fazer de alguém leitor. Por isso, os livros foram sempre vistos por mim como amigos. Lembro-me de dezenas de histórias lidas na infância e também de algumas escritas nessa fase mágica da vida. Recentemente, a minha mãe lembrou-me de uma delas: um livrinho que eu escrevi, ilustrei e até produzi. Intitula-se Átila e os Três Mosqueteiros em Paris da Cochinchina. No começo, a história tem muitos detalhes, mas, no final, o texto é já esparso e nota-se uma certa pressa para terminar. Por certo, eu quereria ir para a rua brincar (risos).
Antes de estrear como romancista, Rui Couceiro desenvolveu, e ainda desenvolve, uma intensa atividade de promoção do livro de outros autores. Como concilia as duas atividades?
— Considero-me uma pessoa disciplinada e isso ajuda muitíssimo. Separo as coisas e cada uma tem os seus tempos. À semana, sou editor. Ao fim de semana, autor. Bom, não é exatamente assim, porque o editor também trabalha muito ao sábado e ao domingo, e porque os olhos e a alma de um escritor nunca se desligam, mas quase. Por outro lado, o fato de, como autor, eu ser um ficcionista e de, enquanto editor, publicar somente não ficção também ajuda. São universos muito distintos.
O trabalho como editor é, de certa forma, um exercício de crítica e de estética, por ser o editor antes de tudo um grande leitor. A exigência aplicada nos textos alheios é menor, maior ou igual à aplicada aos seus próprios textos?
— No que respeita aos textos literários que publico, a exigência é total. Insisto muito para que os autores façam dos livros a melhor versão possível. Mas sucede que eu também publico muitos livros de cariz comercial. E nesses, do ponto de vista formal, a preocupação não tem nada que ver com estética, mas, sim, com correção e clareza, que são características obrigatórias de qualquer obra destinada a um público alargado.
A constante e crescente presença de brasileiros a morar em Portugal impactou, de algum modo, o mercado editorial, ou tudo segue como dantes no Quartel de Abrantes?
— Quando os livros de Carla Madeira começaram a ter sucesso em Portugal, um sucesso pouco comum para um autor brasileiro no nosso mercado, lembrei-me de imediato da possibilidade de uma boa parte dos exemplares ser adquirida por brasileiros, que já são quase meio milhão por cá. Como os livros dessa autora estavam na moda no Brasil, creio mesmo que esta possibilidade tem cabimento. Se toda a gente no Brasil já tinha ouvido falar de Carla Madeira, não é de estranhar que os brasileiros a morar em Portugal também a quisessem ler. A um outro nível, o fato de autores como Itamar Vieira Junior (Prêmio Leya) e Rafael Gallo (Prêmio José Saramago), entre outros, terem vencido prêmios importantes por cá, terá feito com que mais gente quisesse conhecer a literatura que se faz em língua portuguesa desse lado do mar.
Escrever livros, ler livros, editar livros... Há prazer nisso? De que tipo? Iguais? Diferentes? Semelhantes? Complementares?
— Encontro prazer em tudo o que tem que ver com os livros. Em ler, a um primeiro nível. Em publicar os livros dos outros e ajudá-los a alcançarem os seus objetivos. Em contribuir para que mais gente leia. E, claro, em escrever, que é uma atividade de que gosto muito e que, em muitos momentos, e apesar de ser difícil, me preenche por inteiro.
Consegue Rui Couceiro definir um cânone pessoal dos melhores livros que já leu e recomenda a leitura?
— Nem sempre os melhores são os meus favoritos. Eu adoro muitos livros que não são perfeitos, mas que são magníficos apesar dessa imperfeição, como A Vida e opiniões de Tristram Shandy, de Lawrence Sterne. Mas, como converso com a Pernambuco, vou referir dois livros de autores brasileiros que já aqui referi e que considero perfeitos: Dom Casmurro, de Machado de Assis, que tem tudo o que de melhor este autor normalmente oferece e que me seduziu sempre muito pelo modo como Machado mostra tudo claramente ao leitor através de Bentinho, mesmo sem que o próprio Bentinho se aperceba; e Dor fantasma, de Rafael Gallo, que é um livro equilibradíssimo, sem falhas, uma obra que se arrisca a tornar-se um clássico da literatura brasileira.
O baixo índice de leitura no Brasil é uma questão recorrente. Como está Portugal neste quesito, em comparação com os outros países da União Europeia?
— Está péssimo, como sempre. Continuamos na cauda da Europa. Isto apesar de haver, por agora, muito entusiasmo de uma parte do meio editorial com o interesse dos chamados jovens adultos por um certo tipo de livros. Mas isso ainda não mudou nada. Temos de continuar a lutar. Não há alternativa e eu não desistirei de dar o meu pequeno contributo. Sou um pessimista na análise, mas um otimista na ação.
José Saramago, Lobo Antunes... uma velha controvérsia. Rui Couceiro gosta da literatura dos dois por igual?
— Não, eu prefiro José Saramago, que é, a meu ver, um gênio absoluto e, provavelmente, o único grande autor de língua portuguesa das últimas décadas de dimensão universal. Mas também gosto muito de António Lobo Antunes e continuo a lê-lo. Aliás, tenho andado a ler um dos seus volumes de crônicas, apesar de o próprio autor as considerar menores face aos seus romances. Mas eu acho-as absolutamente magníficas.