Ansiedade pós-prêmio Camões do escritor paulista Rafael Gallo

Com três prêmios importantes na bagagem, o romancista deu uma pausa em um trabalho burocrático para se dedicar à escrita em Portugal

A conversa com o escritor Rafael Gallo começou com meia-hora de atraso, devido à greve no metrô de Lisboa, que o fez perder tempo no caótico trânsito da capital portuguesa dentro de um Uber a caminho até a biblioteca pública Palácio Galveias, instalada num belíssimo palacete do século XVII. O atraso não tirou o bom humor do escritor brasileiro, vencedor do Prêmio Saramago em 2022 com o livro Dor fantasma.

Aos 42 anos, Rafael Gallo mora, há um ano, em Lisboa, cidade onde José Saramago formou-se escritor. Ao contrário do único Nobel de Literatura em língua portuguesa, porém, que começou a ser reconhecido como escritor quando já contava mais de 50 anos, Gallo conheceu o début literário ainda cedo: em 2012, venceu o Prêmio Sesc com o conjunto de contos Réveillon e outros dias. Contabilizava 31 anos. Três anos depois, repetiria a dose, desta vez no Prêmio São Paulo de Literatura com Rebentar, o seu primeiro romance.

A decisão de se mudar para Portugal, para além das questões que envolvem a aventura da imigração, passou por questões prosaicas, como deixar para trás a segurança de um emprego público no Tribunal de Justiça de São Paulo. O que poderia ser um entrave, acabou por tornar-se um ponto decisivo na escolha de migrar. “Tirei dois anos de licença sem vencimentos, o que me dá uma certa segurança de que, se nada der certo ou não gostar da experiência, poder voltar justamente para o ponto onde estava”, explica o escritor.

Às voltas com a escrita de um novo romance, Rafael Gallo voltou ao seu gênero de origem, com o livro de contos Cavalo no escuro, lançado em setembro.

Foi tranquila a decisão de se mudar para Portugal?
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Tem sempre esse lado de pensar: “será que é isso que você deve fazer agora?”. Mas neste contexto, senti uma certa segurança. Sigo com a minha licença não remunerada e se quiser voltar ao Brasil será no mesmo ponto da minha vida de antes. Por outro lado, eu sempre quis viver a experiência de morar fora do Brasil. Tinha uma reserva guardada, somada ao valor do prêmio, o que me garante uma estabilidade. Era, afinal, o momento certo do ponto de vista da escrita, pois o Prêmio Saramago confere uma certa distinção literária para que vivesse a experiência de escritor full time.

Nada parecida com a experiência de escrevente full time num tribunal…
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Não, mesmo. A escrita no tribunal era um ofício muito mecânico, obedecendo modelos prontos e fechados. Às vezes, me perguntavam se não era possível encontrar boas histórias para se transformar em livros, mas nem isso. Achei pouquíssimas histórias interessantes. Na maioria das vezes, de motoristas a recorrerem de uma multa ou de um professor solicitando a aposentadoria.

Como tem aproveitado esse maior tempo livre para escrever?
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Detesto admitir isso, mas sinto que estou mais enrolado e demorando agora do que quando tinha um outro emprego. Já se passaram dois anos que recebi o Prêmio Saramago e tenho a sensação de que o tempo voou e não fiz nada. Em grande parte, porque lançar um livro hoje é muito diferente do que era em 2015, quando tudo consistia em sonhar com uma boa resenha na Folha de S.Paulo ou no Estadão. Hoje, a internet entrou tanto na vida do escritor, exigindo pequenas tarefas, que roubam um grande tempo de escrita. É uma entrevista para um blog, uma fala no podcast, um videozinho de um minuto para divulgar a ida a um evento ou compartilhar a postagem de alguém que postou a capa do livro. É tudo aparentemente tão simples, que se torna impossível negar um pedido, mas você fica tanto tempo fazendo coisas pequenas que acaba por ficar sem tempo. Isso tem tornado a minha rotina um pouco confusa, uma confusão que tenho demorado a me entender com ela, uma dificuldade de discernir dentro disso tudo o que é um problema de organização ou uma ansiedade natural pós-prêmio.

Do tipo: o que será que o vencedor do Saramago vai escrever agora?
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Não é especificamente isso do “que é que vão esperar do vencedor do Saramago” que me preocupa. Comecei a escrever um novo livro, o primeiro desde 2016, quando iniciei o Dor fantasma. O começo de um livro é sempre muito difícil para mim. Sinto que tenho que ser mais generoso comigo, por ter mudado de país, por ter de viajar muito, por minha vida ter mudado bastante. Apesar dessa consciência, fico ansioso, com uma sensação de atraso, embora não tenha um contrato para entregar um livro dentro de um prazo. Claro que quando encontro o meu editor ele pergunta, “e aí, como anda a escrita?”, mas não há uma pressão de mercado. A cobrança é minha. Eu sinto a necessidade de entregar algo, sinto que ainda tenho tanta coisa para contar.

Sente que mudar para Portugal mudou também a sua escrita ou tem sido o mesmo que escrever no Brasil?
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Tenho me debatido com essa questão. A última vez que comecei a escrever um romance foi em 2016 e, como disse, começar a escrever um livro é sempre muito difícil. Hoje, quando me sento, eu não sei muito bem quem eu sou nem muito bem o que escrevo. Há uma mudança, mas não sei se necessariamente por ter me mudado de país: o novo livro será pela primeira vez escrito em primeira pessoa, que é uma mudança simbólica, para além de um recurso técnico. É uma nova postura de enxergar as coisas, o que torna o livro muito pessoal e ambíguo. Hoje, quando eu penso no Rafael de Rebentar e Dor fantasma, penso num Rafael mais controlador, guiando todas as ações dos personagens. Lidar com essa espécie de tirania, como a do Rômulo em Dor fantasma, foi a grande luta ao reescrever e reescrever o livro. Isso foi tema de terapia, de pensar que escrever o Dor fantasma era quebrar esse Rômulo que havia em mim, que não era um livro para ser lido e por isso estava a ser rejeitado pelas editoras, mas que, mesmo assim, deveria escrever esse romance. Mesmo que não fosse para publicá-lo, mas para depois jogar fora ou queimá-lo.

Para além da voz em primeira pessoa, mudou também o cenário?
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Como os dois anteriores, esse novo livro não tem uma localização definida. Essa falta de uma referência geográfica me gerou uma ilusão de que Rebentar e Dor fantasma seriam livros universais, no sentido de que poderiam se passar em qualquer lugar do Brasil ou do mundo. Esse tempo em Portugal, porém, deu-me uma perspectiva diferente, de perceber o quanto eles são brasileiríssimos, de que quando uma pessoa lê a primeira página de qualquer um deles vai ter certeza de que é um livro que se passa no Brasil. Até mesmo em Dor fantasma, que tem uma cena inicial mais sofisticada, num concerto de piano, e com o estilo bastante rebuscado, o que escapa de um cenário de uma urbanização típica brasileira, você acaba por perceber que é um livro de um autor brasileiro, passado no Brasil. Há lá um tempero brasileiríssimo, que você pode até não enxergar, mas quando experimenta sente o gosto.

Já sente um tempero português nesse novo livro?
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Não acho que ele tenha um novo sotaque. O que ocorre é que eu me questiono mais, como na primeira fase do livro surge um “eu ouço”, quando aqui em Portugal seria “eu oiço”. Surge agora esse estranhamento. É diferente, pois sei que sempre quando escrever uma palavra que se grafa diferente nos dois países, essa questão vai surgir na minha cabeça, mas não vou mudar, nem colocar isso em vez daquilo.

Também não pensa se está escrevendo para o público brasileiro ou português?
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Não, isso não funciona comigo. Em 12 anos de publicação, já percebi que não devo pensar nisso, que você não tem controle nenhum sobre quem será o seu público. Talvez haja outros escritores com talento para acertar no alvo do que o público espera, mas não sou assim, sempre que tentei isso errei o alvo. Muita gente me escreve perguntando o que deve fazer para ganhar um prêmio literário, se deve escrever um livro na pegada do prêmio e eu respondo que ele vai diminuir as chances de ganhar se fizer isso. Se pensasse desse jeito, não teria escrito o Dor fantasma, que para mim não tinha o perfil de um livro que seria o vencedor, assim como o Rebentar parecia não ter o perfil para o Prêmio São Paulo, pois naquela época havia outras preocupações e outros discursos vigentes no Brasil. A partir daí, comecei a ter certeza de que o percurso de um livro é imponderável.

Falando em imponderável, você citou que Dor fantasma foi rejeitado pelas editoras no Brasil e já chegou a dizer que talvez fosse pelo momento que o Brasil vivia à época.
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Sim, sim. O protagonista de Dor fantasma é um tirano, um monstro e em 2019, quando terminei o livro, havia um tirano, um monstro na presidência do Brasil. Em 2020, dei o livro para alguns leitores-beta lerem e alguns deles falavam: “meu, eu não consigo ler, pois no jornal já tem as monstruosidades de Bolsonaro e na hora em que tenho para relaxar, não aguento mais monstruosidades”. Portugal vivia um cenário diferente na época e talvez isso tenha ajudado no percurso do livro no prêmio. O curioso é que ele ganha o Saramago e volta ao Brasil em 2023, num outro timing, e tem uma nova vida, com as pessoas a entrarem na esfera de pensamento de que, agora que o monstro se afastou, talvez seja interessante e mais seguro entender através de uma ficção o que está por trás de uma personalidade assim. Isso pode determinar o caminho do livro, uma certa predisposição dos leitores provocada por um encaixe de um determinado tempo.

Busca esse encaixe de um determinado tempo quando escreve?
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Não chega a ser um plano, dizer que agora preciso falar sobre isso e aqui. Entra mais na ordem das minhas inquietações, do que me angustia e me leva a questionar. Por exemplo, essa nova vitória de Trump, depois de tudo o que aconteceu nos EUA, gera uma inquietação, mas que não se manifesta numa forma de uma vontade de falar sobre Trump ou sobre o governo Trump. Não vejo o mundo com uma lente macro, mas micro. Fico a pensar em cada uma dessas pessoas, o que levou cada uma delas a tomar essa escolha. A decisão de falar sobre uma situação ou pessoa específica restringe o livro a um ciclo, no caso citado, a um mandato de Trump, e, como demoro muito a escrever, talvez quando terminasse o livro ele já não seria presidente. Procuro falar a partir de um outro lugar, como fez Kafka, bastante criticado pelos seus pares engajados politicamente da época, por escrever sobre um homem que virou uma barata, quando havia tanto a ser dito sobre os grandes acontecimentos do mundo. Mas Kafka não ficou na superfície, desceu à epiderme do caráter humano e fez uma obra que de tão profunda é eterna, enquanto os seus críticos foram esquecidos.

Preocupa-se em não ser esquecido no futuro?
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O que me angustia sobre o futuro é conseguir continuar a ser esse cara que escreve, que ainda sonha em escrever um livro, em ter uma ideia de uma história que um dia será publicada e estará numa prateleira de uma livraria ou de uma biblioteca como essa. É tentar preservar uma certa ingenuidade do sonho de ser escritor e lembrar que é isso o que importa, quando tantas vezes somos atravessados por tantas outras coisas, em ser o vencedor de um prêmio e de que é preciso publicar. Queria muito conseguir isso, manter vivo o garoto que gosta de contar histórias, meio tímido, meio calado, mas com um monte de histórias na cabeça ainda por contar. No futuro, espero estar ainda mais ingênuo em tudo o que envolve colocar um livro no mundo.

Portugal é um lugar para isso?
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Claro que viver num outro lugar traz algumas questões de ordem prática que você tem de enfrentar, mas sinto que Portugal tem mais a ver com a minha personalidade do que o Brasil. Eu acredito que as cidades têm uma certa atmosfera e me sinto confortável com a atmosfera de Lisboa. Eu sou um péssimo embaixador da cultura brasileira, não gosto de futebol nem de agitação ou de barulho. Além do mais, Portugal parece ser um país mais estimulante para quem quer escrever, há um circuito de eventos literários bastante ativo e, apesar de os portugueses reclamarem muito, os leitores daqui continuam a ler e a valorizar a literatura. Portugal também vive um momento muito especial na produção literária, com muita gente interessante escrevendo muita coisa boa ao mesmo tempo, o que certamente tem a ver com o Nobel para Saramago, que serviu como uma espécie de farol para a literatura escrita em língua portuguesa. A atual safra de escritores portugueses mudou o meu jeito de escrever, muitos deles escritores que também venceram o Prêmio Saramago e faziam parte do júri e que, acredito, reconheceram a escrita deles no meu texto, que naquele momento eu estava devolvendo para eles.