Édouard Louis: "Escrever é uma tarefa que exige muito ansiolítico e antidepressivos"

Um jantar fora da agenda com o escritor francês, ainda a ser descoberto pelo publico português, no Festival Literário de Óbidos

Édouard Louis jantava sozinho na imensa mesa do refeitório destinado aos escritores e ao staff do Festival Literário de Óbidos. Eventos de literatura às vezes abrem portas improváveis e a conversa com o novo enfant terrible da literatura francesa foi uma delas. Uma não-entrevista no sentido jornalístico, mas bastante reveladora sobre o gaulês nascido Eddy Bellegueule em 1992 no norte da França, no seio de uma família de tradição operária, conservadora e com desvios fascistas, entre eles, a homofobia, o que se traduziria ao mesmo tempo num tormento e na redenção do escritor, que desde cedo reconheceu a sua homossexualidade e a necessidade de “escapar” daquela realidade.

Uma fuga pavimentada com a ida a Paris, cristalizada na publicação do sugestivo O fim de Eddy, já com o nome de Édouard Louis na capa. Seguiram-se outras sete obras, a última O colapso, lançada em 2025, escritos urdidos pelo fio da autobiografia, um género quase sempre desvalorizado pela crítica, editoras e também autores, mas o caminho que o escritor encontrou para travar o tour de force com o seu passado. Também um posicionamento político, pois para Édouard Louis a resistência do “mundo da literatura” à autobiografia é uma forma da classe dominante virar o rosto para a realidade das camadas mais modestas da sociedade. “Como faz quando encontra um mendigo na rua”, reforça.

Ao contrário do Brasil, onde é festejado, o francês é pouco conhecido em Portugal e o festival realizado na medieval muralha de Óbidos foi o primeiro contato de Édouard Louis com o público português, que travou conhecimento com seus escritos e suas histórias através das publicações brasileiras, um movimento que levou o braço luso da gigante Penguin a correr atrás e editar os seus títulos desse lado do Atlântico. “Publicaram um ou dois livros em Portugal, depois disseram que não venderam nada. Isso até as edições do Brasil passarem a irem muito bem por aqui”, explica um simpático e tímido Édouard Louis, que não poupa elogios à Todavia, a sua casa editorial no Brasil. “A Companhia das Letras me procurou várias vezes, mas estou bastante feliz e sensibilizado com a forma como a Todavia acolhe e lida com os meus livros”, explica.

Publicado em mais de três dezenas de países, Édouard Louis sentiu na pele o que é ainda ser um desconhecido em Portugal. “Me esqueceram no aeroporto em Lisboa”, revela, entre risos. “Fiquei horas à espera de alguém da editora ou da organização do festival até ser resgatado.” O atraso na chegada rendeu o jantar tardio e a conversa que resultou nesta entrevista, na companhia da escritora brasileira Fernanda Hamann, enriquecida com a interessante e concorrida participação no dia seguinte na mesa organizada pela Penguin Portugal no festival.

Sobre escrever

Eu não gosto de escrever, é uma tarefa que me exige muito ansiolítico e antidepressivos, mas eu tenho de fazer isso, tenho de escrever, pois se escrever me deixa triste, não escrever me deixa ainda mais triste. Gosta eu gosto de outras coisas, de estar entre os amigos, de vinho, de sexo, mas não de escrever, pois é complicado, na medida que é uma uma forma de captar a realidade, o que ouvindo assim parece fácil, mas não é. Pois, apesar de estarmos cercado pela realidade, de sentir a realidade, de respirar a realidade, a realidade ainda é algo difícil de se alcançar. Por isso, quando se experimenta a realidade, ela é fascinante. E quando o leitor se confronta com essa realidade num livro, ele se pergunta, mas por que levou tanto tempo para alguém falar sobre essa realidade?, e aquele instante de encontro com a realidade o prende, o fascina.  Mas não é fácil chegar a esse ponto, nem sempre a realidade aparece nos primeiros rascunhos do seu livro. Ela está tão viva na sua cabeça, mas não traduzida em palavras.  E é por isso que a realidade é tão difícil de capturar e escrever é tão complicado e angustiante.

Processo de escrita

Escrevo durante a tarde. À noite, leio, durante a madrugada. Costumo me deitar pelas quatro da manhã e dormir até ao meio-dia. Daí, basicamente, escrevo uma cena, fico de pé e leio em voz alta, depois sento e volto a escrever,. Daí fico novamente em pé, leio em voz alta, e por aí vai. Um processo que leva várias versões e pode durar meses, em busca da sensação de que estou a falar diretamente com o leitor, como se estivesse a sussurrar no ouvido dele, e que ele não pode escapar do que estou a dizer. Há autores que valorizam a liberdade dos leitores, em avaliarem o que foi escrito e decidir o que fazer com aquilo. Mas não estou interessado na liberdade dos leitores, não quero que sejam livres, estou comprometido em forçar que veja, escutem, testemunhem algo que não querem. E para isso, para forçá-los a olhar temas como o patriarcado, a homofobia, o racismo e a pobreza procuro uma forma de escrever que seja ao leitor impossível de escapar, o que passa pelo tom da escrita, para que quando abram o livro sintam que estão a falar com um ser humano e não apenas a segurar um objeto.

Emoção e literatura

Venho de uma família de tradição operária do norte da França e fui o primeiro a ir para Paris e circular num meio literário. Quando cheguei, me deparei com noções estabelecidas sobre como a literatura deveria ser e agir e, embora não exista uma Bíblia sobre o que a literatura deve ser, a sociedade sugere diariamente o que a literatura deve fazer. E o que mais me surpreendeu no mundo da literatura foi uma  rejeição a um certo grau de emoção. As críticas sobre os livros diziam que um livro era ruim porque trazia miserabilismos, vitimismos, o que de alguma forma reflete o pensamento burguês que considera uma arte menor ou nem mesmo arte a emoção, um sentimento fundamental para as classes mais modestas, que compra livros melosos nas bancas de revistas e assiste às novelas para chorar. Foi aí que resolvi escrever sobre os sentimentos das classes mais modestas e trabalhadoras, dos seus sofrimentos, afinal, perdi o meu irmão por alcoolismo, o meu pai mal conseguia andar aos 50 anos, pois as costas doíam após anos de trabalho árduo, a minha mãe foi obrigada pelo meu pai durante vinte anos a viver trancada em casa para criar os filhos, lavar as roupas, condenada a não poder dirigir, a não ter uma vida profissional, a nem se maquiar. Se não escrevesse livros que fizessem os leitores chorar, estaria traindo o sofrimento deles, seria cúmplice de uma burguesia que sempre quis esconder a realidade da violência. Então, começar a escrever foi também começar uma guerra contra uma literatura baseada em toda essa convenção que menospreza o sentimento, o sofrimento, a violência sofrida pelas classes mais populares.

Prender o olhar do leitor

Volto a insistir, não estou interessado em meus leitores tomarem suas decisões. Pelo contrário, quero tomar essa decisão por eles, que sintam o que eu quero que eles sintam, que vejam o que eu quero que eles vejam, pois caso contrário, eles vão virar a cabeça para evitar o sentimento, como fazem o tempo todo quando vêm um mendigo na rua e viram a cabeça, cúmplices dessa realidade. Não escrevo para sugerir, mas para confrontá-los com essa realidade. Não acredito que a literatura seja considerada boa por não dizer diretamente as coisas, mas apenas por sugerir, que aí está a beleza da literatura. A literatura também pode ser bela e ser mais explícita, mas esse caminho acaba por desestabilizar o mundo literário, onde a maioria dos autores, editores e críticos vêm da classe dominante e não têm o menor interesse em serem confrontados com um mundo da pobreza, da violência, da desigualdade, desconectando o que é considerada uma boa literatura da literatura da realidade. É tempo de recriar esse conceito.

Ler, escrever, escapar

O meu último livro, O colapso, é sobre como o meu irmão tentou escapar da realidade dele e fracassou. Levei anos a perceber isso. Quando era um menino gay no norte da França, oriundo de uma família da classe trabalhadora, extremamente homofóbica, de extrema-direita e pensamentos fascistas, eu queria desesperadamente escapar dessa realidade. Tinha sete, oito anos, e todo dia pensava, quero escapar, preciso escapar, as pessoas na rua a apontavam o dedo para mim e diziam sua bicha, seu afeminado, todos esses insultos me levavam a pensar que não tinha alternativa a não ser escapar, fugir dessa realidade. Só que eu pensava que era o único que queria escapar, que os demais não queriam escapar dessa realidade, que meu pai, meu irmão e minha mãe estavam felizes com as vidas deles.

Só quando quando comecei a escrever percebi que estava errado, que era estúpido pensar que eles estavam felizes com aquela realidade, que eles não desejavam também escapar daquela realidade, que ninguém está feliz em viver numa casa pequena e suja, de ter privação alimentar, de não ter alternativa melhor na vida. Todos queriam escapar, não só eu, e comecei a escrever livros que eram retratos desse desespero das pessoas em escapar, como o meu irmão tentou escapar pelo uso abusivo do álcool e da violência, pois para ele a violência era uma forma de escapar. Ser violento era o único momento em que o meu irmão não era uma vítima, quando se sentia poderoso, que ao bater nos gays, bater nas mulheres, bater inclusive no seu cão era o único momento em que ele não era um merda, que ele existia. A verdade, porém, é que quanto mais se vai por esse caminho, mais se está preso neste labirinto, que sua estratégia de fuga vai aprisioná-lo ainda mais. Ao escrever percebi que as pessoas não se dividem em quem quer ou não escapar, todos querem escapar, a diferença está entre quem e não tem condição de fazê-lo.

Livros e redenção

Era uma criança, mas ninguém queria brincar com um amiguinho gay, ninguém queria ser amigo de um gay, havia um temor de ser contaminado e também virar gay e daí meu refúgio eram as bibliotecas das escolas. O estranho é que levei um enorme tempo para ler livros, rejeitava os livros, pois de alguma forma aquela literatura me rejeitava, rejeitava de onde vinha e quem era, e pensava, se a literatura não se interessa por nós, a literatura é nossa inimiga. As pessoas não percebem como a literatura pode ser violenta. A minha mãe ao ver um livro era confrontada sobre a vida dela, sobre como as pessoas sabiam mais e falavam melhor do que ela. O livro era um símbolo e percebi quando comecei a ler. O livro se transformou na diferença entre mim e a minha família. Daí sentava no sofá e fingia ler um livro pois sabia que aquilo era uma recado à minha família, que o livro me separava deles, que estava a dizer, não sou mais igual a vocês. Mas isso foi depois, antes passei anos em bibliotecas e livrarias sem ler um livro, muito amigos dos bibliotecários e livreiros, mas não amigo dos livros,

Ódio e realidade

Ninguém na minha família ficou feliz quando comecei a escrever. Minha família me insultou, me ameaçou. Escrevo sobre isso em O colapso, em o meu irmão ter ido a Paris com um taco de basebol para me matar, me obrigando a passar dias trancado em um hotel. Falo nos insultos da minha irmã, nas mensagens agressivas no telefone. Mas eu não estava interessado em agradar a minha família. Escrevo livros para falar de situações difíceis, para que meus livros encarnem as dificuldades das classes mais populares e trabalhadores, representadas quase sempre de forma caricatural. E ao fazer isso, necessariamente não agrado aos trabalhadores, pois escrever sobre uma realidade, escrever para e em em nome de uma realidade, é também escrever contra essa realidade, é confrontá-la, e se confrontado nunca é agradável. E essa realidade também me confronta, também não me agrada. Sabe, sempre quando encontro os leitores e eles me dizem que são tocados pelos temas dos meus livros, que amam os meus livros, eu penso que comigo é o contrário, que odeio os meus livros. Odeio todos eles.