O Tempo dita o ritmo da vida de duas irmãs na estreia de Clarice Freire no romance

Em "Para não acabar tão cedo" duas irmãs acordam, certo dia, com o rosto e o corpo rejuvenescidos, num romance que desperta o leitor para a beleza do ordinário

E se o tempo deixasse de ser medida para tornar-se narrador pensante que observa, sente, transforma? Um tempo que se escreve com T, assim mesmo, em maiúsculo: Tempo. Um Tempo que é quase gente, uma espécie diferente de organismo. Em Para não acabar tão cedo, a escritora pernambucana Clarice Freire subverte as definições físicas e filosóficas justamente para permitir que sua obra voe carregada pela narração inesperada desta entidade longínqua e sábia.

Através de uma poética singular, que por vezes se permite alongar em versos diante da página, a história que Clarice Freire oferece ao leitor é um singelo despertar para a beleza do ordinário.

As protagonistas do romance são Augusta e Lia. Irmãs idosas que vivem sozinhas no Recife, encaram o passar do tempo através de olhares diferentes e deturpados. No que parece uma manhã como todas as outras, elas se olham no espelho e se amedrontam com as imagens refletidas. Estão, outra vez, com o rosto e corpo que tinham quando eram jovens, na casa dos 30 anos de idade.

Diante da constatação do súbito rejuvenescimento, as irmãs saem em busca de algo incerto, refazendo os passos do passado e encarando a vida que levaram na juventude com os sentidos experientes. A antiga casa da família na Rua da União, a praia de Boa Viagem e um restaurante de frutos do mar ainda na Zona Sul da cidade, tudo é familiar na mesma medida que é novo.

Com sutileza, a narrativa do Tempo acompanha a dupla como um amigo próximo, divagando sobre as próprias lembranças de Augusta e Lia.

“Sei o quanto ela sofre quando pensa que me perdeu, que me perde todo dia. Ela é os outros humanos. As pessoas quase entram num estado de desespero quando pensam em me perder, porque dizem que vou e não volto.
Passo, é verdade.
Mas não saio daqui.
Sou sempre eu a ser vivido.
Sou grande porque permaneço” - narra o Tempo, em Para não acabar tão cedo.

Assim, em meio a algias do presente que se ligam ao passado, Clarice Freire constrói uma narrativa firme, cujo Tempo se torna um conhecido do leitor, não mais uma unidade de medida sem identificação. Dentre as páginas do livro, a finita vida de suas personagens são imagem de tantas outras personagens da vida real.

Para não acabar tão cedo marca a estreia de Clarice Freire no romance. Há 10 anos - em agosto de 2014 – lançou o livro de poesia Pó de lua, um fenômeno que surgiu com postagens na Internet. Dois anos depois, em 2016, a sequência: Pó de lua nas noites em claro. Ambos se tornaram best-sellers e exprimiram no papel um retrato da arte produzida pela autora nas redes sociais. Sobre sua jornada com a leitura e a escrita, a escolha do Tempo como narrador da experiência transcendental das irmãs Augusta e Lia e a maneira como ela própria relaciona-se com ele, Clarice conversou com a Pernambuco:

Clarice, como começou sua história com a escrita?
— 
Desde criança, desde que eu sou bem pequena, eu fui cercada, na minha família, por escritores, por artistas. Meu pai é escritor, diretor de cinema, roteirista e médico. Antônio Nóbrega estava circulando, Marcelino Freire sempre estava ao meu redor. A minha relação com a escrita foi desde muito cedo. Indo para os saraus, para as peças de teatro que eram inspiradas no livro do Marcelino, nos livros do meu pai ou nos livros dos amigos dos meus pais.

Eu tenho infinitas referências dessa infância muito privilegiada nesse sentido, porque eu realmente tenho a literatura e a arte como parte da minha formação de casa.Eu não consegui evitar. Sou publicitária, por exemplo, e quando me embrenho na publicidade, vou pela redação publicitária; quando entro na academia, vou pela literatura com o doutorado. Eu vi que de fato era melhor parar de lutar contra e começar a lutar por ela, pela palavra e pela literatura, porque eu teria muito mais alegria e vitalidade nessa minha caminhada.

Como você decidiu escrever um romance?
— 
Eu já tinha lançado meus dois livros de poesia visual e tinha o plano de um terceiro, isso estava muito concreto para mim. Porém, os anos foram se passando e quando eu lancei meu segundo livro, percebi que a necessidade daquele projeto se havia esgotado. Por mais que eu nunca tenha deixado de escrever poesia, nunca deixei de desenhar. Mas percebi que aquele ciclo, daquele projeto, precisava se encerrar ali. Muito naturalmente, eu tive essa ideia: de duas irmãs idosas que acordariam com os corpos rejuvenescidos. Essa ideia veio, eu compartilhei com algumas pessoas, tive bons ecos, e nisso se passaram seis anos. Foram seis anos no processo de escrita desse livro, que eu tive muitas idas e vindas. Eu olhava para ele e desistia de escrever um romance, achei que estava escrevendo um livro de contos, depois um livro de crônicas, depois achei que não ia escrever mais nada. Até que, na pandemia, resolvi fazer uma oficina literária com Assis Brasil, que se chamava “A estrutura do romance”. Foi maravilhosa, um contato com um grande mestre que, durante a oficina, perguntou: “Qual é a única história que só você pode contar?”.

Foi aí que eu percebi que estava fugindo das minhas irmãs. Era o momento que a história estava pulsando, pedindo para nascer. Eu lembro que não dormi naquela noite, me organizando de novo, porque naquela noite elas voltaram a me habitar. Quando fui, no dia seguinte, para a oficina, resgatei todos os pontos que tinha e vi que o meu narrador era o Tempo, porque é uma história sobre a visão do Tempo sobre uma mulher e não a visão de uma mulher sobre o tempo. Foi quando eu entendi: “acho que passei esses seis anos procurando meu narrador. Achei”. Quando encontrei a voz do tempo como narrador, toda a história fez sentido e eu consegui seguir com muito prazer, muita alegria e muito interesse, esse livro que eu estava escrevendo há muitos anos.

Para não acabar tão cedo é seu primeiro livro em prosa e vem antecedido por duas obras de poesia. Que diferenças você sentiu entre os processos de escrita?
— 
É completamente diferente. Eu sou da poesia e acho que meu livro tem uma presença muito forte da poesia, do início ao fim, é o que norteia minha linguagem, meu ritmo, meu tom. Isso faz parte de mim. Minha experiência com livros de poesia foi muito orgânica mesmo, eu fui escrevendo ao longo do tempo e depois eu organizei, com a veia narrativa, cada livro. São livros feitos à mão, são obras de arte nesse sentido.

O romance foi um mergulho em outras gavetas, foi sair do meu lugar seguro, me aventurar em um terreno absolutamente novo. Foi preciso de uma técnica e de uma leitura diferente. Não é superior a escrever um livro de poesia, mas é diferente. Era completamente novo para mim e exigiu um fôlego que eu não estava acostumada precisar na hora de escrever. Eu precisava entender todas as nuances, são muitas outras perguntas que a gente acaba fazendo, muitas outras gavetas que a gente acaba abrindo. O lugar da criação é completamente diferente. São experiências muito diferentes e muito grandes para mim. Eu não consigo eleger uma maior e uma menor, são completamente diferentes e foram Clarices completamente diferentes que escreveram. Foram muitos anos. Eu vivi várias vidas nesse tempo. É uma pessoa nova escrevendo-os também.

De onde surgiram as protagonistas Augusta e Lia? Na dedicatória do seu livro você traz sua avó e sua tia-avó.  Existe uma conexão pessoal?  Algum tipo de homenagem?
— 
Acho que não é uma homenagem, mas eu coloquei na figura da minha avó e da minha tia avó, essas duas irmãs, um símbolo forte para todas as mulheres que me cercaram na minha família. Sou de uma família de matriarcas muito fortes. Mulheres que são do interior, mulheres que muitas já se foram e muitas têm seus 87, 88, 90 anos. São senhoras que são de outro tempo, mas que falam muito sobre o tempo eterno e sobre o tempo em que a gente vive. São mulheres que, entre si, eu pude observar desde minha infância e até hoje, possuem muita força e muito cuidado, um amor visceral que é tão visceral que às vezes é controlador. São mulheres que falam alto, são mulheres que levam a família nesse amor e na panela. Elas mandam em tudo, é impressionante. São mulheres de vigor, de uma força incrível. Essa cena de Tia Nevinha e da minha avó, para mim foi um símbolo de ponto de partida de criatividade. Duas irmãs deitadas na mesma cama, depois do almoço, e aos cochichos, falando mal da família inteira, provavelmente. Eu sempre olhava para aquela cena com muita admiração. Depois de cuidar de todo mundo, elas diziam que iam dormir e não dormiam nada, ficavam fofocando e falando mal de todo mundo. Eu acho que isso resume muito a cumplicidade, essa intimidade e esse “dar a vida” uma pela outra, que elas tême que eu experimentei tendo uma irmã também, mais nova. Eu experimentei e experimento isso nessa relação tão forte que é ter uma irmã.

Como é ter o Tempo como personagem e contar a história das duas irmãs?
— 
A princípio, eu achei ousado. Eu digo que achei ousado porque nem eu mesma sabia onde essa voz iria me levar. A voz do Tempo, como assim? Como eu vou personificar, encarnar o tempo? Foi maravilhoso. Fui percebendo que podia me valer muito bem da linguagem. Como ele não tem humor definido, ele não tem rosto definido, ele não tem um gênero definido, nem eu queria que tivesse, o que eu podia fazer para que esse Tempo fosse tendo o tom que eu queria? Eu não queria aquele senhor sábio, barbudo. Não, eu queria um narrador que se sujasse com a história, se envolvesse, se surpreendesse. Eu queria humanizar esse narrador, ao mesmo tempo em que ele não podia estar muito longe de ser uma pessoa. Ele é o Tempo. O que eu ia fazer? Eu fui percebendo que a linguagem era uma grande aliada.

O Tempo não podia dizer coisas que a gente fala, por exemplo: faz tempo que…”. Ele não pode dizer isso, porque ele é o Tempo! Fui percebendo isso à medida que eu escrevia. Coisas que ele não podia falar. Coisas que ele precisava encontrar uma forma diferente de falar. Como é que ele iria falar sobre a passagem das horas? Sobre a diferença das horas do dia? Ele se preocupa mais em falar sobre o tom das luzes, de que forma o dia está passando. Ele vai observando o movimento da vida. Ele vê o mundo de outro jeito. O Tempo não é linear. Ele não está tão preocupado com grandes linearidades. Então ele vai e volta muitas vezes, com muita facilidade. Ele enxerga com a mesma clareza o que foi e o que está. Ele tem uma visão muito mais verossímil do que já passou. Então a forma que ele narra o passado foi conjugando os verbos no presente, e a forma que ele narra o presente foi conjugando os verbos no passado. Tudo isso e várias outras coisas foram um caminho de construção de uma linguagem, de um personagem muito específico que se movimentava na palavra de uma forma muito específica também. Ao mesmo tempo, quando eu pensei nele, foi quando eu entendi que aquilo que acontecia com os corpos daquelas irmãs que, no fundo, falavam sobre ele e falavam sobre elas. Por isso tudo se casou tão bem pra mim, quando eu o entendi melhor.

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