O leitor da poesia de Carlito Azevedo – na certidão de nascimento Carlos Eduardo Barbosa de Azevedo – deve estar consciente de que nele não existem padrões, moldes e estilos definidos. Para Carlito, cada livro é um livro. O carioca nascido em 1961, na Ilha do Governador, é um misto de poeta clássico (com inspiração na escola francesa), modernista e, principalmente, um filho legítimo da descontração criada pela geração marginal dos anos 1980. Um mutante que se reinventa a cada novo trabalho. Seu último livro, Vida: efeito-V (7 Letras), surgiu após um recesso de oito longos anos, período no qual sofreu um bloqueio criativo que lhe fez questionar se ainda tinha o que falar.
Um processo incômodo, admite o próprio Carlito, e que se consolidou após o Livro das postagens (2016), projeto que apresenta uma construção ousada, composta por dois poemas longos, com colagens de notícias, trechos de romances e mensagens de redes sociais.
Tanta ousadia, em vez de catapultar o autor, causou efeito inverso. O poeta “travou”. Nos anos seguintes, não conseguiu escrever uma linha. Em algumas situações, passou até mesmo a renegar a própria obra. Queria esquecer o que escreveu, substituir por poemas novos, mais frescos. Discorda, ainda hoje, da tese apresentada por diversos escritores do Século XX, cuja ambição é encontrar a própria voz.
Em entrevistas após o lançamento de Vida: efeito-V, feliz e bem-humorado, Carlito confessou que o discurso de encontrar a própria voz o incomoda. Chegou a questionar se seria obrigado a ficar com ela para sempre.“Para mim o mais interessante de cada livro é perder a própria voz. Então eu procurava por essa voz diferente, mas não achava”, explicou o escritor.
Para destravar as palavras internas, e encontrar o que desejava, Carlito tomou uma atitude radical. Aos 60 anos, procurou um psicanalista, que de certo modo quebrou as travas que bloqueavam seu fluxo poético. “Com esse psicanalista eu tinha alguém que continuamente mudou o rumo do meu pensamento. Ele vinha com perguntas absurdas. Eu dizia: passei por uma rua. Ele ia e retrucava: e o que aconteceu na outra rua?”, lembra o poeta, que depois da terapia – que coincidiu com o período após uma separação – parece ter ganho um novo alento e desanuviado sua visão de mundo.
Em Vida: Efeito-V, Carlito conseguiu virar a página e dar nova roupagem à sua fala. O livro é uma mescla do efeito V – conceito teatral de estranhamento/distanciamento criado por Bertolt Brecht, incentivando o público à reflexão crítica sobre a situação apresentada – com as ideias do escritor francês George Perec, autor de Vida, modo de usar. Perec foi um dos participantes da Oficina de Literatura Potencial (OULIPO), que explora a escrita através de restrições e ferramentas matemáticas, questionando a visão mítica da inspiração e incentivando a criação de novos formatos literários. A partir deste binômio nada ortodoxo, Carlito encontrou sua nova linguagem da vez.
“O nome de Carlito Azevedo já faz parte da história da Poesia Brasileira. Admito que as letras maiúsculas da expressão ‘Poesia Brasileira’ são algo que pode não combinar muito com a figura de Carlito Azevedo, mas tem a ver com o peso da sua produção poética e seus desdobramentos. Quando se pensa no ‘respiro novo’ – fora de uma mesmice – que a sua poesia traz, um dado fundamental é o fato de este poeta não se contentar com um determinado livro, com um determinado público leitor, mesmo diante de um reconhecimento que hoje não pode ser negado”, afirma a crítica, tradutora, poeta e professora, Patricia Peterle, que atua na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Estar dentro e fora de seu próprio tempo é outra marca desse poeta, por isso o traço de contemporaneidade da sua poesia, que mexe inevitavelmente com o leitor. “Por qual motivo se deve ler Carlito Azevedo? Essa resposta não pode ser dada somente a partir do espírito inquieto deste poeta, mas sobretudo pela capacidade de escavação na linguagem poética e na própria prática da escrita. Nenhum medo de se medir com as suas referências e leituras preferidas ou se limitar a elas”, continua Patricia Peterle.
Trajetória
O percurso poético de Carlito Azevedo conta com oito livros. O primeiro Collapsus linguae (Lynx, 1991) é um trabalho experimental, indo do verso metrificado ao neoconcretismo com o poema intitulado ( ). Da imagem ao som, da letra a palavra, aos espaçamentos.
Foi com este livro de estreia que Carlito, aos 31 anos, venceu um dos maiores prêmios de literatura do Brasil – o Jabuti, em 1992. A experimentação, neste projeto aparece, logo na folha de rosto do livro, pois, à época, o jovem poeta – junto ao amigo e também poeta Bráulio Fernandes – montou uma editora, cuidou de todo o processo de preparação e edição. A esta altura da vida, ele já tinha traduzido Max Jacob, René Char e Jean Follain. “O poema “Traduzir” pode ser lido como a encenação deste processo, por intermédio da imagem complementar da lua minguante e da crescente – trazidas pelos parênteses. Um movimento que só é possível no jogo das ausências e presenças”, explica Patrícia Peterle.
No segundo livro, As banhistas (Imago, 1993), Carlito se entrega ao tema da mulher amada. Esse trabalho é perceptivelmente mais humorístico, dando lugar à percepção visual e ao sensorialismo, à complexidade do mundo e do cotidiano.
O primeiro verso de As banhistas já oferece ao leitor um enquadramento: “Desta janela”. E o poema que dá título ao livro oferece uma imagem que só pode ser operada a partir dos cortes: “a primeira – um / capricho de goya alguém, / diria – apodrece como um morango / cuspido ou ameixas sanguíneas (...)”; “(a segunda – máscara turmalina em / vez de rosto, / músculo da coxa dispara (...)”. O corte é afinado, radical. O curto-circuito tem a ver também com visão, não é um acaso que Rothko seja um dos pintores trazidos nessas paisagens suspensas.
Em Sob a noite física (7Letras, 1996), encontra-se um poema-epígrafe cujo verso inicial é “A via-láctea se despenteia. / Os corpos se gastam contra a luz.” Versos de circunstâncias (Moby-Dick) é o quarto livro publicado em 2001, no mesmo ano da antologia Sublunar (7Letras), que reúne 10 anos de produção.
O livro Monodrama (7Letras, 2009) só seria publicado oito anos depois. Nesse caso, trata-se de uma obra que não deixa de ser uma declaração da sua poética e traz mudanças formais importantes. Os textos são decididamente mais longos, alguns em versos outros em prosa, o que tem um impacto também no ritmo. O corte é reforçado, penetra na prosa, como ele mesmo afirma para Juliana Krapp, numa entrevista publicada no Jornal do Brasil na ocasião do lançamento:
“Os poemas estão mais narrativos e extensos, na contramão da linguagem twitterizada, com sua regra dos 140 toques. O que ocorre é que as coisas aparentemente mais disparatadas começaram a apresentar, para mim, nexos inesperados. Assim, a tensão erótica dos hotéis baratos, a repressão policial, as turbulências econômicas, o tráfico de imigrantes e o terrorismo, por exemplo, pareciam se espelhar, pareciam fazer parte do mesmo poema contemporâneo. Daí os poemas longos, mas também entrecortados, cheios de planos quase antagônicos, mudanças bruscas de cena, o que quebra um pouco a linearidade do extenso”, explicou o poeta ao jornal.
O Livro das postagens (7Letras, 2016) é outro experimento de escrita desse efervescente laboratório. “Se quando estreou, Carlito mesclou numa formulação muito singular a experiência do concretismo com a da geração marginal, depois ele nunca se acomodou ou se contentou. E a confirmação disso volta neste livro de 2016, que é diferente dos outros, menor em número de páginas, mas extremamente potente. Continuam aqui os pastiches, as apropriações desapropriadas, as citações”, explica Patricia Peterle. O livro é dividido em duas partes, ‘O livro do cão’ e ‘Livro das postagens’, introduzidas por um ‘Prólogo canino-operístico’.
Além de escrever, e viver sempre com um olhar de poeta – caçando impressões e visitando sebos nas ruas cariocas – Carlito também realiza um trabalho importante, que são as Oficinas de Poesia, inicialmente montadas in loco, nas comunidades da Rocinha, Alemão e Manguinhos. Uma experiência fundamental para o poeta, que a descreveu da seguinte forma.
“Há 10 anos, fiz oficinas em várias comunidades. A sensação que eu tinha quando chegava lá é de que levava eletrochoques diários, como dizia Tom Zé. Sabe quando você entende que não sabe? Cada cabeça, nos locais, era um acelerador de partículas. Você jogava para eles a poesia de Emily Dickinson e voltava uma coisa inesperada. As flores arrebentavam com o chão. Tudo virava uma metáfora. O magma do poema desnudado”, recorda o escritor, que hoje continua ministrando oficinas, mas on-line.
Carlito também conseguiu, depois de muito esforço, estruturar a revista de poesia Inimigo Rumor, que existiu por 10 anos (1997-2007) e voltaria a circular em junho deste ano. “É urgente a necessidade de revistas de poesia impressas – de todos os matizes e tendências – para que haja ao menos uma alternativa à falta de senso crítico e excesso de senso comum exibidos pelas redes sociais. As pessoas precisam saber que a poesia não é apenas aquele show de banalidades do Instagram. Hoje, o povo que quer virar trend já está escrevendo poemas do tamanho físico e moral exigido pelos posts do Instagram: poemas que cabem na foto. Precisam saber que a circulação da poesia não precisa ser apenas aquela autofesta, aquele festival de elogios recíprocos das redes. Que há lugar para o pensamento crítico. Caso contrário, a poesia conhecerá uma estagnação jamais conhecida”, finaliza o poeta.
Ping pong
Você passou por um período de bloqueio criativo, que lhe trouxe muita angústia e chegou a lhe fazer pensar se a poesia ainda seria um caminho viável, se você ainda tinha o que dizer. Conte como foi essa trajetória. E quando percebeu que ela havia se instalado?
— Outro dia, lancei as três moedas e perguntei ao I Ching, o oráculo chinês de mais de três mil anos, que foi consultado por gente como Clarice Lispector, John Cage, Bertolt Brecht, Carl Jung e Octavio Paz, se já estava na hora de voltar a escrever poesia, já que acabei de lançar um livro novo que foi muito desejado por mim. A resposta foi o hexagrama 47, Kun, O Desamparo, composto pelo trigrama Lago sobre o trigrama Água Corrente. Este hexagrama anuncia coisas não muito boas, na verdade, anuncia coisas muito frustrantes, mas diz que a esperança não está proibida se a água corrente deixa de circular sob o lago, deixa de alimentá-lo, fazendo com que ele seque. Termina dizendo: “é uma questão de paciência e tempo”.
Esse é o problema de poetas como eu, que após um período de criação, em geral concentrado, necessitam de um tempo de esvaziamento, de seca e silêncio. Nosso ritmo não é industrial, é quase vegetal. Boa parte da minha infância eu passei no quintal de minha casa esperando que chegasse fevereiro para que o abacateiro desse frutos. Não adiantava esperar por abacates a partir de maio. Hoje é claro que as facilidades técnicas, até de importação, trazem todas as frutas o tempo todo para as prateleiras dos supermercados, o que, segundo Roland Barthes, mata o tempo da espera. Parecemos crianças que desconhecem o mundo da espera e só desejam o mundo da recompensa eterna e contínua. Hoje, entendo que minha angústia vinha de outras fontes. Eu estava usando o fato de não escrever para justificar uma falta que estava em outra parte. Nas “Notas sentimentais” que escrevi no final do livro, chego a dizer, mais tranquilo, que oito anos sem publicar é um tempo muito bom até.
Vida: Efeito-V, de fato, é uma explosão de originalidade, onde você mantém sua opção de mesclar a linguagem formal à ousadia da literatura marginal, mas que lhe coloca num espaço totalmente diferente dos já percorridos anteriormente. Como isso aconteceu?
— Para tentar ao menos aderir a uma realidade que muda o tempo inteiro, é necessária uma linguagem de muita plasticidade e flexibilidade. Acho que sou um pouco bergsoniano, porque vejo o tempo como duração, como continuidade indivisível e criação permanente do novo. Aquele tempo que é pura repetição de segundos, de minutos, de horas, é uma espécie de artimanha demasiado humana para sentirmos que vivemos com alguma estabilidade, não é? Existe para não nos darmos conta de que, na verdade, a vida é uma vertigem. Estamos todos no dorso do tigre, para citar o pensador Benedito Nunes e seu livro sobre Clarice Lispector. O que a Ana Cristina César, minha autora preferida daquela geração marginal, faz com aqueles diários é espetacular e vale menos como polaroides cotidianas do que como montagem vertoviana sobre as muitas e mutantes superfícies da vida.
Que papel as sessões de psicanálise tiveram nisso? No livro você aborda situações familiares até então intocadas, como a relação que não existiu com o seu irmão natimorto, a sua família, o seu passado? Seria essa catarse fruto das sessões que você teve?
— Augusto de Campos disse, certa vez, que via a rima não como um automatismo, mas, ao contrário, como um estímulo para seguir por um caminho que a mente normalmente não seguiria, uma desautomatização. Começar a fazer análise tão tardiamente, aos 60 anos, quando nossa relação com o impossível já está muito mais ao abrigo de sintomas e tristezas, me permitiu fazer desse convite a associar no divã, livremente, uma possibilidade de seguir um caminho por onde nunca fui. Sou muito filho do Anti-Édipo para achar que o inconsciente é um arquivo. Sei que, ao contrário, ele é uma usina, fábrica. Sei que a memória não é quadro congelado, mas se transforma a cada nova atualização, a cada novo acesso que fazemos a ela. Mais do que uma catarse, foi uma deriva. Esta sessão do livro, “Kinderszenen” (cenas infantis), foi, por margem muito larga, a que exigiu maior plasticidade da linguagem. Como fazer a voz aderir ao que não para de se transformar?
Você também registra a solidão, o recomeço após um rompimento amoroso, o readequar-se a novos espaços. Ao mesmo tempo em que percebemos a dor, transparece também a alegria de seguir novos caminhos. Isso é real?
— Que bom que você percebeu isso dessa maneira, essa alegria. Eu também leio assim. Parei um pouco de falar do livro, de dar entrevistas, quando senti que Vida: Efeito-V estava se tornando uma espécie de gancho jornalístico do tipo: a história do poeta angustiado que foi fazer análise e saiu com um livro novo, quase um caso de superação. Ora, o fim (do amor, da existência, do dia) é uma dimensão da vida. A composição musical mais antiga (pelo menos entre aquelas de que se conhece a notação musical), o “Epitáfio de Seikilos”, já diz: “o tempo exige o fim”. Para mim, essas coisas, a análise, mesmo a amizade depois do amor, que é outro tipo de amor depois do amor, a escrita do livro, tudo isso era vida e não morte, era potência. Era vitalidade até como forma de resistir à pandemia, que no fim das contas era o nosso triste contexto mundial no momento. Vejo esse livro como saúde, tem muito amor ali, e como já disse o Guimarães Rosa, qualquer amor já é um pouquinho de saúde.
Na orelha do livro, Flora Süssekind chama atenção para a potência que o efeito V, conceito usado por Brecht e a obra Vida, modo de usar, de George Perec, tiveram nesse trabalho. Como se deu isso?
— São dois autores geniais. O Perec eu conhecia muito bem da época em que estudava literatura francesa na faculdade e era apaixonado pelas invenções do grupo OULIPO. O Brecht eu conhecia menos um pouco, mas dei a sorte de ficar muito próximo da poeta Maria Eduarda Castro justamente quando ela estava fazendo seu doutorado em filosofia sobre Brecht e Walter Benjamin. Conviver cotidianamente com seu estudo foi um aprendizado gigantesco pra mim. Praticamente, posso dizer que ela me apresentou o marxismo. Mesmo sabendo que toda explicação é uma ilusão, eu diria que o Brecht (aliás, um grande leitor do I Ching) me mostrava que nada é estável, que tudo é mudança, revolução. E Perec me mostrava quão versátil a linguagem podia e deveria ser para dar conta de algo que é fluxo, ritmo, mutação.
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