A missão de Marcos Neves não é das mais fáceis: revelar as curiosidades e quebrar alguns mitos de um dos idiomas mais antigos e falados do mundo, o português. Mestre em estudos anglo-portugueses e doutor em línguas e literatura, aos 43 anos o professor da Universidade Nova de Lisboa é comentarista na rádio e na televisão portuguesa, mas é nas redes sociais, nos seus perfis no Instagram e no TikTok, que o também tradutor e escritor tem conquistado muito mais do que os “alunos” no Velho Mundo. “Quase metade dos meus seguidores é do Brasil”, surpreende-se Marcos Neves. Um dos segredos de sua face de influenciador é colocar os pingos nos is na relação nem sempre pacífica entre os falantes das variantes de Portugal e do Brasil do português, para ele, uma só língua. “A diferença entre o português falado por Camões 500 anos atrás e o português de Portugal de agora é maior do que entre o português de Portugal e o português do Brasil”, provoca o professor nesta entrevista a Álvaro Filho para a Pernambuco, na qual explica as origens do idioma que une povos da Europa, América do Sul, África e Ásia.
Qual a origem do português?
— O português vem do latim que se falava naquela zona onde é a Galiza, ou Galícia como se diz no Brasil, ao norte de Portugal. Depois, espalhou-se para sul, portanto não nasceu no que é hoje Portugal. Mas também é errado dizer que o português vem do galego, pois o galego é que cresceu junto ao português.
E havia outras influências para além do latim?
— A matriz é latina, mas há certamente outras línguas faladas cá que acabaram por influenciar o português. É preciso perceber que as pessoas não aprendiam o idioma na escola, como é hoje. Aprendiam como adultos, aprendiam como se diz, “mal” ou “errado”, incorporando essa nova língua à língua que falavam. Não se sabe exatamente que idiomas eram esses, às vezes referidos apenas como línguas celtas, nem se sabe ao certo o nível de influência, mas é por causa dessa influência que o português é diferente do castelhano, que é diferente do francês.
E esse latim falado “mal” já era reconhecido como um idioma?
— Na época, ninguém se referia ao galego nem ao português, nem dava esses nomes às línguas, como se dá agora. Se não existia Portugal, portanto português não era. O termo usado era linguagem, falavam linguagem, que vinha do latim, mas não é o que nós aprendemos hoje na escola como a língua portuguesa. É muito parecida, mas hoje teríamos alguma dificuldade em perceber.
Então, qual é a idade do português?
— Quando o português aparece na escrita formal, já existia há muitos séculos, as pessoas já falavam esse português nas ruas. As indicações são que a nossa língua começou a desenvolver-se no século VI ou VII, portanto, por volta dos anos 500 ou 600, quando as palavras no que viria a ser o português e o castelhano começam a variar, como, por exemplo, em lua e luna, quando no português cai a letra “n”, como em tantos outros exemplos. Digamos que as características centrais da nossa língua nasceram a partir desse período.
E quando o português acabou reconhecido como idioma?
— A partir do século X, havia faixas deste lado da Península Ibérica que falavam mais ou menos o mesmo idioma, com pequenas variações, como na região atual de Miranda do Douro, onde ainda se fala o mirandês, uma variação do leonês falado no então Reino de Leão, em Espanha. É bem possível que o primeiro rei de Portugal, no século XII, reconhecesse que a língua que falava era diferente do latim que ouvia nas missas, do galego ou do castelhano. Mas só depois, depois inclusive de Dom Dinis (1261-1325), o primeiro rei que começou a usar o idioma com mais frequência na corte, só apenas no século XV, mais ou menos em 1430, quando Pedro, o Infante (1392-1449) registrou a tradução de um texto para o “português” é que se lê a primeira referência ao idioma. Neste tempo, a expansão portuguesa já havia sido iniciada e, portanto, curiosamente o português antes de ser batizado já estava a ser levado a outros cantos do mundo.
Já era uma língua gramaticalmente estruturada?
— O padrão do português só começou a ser pensado depois do início da expansão, em Lisboa, onde a primeira universidade foi fundada, antes de ser transferida para Coimbra. É por isso que muitas vezes dizem que é em Lisboa e Coimbra onde se fala o “português correto”. Tanto em Lisboa como em Coimbra, o português foi estruturado à volta dos usos de certas classes sociais compostas por pessoas com mais peso na sociedade, a corte ou os escritores, por exemplo. Ou seja, num certo bairro lisboeta mais modesto, as pessoas falavam outro tipo de português. Mas a primeira gramática portuguesa surgiu já depois da chegada de Pedro Álvares Cabral ao Brasil.
Então, os portugueses também chegaram ao Brasil antes do português?
— Isso. No momento em que no Brasil começa a existir uma presença portuguesa significativa, já se sabia que o português existia, mas durante algumas gerações no Brasil falava-se uma espécie de língua geral, formada a partir do português dos jesuítas misturado a línguas originárias, como o tupi-guarani. Portanto, os próprios portugueses que iam ao Brasil tinham de aprender essa nova língua. Os jesuítas até tentaram desenvolver gramáticas dessa língua geral bastante complexa, mas isso só até o Marquês de Pombal (1699-1782) impor o português como língua oficial do Brasil.
É o momento onde Brasil e Portugal começaram a falar o mesmo idioma?
— Sim, quando surgiu uma política consciente de Portugal em disseminar o português como idioma, inclusive no Brasil. Uma certa dinâmica interna colaborou para que o português se espalhasse no país, como o crescimento em tamanho e importância das cidades. Mas ainda assim, como havia acontecido com o latim séculos atrás, não se aprendia o português em criança, numa escola, mas já adulto, influenciando-o ao misturá-lo a outras línguas e dialetos. No caso brasileiro, portanto, um português formado por certos dialetos portugueses, pois os colonizadores não vinham do centro de Portugal, mas de zonas como o Minho, o Algarve e os Açores, influenciado por certos dialetos africanos e expressões indígenas.
Então, o mesmo idioma, mas já com diferenças?
— Se nós fôssemos parar no Brasil do século XVII, perceberíamos imediatamente que as diferenças começaram logo de início. O português do Brasil sempre foi muito próprio e teve suas peculiaridades. Uma certa aproximação só ocorreu no século XIX, quando curiosamente o país ficou independente da coroa portuguesa; mas, ainda assim, optou-se pelo português europeu como língua oficial. É neste período, no aparecimento dos primeiros jornais e de uma literatura brasileira, que o português de cá com o de lá estão mais próximos. Quando leio Machado de Assis, não sinto assim tanta diferença na escrita, por exemplo. Era um português corrente muito mais próximo do que às vezes os portugueses pensam.
Os mesmos portugueses que costumam dizer que os brasileiros falam o português errado…
— Todas as línguas internacionais variam, têm sua história, e no caso do português do Brasil e de Portugal não foi diferente. Alguns usos do português brasileiro são mais antigos até do que o de Portugal, o que o faz diferente, mas não errado, como se diz. Continuo a achar que estamos perante a mesma língua, mas com usos variados, pois a gramática não tem o poder de dizer, “então pronto, a partir de agora todos vão falar assim”
Por que essa percepção de que falamos errado?
— Acontece entre Portugal e Brasil algo diferente do que acontece entre a Espanha e suas ex-colônias. Não há um outro país falante em castelhano que, sozinho, seja maior que todos os outros reunidos. Nem o México, que é enorme. Isso não provoca, digamos, uma sensação de ameaça, de sobreposição de uma variante. Mas o Brasil é maior do que os demais países falantes de português juntos. Isso acaba criando o que chamo de uma espécie de narrativa de superioridade, uma certa mania de Portugal em achar que o português daqui é melhor, pois de cá veio. Mas essa narrativa de superioridade também pode ser cruzada, ou seja, de o Brasil achar que a variante brasileira é a melhor porque há mais gente a falar. No fundo, como tanto uma como outra são a mesma língua e a compreendemos tão bem, as diferenças acabam saltando à vista, o que não ocorre em línguas semelhantes, mas que não são a mesma, como o português e o castelhano.
Mas até há pouco tempo, as crianças brasileiras eram colocadas para estudar português como língua estrangeira nas escolas portuguesas…
— Isso não fazia sentido algum. É natural que quando uma criança brasileira venha para cá, aprenda o português de Portugal, mas não como uma língua estrangeira. É de saudar a decisão do último governo (na gestão socialista, em 2023) em quebrar essa determinação. Mas ainda há outros pontos, como quando os universitários vêm para cá e há por parte das universidades uma intransigência em levar em conta que os estudantes chegam com o padrão português do Brasil e isso deve ser respeitado. É preciso também uma afirmação política a respeito. É uma pena, mas tenho a esperança que haja um diálogo maior entre os dois povos, pois desde o século XIX não acontece aquilo que está a acontecer agora, de um contato maior em Portugal e Brasil.
Por causa da presença brasileira em Portugal?
— A imensa presença brasileira cá e o fato de as redes sociais permitirem o intercâmbio linguístico podem levar a um equilíbrio. No século XIX, o habitual era muito o que se fazia em Portugal ir para o Brasil. No século XX, foi o contrário, tudo o que se fazia no Brasil ia para Portugal, mas nunca houve um diálogo, um equilíbrio. Mas estamos numa altura em que já é possível haver este diálogo, em que os brasileiros ouvem os portugueses e os portugueses ouvem os brasileiros. Por isso, tenho alguma esperança de que, se calhar, vamos começar a conviver melhor com uma língua que tem suas diferenças, mas que é uma só língua.
Faz sentido o temor de certos portugueses de que a grande presença brasileira em Portugal possa levar as futuras gerações a falar o português do Brasil?
— Há realmente aqueles medos cá em Portugal de que as crianças que assistem ao Lucas Netto, que é um fenômeno no YouTube, passem a falar como os brasileiros. Mas a influência de uma versão de uma língua sobre outra exige mais do que isso. Na maioria das vezes, as comunidades de imigrantes não têm uma penetração social capaz de criar a oportunidade de impor a sua variante. É bem mais fácil que o YouTube o faça. Um caminho é a presença massiva, como aconteceu na Inglaterra numa época, quando quase metade da população era viking. Os brasileiros são muitos, mas com 10%, até 15% da população, não se consegue influenciar uma variante. A presença imigrante, porém, é muito importante para se normatizar as diferenças, ajudando que as pessoas de cá conheçam um bocadinho melhor o português de lá.
Diferenças que levam os portugueses a dizerem que nós falamos “brasileiro”, e não português…
— Para responder vou evocar Camões, bastante lembrado neste ano que passou por causa do seu cinquentenário. Pois bem, a diferença entre o português falado por Camões 500 anos atrás e o português de Portugal de agora é maior do que a diferença entre o português de Portugal e o português do Brasil. Quem acredita que o português do Brasil é um idioma diferente terá de dizer que o Camões também falava uma outra língua, porque em termos linguísticos as diferenças são maiores. Se leio um texto da altura de Camões, noto muito mais diferenças semânticas, sintáticas e de construção das frases do que num texto em português brasileiro.
Essas diferenças justificam o Acordo Ortográfico de 1990?
— Não me parece que tenha sido necessário. A ortografia sempre esteve muito próxima, bastava apenas reconhecer as poucas diferenças ortográficas existentes. Ainda por cima, o acordo manteve algumas dessas diferenças, permitindo a grafia dupla, como na palavra “facto” e “fato”. Foi desnecessário e teve problemas técnicos, mas está em vigor no sistema de ensino. Isso em Portugal e no Brasil, pois até onde sei em Angola e Moçambique não foi aprovado. Continuamos, portanto, na prática com duas, três ortografias oficiais.
E o conceito de lusofonia?
— Para mim não faz muito sentido falar em lusofonia. Talvez em comunidades onde as pessoas falam uma língua com variantes. O termo lusofonia pode ser um pouco perigoso, pois pode ser aproveitado para dar uma ideia de manutenção de um império, de imposição artificial de uma unidade que deveria ser natural, vir das pessoas. É mais correto falar de uma Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), mas o conceito de lusofonia pode ser um bocadinho perigoso.
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