Caetano Galindo: romancista (e tradutor) por acaso

Celebrado tradutor de James Joyce, Caetano Galindo lança romance de estreia, publicado originalmente como folhetim

Parece anacrônica a ideia de, em anos recentes, um autor contemporâneo publicar um folhetim, a exemplo do que nomes como Alexandre Dumas, Victor Hugo ou Machado de Assis fizeram no século XIX. Mas esse foi o caminho que o tradutor e escritor Caetano Galindo escolheu para o seu primeiro romance, Lia: cem vistas do monte Fuji, recém-publicado.

Com mais de 50 livros traduzidos, de idiomas tão distintos quanto inglês, dinamarquês, italiano e romeno – e de autores tão diversos quanto David Foster Wallace, James Joyce, J.D. Salinger, Ali Smith e Abdulrazak Gurnah –, pode-se dizer que Galindo, 50 anos, é um profissional tarimbado. A sua tradução de Ulisses, de Joyce, premiada com um Jabuti e com o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte é hoje tida, por muitos, como a melhor entre as três disponíveis aos brasileiros, sendo seus antecessores Antônio Houaiss e Bernadina da Silveira Pinheiro.

Se ficou conhecido no mercado literário sobretudo por traduzir obras consideradas difíceis – além do já citado Ulisses, tem no currículo Vício inerente (Pychon) e Graça infinita (Foster Wallace) –, Galindo difere desses nomes apostando, como autor, em um texto bem menos hermético. Ainda assim, seu Lia não pode ser visto como um romance comum e tem uma estrutura não pesadamente intricada, mas um tanto fragmentada.

O subtítulo Cem vistas do monte Fuji dá uma pista da estrutura de Lia. É uma referência à série homônima de gravuras de Katsushika Hokusai, obra célebre em que o pintor japonês registra a paisagem do Fuji a partir de diferentes locais e ângulos. Da mesma forma, Galindo observa e registra sua personagem-título a partir de distintos pontos de vistas e períodos, de forma não linear, no decorrer de cada capítulo.

Ao contrário do que o subtítulo pode sugerir, não temos aqui 100 vistas de Lia; aliás, nem sempre a personagem o centro da paisagem pintada por Galindo. O último capítulo é o de número 99, mas é não é como se o centésimo fosse o único que está “faltando”. A numeração dos capítulos dá saltos, como se algumas partes tivessem sido perdidas, o que reforça o aspecto fragmentado da narrativa. Cabe ao leitor, se desejar, tentar estabelecer uma ordem dos acontecimentos desconexos e preencher eventuais lacunas.

Antes de chegar às prateleiras de livrarias, Lia foi publicado em capítulos ao longo de dois anos, entre 2019 e 2021. A ideia de escrever uma história com a personagem-título já rondava a cabeça de Galindo há algum tempo. Porém, a narrativa só foi materializada após seu irmão, o jornalista e também tradutor Rogério Galindo, convidar Caetano para colaborar no portal Plural.

Capitaneado por Rogério, o Plural foi lançado em 2019, e a maneira que Caetano encontrou para colaborar no novo site de notícias de Curitiba foi publicar Lia, em capítulos semanais. “E eu decidi que minha contribuição, para fazer uma coisa diferente, seria esse folhetim esquisito, não inter-relacionado, com capítulos isolados, que as pessoas pudessem ir descobrindo que ele existia, chegando a ele a qualquer momento”, explica o autor.

“Seria a realização de um projeto que eu já tinha, que era contar as histórias dessa mulher, que na minha cabeça sempre se chamou Lia, E que vinha me rondado há algum tempo”, continua Galindo. “E naquele momento apareceu a oportunidade, meio que a necessidade, e eu acabei entrando nessa”, continua.

O resultado é uma narrativa fragmentada, mas não confusa, com passagens de uma vida que pode, em diversos momentos, parecer com a sua ou a de alguém que você conhece. Às vezes somos Lia, outras, somos observadores. Ora triste, ora alegre, mas sempre sensível e poética, a narrativa de Lia reflete bem o aspecto multifacetado que uma vida pode ter, seja para quem vive ou para quem observa essa existência de longe.


O desejo de escrever era algo antigo ou surgiu após o trabalho na tradução?
— 
Eu sempre li, muito. Acho que como todo mundo que lê bastante e passa um pedaço da juventude com a cara enfiada em livro, em vez de conversando com as pessoas, em algum momento pensa em escrever. Eu e meu irmão (Rogério), muito jovens, a gente escrevia pedaços de coisas e trocava um com o outro. Isso, sei lá, na adolescência. Mas eu não pensava em fazer Letras, não era uma carreira que eu conhecesse, eu não era de uma família de professores, não era algo que estivesse no meu horizonte.

Então, a literatura veio depois.
— 
Meu plano era fazer música, e eu fiz música. Fiz exame para o conservatório em Tatuí, fui aprovado, comecei, fazia violão clássico. Sofri uma lesão, e essa lesão me tirou da carreira musical. Abandonei Tatuí, voltei pra Curitiba, ainda passei um mês dando aula com a mão engessada, porque eu curtia, continuava tentando tocar com os dedos que estavam livres, eu me fodi completamente. Fiquei meio sem rumo, a essa altura estava com 18, 19 anos. E meu irmão, que é dois anos mais novo do que eu, ele sabia que queria fazer Comunicação. Ele achava que queria fazer Publicidade, depois ele mudou de trajetória (Jornalismo). “Vou fazer vestibular com o Rogério”, foi meio que a minha motivação. Eu me lembro de pegar o manual do candidato, achava que não ia conseguir passar em nada, estava afastado de cursinho. Olhei, na área de Humanas, os cursos que pareciam interessantes e mais fáceis de passar e escolhi Letras. Meio na louca. No fim das contas, tive nota pra passar em qualquer curso da universidade, mas não sabia disso.

Mas o curso de Letras acabou levando você para a tradução, não?
— 
Entrando em Letras, achava que ia entrar no curso para me tornar escritor, o que é uma estupidez sem tamanho. Mas acho que é algo que ainda leva muita gente pra lá. Depois, eu descobri a Linguística, a Linguística Histórica, fiquei fascinadíssimo por isso, fui me encaminhando para a Linguística, que é a carreira que eu sigo até hoje dentro da universidade.

E você enxergava também uma carreira como escritor?
— 
Eu tinha uma noção muito vaga de que eu ia gostar de ser escritor, mas nunca tive um projeto. E não tenho até hoje. Conheço gente, até mais nova do que eu hoje, que tem um projeto, que tem uma necessidade, gente que chegou a ter três, quatro livros inéditos prontos antes de conseguir publicar e não parou de escrever, porque sabia que queria isso. Para mim, isso nunca foi assim. Eu gosto de escrever, eu às vezes sinto necessidade de escrever, eu me divirto fazendo, eu gosto de publicar, mas, veja, eu tenho 50 anos de idade e eu publiquei um livro de poesia, dois livros de contos, sendo que o segundo é uma reelaboração e expansão do primeiro, e agora, um romance. Não é exatamente uma carreira literária, e não sei se um dia vai vir a ser.

Então...
— 
É uma coisa que me interessa, que me agrada, que tem a chance dizer alguma coisa a algumas pessoas, o que eu faço tem essa chance. Não sei. Gosto de pensar que parte da minha relação com a literatura, e com a arte em geral, vem dessa carreira frustrada de músico, como se eu tivesse sido privado daquilo que eu realmente era um empenho de vida pra mim, e que seria pesado, sério, profundo, complicado, inclusive, difícil de lidar. As outras coisas são bônus. E eu encaro com uma lucidez maior do que eu encararia e encaro até hoje a música.

Hoje, a figura do tradutor tem sido mais valorizada e reconhecida pelos leitores, ao ponto de algumas traduções virarem fator de decisão de compra de um livro. Como você enxerga esse cenário?
— 
Fico com uma grande felicidade de ter tido a possibilidade de participar desse momento do mercado editorial brasileiro em que a tradução literária ganhou muita maturidade e visibilidade. Essa situação – de começar a considerar que tal tradutor ou tal tradutora é uma espécie de garantia de interesse – é nova. Essa situação não existia há muito pouco tempo. Mas hoje é uma constante. Tenho vários nomes de tradutores que eu coloco nessa lista, e digo que vou ler esse texto porque tenho uma garantia de que: 1) essa pessoa normalmente só trabalha com texto bom, porque já tem um lugar no sistema editorial; 2) o texto em português vai ser de qualidade. Eu acho isso muito legal, muito bacana, muito interessante culturalmente, e me sinto muito privilegiado de ter participado desse momento, desse rito de passagem da tradução literária no Brasil. Quando Ulysses foi publicado, isso estava muito no começo. E gostei de ver isso acontecer de lá pra cá.

Você também escolhe livros por conta dos tradutores?
— 
Saí pra passear com o cachorro para ler, que é o que normalmente faço, estou carregando um livro de mil páginas, que é o Shahnameh, o Livro Persa dos Reis (do poeta persa Abolqasem Ferdowsi). O Dick Davis, que tinha traduzido A conferência dos pássaros [The conference of the birds, do poeta iraniano Farid-Ud-Din Attar], que é um trabalho magnífico, traduziu o Shahnameh. Fui ler, é um livro de mil anos de idade, uma tradição riquíssima, desconhecida para nós, mas eu cheguei a ele por causa do tradutor.

O desejo de escrever era algo antigo ou surgiu após o trabalho na tradução?
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Eu sempre li, muito. Acho que como todo mundo que lê bastante e passa um pedaço da juventude com a cara enfiada em livro, em vez de conversando com as pessoas, em algum momento pensa em escrever. Eu e meu irmão (Rogério), muito jovens, a gente escrevia pedaços de coisas e trocava um com o outro. Isso, sei lá, na adolescência. Mas eu não pensava em fazer Letras, não era uma carreira que eu conhecesse, eu não era de uma família de professores, não era algo que estivesse no meu horizonte. Então, a literatura veio depois.Meu plano era fazer música, e eu fiz música. Fiz exame para o conservatório em Tatuí, fui aprovado, comecei, fazia violão clássico. Sofri uma lesão, e essa lesão me tirou da carreira musical. Abandonei Tatuí, voltei pra Curitiba, ainda passei um mês dando aula com a mão engessada, porque eu curtia, continuava tentando tocar com os dedos que estavam livres, eu me fodi completamente. Fiquei meio sem rumo, a essa altura estava com 18, 19 anos. E meu irmão, que é dois anos mais novo do que eu, ele sabia que queria fazer Comunicação. Ele achava que queria fazer Publicidade, depois ele mudou de trajetória (Jornalismo). “Vou fazer vestibular com o Rogério”, foi meio que a minha motivação. Eu me lembro de pegar o manual do candidato, achava que não ia conseguir passar em nada, estava afastado de cursinho. Olhei, na área de Humanas, os cursos que pareciam interessantes e mais fáceis de passar e escolhi Letras. Meio na louca. No fim das contas, tive nota pra passar em qualquer curso da universidade, mas não sabia disso.

Mas o curso de Letras acabou levando você para a tradução, não?
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Entrando em Letras, achava que ia entrar no curso para me tornar escritor, o que é uma estupidez sem tamanho. Mas acho que é algo que ainda leva muita gente pra lá. Depois, eu descobri a Linguística, a Linguística Histórica, fiquei fascinadíssimo por isso, fui me encaminhando para a Linguística, que é a carreira que eu sigo até hoje dentro da universidade.

E você enxergava também uma carreira como escritor?
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Eu tinha uma noção muito vaga de que eu ia gostar de ser escritor, mas nunca tive um projeto. E não tenho até hoje. Conheço gente, até mais nova do que eu hoje, que tem um projeto, que tem uma necessidade, gente que chegou a ter três, quatro livros inéditos prontos antes de conseguir publicar e não parou de escrever, porque sabia que queria isso. Para mim, isso nunca foi assim. Eu gosto de escrever, eu às vezes sinto necessidade de escrever, eu me divirto fazendo, eu gosto de publicar, mas, veja, eu tenho 50 anos de idade e eu publiquei um livro de poesia, dois livros de contos, sendo que o segundo é uma reelaboração e expansão do primeiro, e agora, um romance. Não é exatamente uma carreira literária, e não sei se um dia vai vir a ser. Então...É uma coisa que me interessa, que me agrada, que tem a chance dizer alguma coisa a algumas pessoas, o que eu faço tem essa chance. Não sei. Gosto de pensar que parte da minha relação com a literatura, e com a arte em geral, vem dessa carreira frustrada de músico, como se eu tivesse sido privado daquilo que eu realmente era um empenho de vida pra mim, e que seria pesado, sério, profundo, complicado, inclusive, difícil de lidar. As outras coisas são bônus. E eu encaro com uma lucidez maior do que eu encararia e encaro até hoje a música.

Hoje, a figura do tradutor tem sido mais valorizada e reconhecida pelos leitores, ao ponto de algumas traduções virarem fator de decisão de compra de um livro. Como você enxerga esse cenário?
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Fico com uma grande felicidade de ter tido a possibilidade de participar desse momento do mercado editorial brasileiro em que a tradução literária ganhou muita maturidade e visibilidade. Essa situação – de começar a considerar que tal tradutor ou tal tradutora é uma espécie de garantia de interesse – é nova. Essa situação não existia há muito pouco tempo. Mas hoje é uma constante. Tenho vários nomes de tradutores que eu coloco nessa lista, e digo que vou ler esse texto porque tenho uma garantia de que: 1) essa pessoa normalmente só trabalha com texto bom, porque já tem um lugar no sistema editorial; 2) o texto em português vai ser de qualidade. Eu acho isso muito legal, muito bacana, muito interessante culturalmente, e me sinto muito privilegiado de ter participado desse momento, desse rito de passagem da tradução literária no Brasil. Quando Ulysses foi publicado, isso estava muito no começo. E gostei de ver isso acontecer de lá pra cá.

Você também escolhe livros por conta dos tradutores?
— 
Saí pra passear com o cachorro para ler, que é o que normalmente faço, estou carregando um livro de mil páginas, que é o Shahnameh, o Livro Persa dos Reis (do poeta persa Abolqasem Ferdowsi). O Dick Davis, que tinha traduzido A conferência dos pássaros [The conference of the birds, do poeta iraniano Farid-Ud-Din Attar], que é um trabalho magnífico, traduziu o Shahnameh. Fui ler, é um livro de mil anos de idade, uma tradição riquíssima, desconhecida para nós, mas eu cheguei a ele por causa do tradutor.