Álvaro Filho enfrenta o mau humor português com crítica social em seu novo policial noir

Escritor pernambucano radicado em Lisboa lança, no Recife, o romance "O Mau Selvagem", que expõe o preconceito e a má vontade contra o imigrante brasileiro

O jornalista e escritor pernambucano Álvaro Filho sentiu e sente na pele o que é ser um imigrante português que mora e trabalha em Portugal. Essa vivência o municiou de informações e pistas para escrever o romance noir O Mau Selvagem, publicado pela Uratau. Álvaro trocou por uns dias Lisboa pelo Recife, para visitas de fim de ano e aproveita a oportunidade para lançar o livro nesta terça-feira, dia 17, na Livraria Jardim, às 18h. Antes de autografar os exemplares, ele conversa com o público sobre a experiência de viver em Portugal, o preconceito e o mau humor dos portugueses, e a paixão pela literatura policial, tema de seu doutoramento na Universidade Nova de Lisboa. Esses são alguns dos temas da entrevista que concedeu ao site da revista Pernambuco.

O Mau Selvagem é uma resposta-vingança em forma de romance, ao que você – e outros brasileiros – sofreram e sofrem em Portugal por serem brasileiros de uma nova onda migratória?
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Não considero uma vingança, mas uma crítica social. Uma forma de posicionamento perante uma situação insustentável que começou com um despreparo institucional e, recentemente, com a guinada do governo português para uma “extrema-direita gourmet”, assumiu ares de má vontade e perseguição, numa lógica de tornar o imigrante - não só o brasileiro, mas todos - irregular ou “ilegal”, como preferem os da ultradireira, para justificar o discurso da perseguição e deportação. Mas essa lógica perversa funciona melhor com um certo tipo de imigrante, os do sul da Ásia, particularmente, e de outros países que não dominam o português, mas não muito com os brasileiros, principalmente, os da última onda migratória pós o golpe de Dilma, um contingente mais esclarecido, articulado e com capacidade de se defender. A esses brasileiros chamo de maus selvagens, pois saíram do espectro de fragilidade para o de contestação e, aí, cada um contesta da sua forma. A minha forma de ser um Mau Selvagem, foi escrevendo um livro.

O preconceito contra os brasileiros são mais visíveis ou fortes nas classes sociais de menor poder aquisitivo ou está mais generalizado, uma vez que essa nova onda levou a Portugal brasileiros de melhor nível de formação e econômico?
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O preconceito é generalizado e por diversas razões, por um certo estranhamento do que se percebe como a classe mais popular, geralmente mais ruidosa ou, por exemplo, como se vê entre os brasileiros evangélicos, mais estridentes, enquanto, entre uma certa elite intelectual e financeira, o que incomoda é a percepção de uma perda de poder, seja na disputa pelo mercado de trabalho, seja na abordagem mais agressiva no ramo comercial e empresarial. Nos dois casos, a presença brasileira não passa despercebida. A diferença é na resposta, pois parte desse contingente mais popular geralmente sofreu também um certo estigma dos brasileiros no próprio Brasil e, digamos, chega a Portugal habituado a ser olhado de forma enviesada e, numa lógica cínica, é melhor ser visto assim e ganhar em euro. A resposta no outro lado é diversa, pois é a de quem não está habituado a ser visto sob a ótica de um observador “superior” e ocupar esse lugar nem sempre será cômodo ou pacífico.

O livro expõe uma série de situações de conflito, de xenofobia, de racismo, a partir de um narrador que é brasileiro. Até que ponto os portugueses se incomodam com essas questões com relação aos brasucas?
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Os portugueses não se acham xenófobos nem racistas. Tanto que não se questiona a raça de alguém no questionário do senso ou quando se entra numa instituição de ensino, como costuma acontecer no Brasil. É como se a questão de raça não fosse um problema, o que é uma loucura se pensarmos que há cerca de 50 anos havia uma guerra colonial - é bom frisar, “colonial!” - entre Portugal e suas então colônias africanas. Uma guerra anacrônica entre brancos europeus e negros africanos e que deixou filhos órfãos dos dois lados, filhos que estão ainda vivos. As feridas não saram em tão pouco tempo. Com a questão da xenofobia é a mesma coisa, nenhum português vai livremente dizer que tem esse ou aquele comportamento com brasileiros, mas só o fato de se negar publicamente, em todas as esferas da sociedade, inclusive à acadêmica, que nós falamos português, e sim “brasileiro”, é um sinal claro de que há um distanciamento natural que começa justamente no ponto que nos une: a mesma língua.

O tema da política serve de pano de fundo em O Mau Selvagem para que alguns personagens troquem o Brasil por Portugal, num período em que a extrema direita esteve no poder. Diante do dinamismo da política, essa questão não pode deixar o romance datado?
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Não me preocupo com isso. O livro tem o seu caráter documental. Essa entrevista também vai ficar datada em algum ponto e isso não é um problema, pois é natural que recorramos a textos jornalísticos, acadêmicos, históricos e a livros de ficção para perceber como o mundo era mundo em tal época. Se O Mau Selvagem for lido um dia como os desenhos de uma pintura rupestre, ótimo para ele. Mas, da forma que as dinâmicas da política estão a ocorrer, infelizmente é bem mais provável que, assim como nos Estados Unidos, o cenário volte a se repetir em breve.

A situação política nos dois países mudaram. Em giros opostos, uma vez que a direita está no comando de Portugal e no Brasil houve a volta de Lula. Mudou alguma coisa em Portugal?
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Portugal está de mau humor. Já era um país melancólico por natureza, saudoso do seu passado grandioso, e agora adicionou a essa tristeza o tempero do rancor e ódio característico das extremas-direitas. Em ordem de não deixar a extrema-direita assumir o governo, a direita outrora democrática sequestrou-lhe as causas, de forma que a extrema-direita já governa sem governar. O problema é que o carro-chefe da extrema-direita na Europa é a imigração, o excesso de imigrantes, mas em Portugal esse excesso não existe. Portugal é um país de migrantes, há mais portugueses fora do país do que dentro, dois terços das mulheres em idade fértil saem do país, os melhores profissionais formados pelas boas universidades portuguesas, idem. Só fica no país quem não tem coragem ou competência para partir. Neste contexto, combater a imigração é um tiro no pé. Há seis meses, o governo sinalizou fechar as portas à “imigração descontrolada” e agora corre atrás para regularizar operários para a construção civil pois o país parou, mesmo com os bilhões injetados pela União Europeia para obras de infraestrutura. O próximo setor será o da educação, pois o português faz o mestrado e o doutorado fora. Mestrado e doutorado em Portugal é feito por estrangeiros, nomeadamente brasileiros, hoje com dificuldades em ter acesso ao visto e ao trabalho para ajudar a custear o curso e o custo de vida. Aos poucos, as medidas vão caindo, mas o mau humor continua.

O Mau Selvagem tem muitos clichês, tanto na estrutura do livro quanto na linguagem, na descrição de cenas e nos nomes e perfis de personagens. Você quis fazer uma paródia, um simulacro, do romance noir clássico?
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O policial noir é o meu objeto de estudo no doutorado, especificamente, como ele pode funcionar como uma literatura de crítica social. A escolha do gênero, o uso de suas lógicas narrativas e o funcionamento dos seus arquétipos, são uma forma de usar a armadura do estilo para tecer uma crítica social do atual cenário da sociedade portuguesa em relação à imigração brasileira.

Qual o lugar da literatura policial hoje? Ela já tem o respeito que merece?
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A literatura policial tem o respeito que merece onde ela pôde exercer esse papel de crítica social, ou seja, nos países com longa tradição democrática. A literatura policial, nomeadamente o noir, lida com três pilares básicos, a violência, o poder e o dinheiro, normalmente envolvendo políticos, policiais e empresários corruptos, justamente quem se beneficia e sustenta as ditaduras. Natural, portanto, que durante os hiatos democráticos, era difícil ou impossível produzir literatura policial com tom de crítica. Foi assim no Brasil, por exemplo. Quem é a nossa Agatha Christie? Temos Clarice Lispector, porque não teríamos uma Agatha Christie, o que seria bem mais simples. Mas também quem é a Agatha Christie da Itália ou da Alemanha? Não há, pois quando esse gênero floresceu, no início do século vinte, Brasil, Alemanha, Itália, Espanha, Argentina, Portugal e por aí vai, viviam em ditaduras fascistas ou nazistas. Só com a retomada democrática esses países começaram a desenvolver sua literatura policial com viés crítico, como Rubem Fonseca, cujo grande livro é Agosto, justamente quando retorna ao tempo de Vargas para fazer um policial sobre a Era Vargas, o que à época não era possível, não por falta de talento, mas por falta de meios, de incentivo e de interesse. Mas onde ela seguiu a ser produzida, na Inglaterra, nos Estados Unidos e na França, nunca teve uma má reputação.

A livraria é o ponto de partida e convergência da história do Mau Selvagem. Um espaço de convivência importante, mas não livre de atritos. Como está o mercado para as livrarias em Portugal. No Brasil, o número não somente é menor, como se compra cada vez mais pela internet. Mesmo assim, lê-se cada vez menos no país. Qual a realidade em Portugal?
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Portugal está abaixo dos parâmetros europeus de leitura, mas se lê infinitamente mais do que no Brasil. Em Lisboa, é mais fácil ver uma livraria abrir do que uma fechar, principalmente no mercado de livros de segunda mão. É um país do tamanho de Pernambuco, que tem quatro dezenas de festivais anuais, ou seja, quase toda semana se está a falar de literatura em algum canto do país. As bibliotecas públicas têm atividades, não só literárias, mas funcionam como um centro de convivência da sociedade, reunindo os moradores da região. O escritor ainda é uma referência, alguém que é consultado para opinar sobre o mundo, o estado das coisas, e isso é comovente para quem escreve. Mas esse cenário não é uma política pública pensada para isso, pelo contrário, o prêmio Oceanos, por exemplo, o mais prestigiado em língua portuguesa, praticamente desativou sua operação em Portugal por falta de apoio do Estado, sobrevivendo quase que exclusivamente de patrocínio brasileiro. Esse movimento, inclusive, no que diz respeito aos aparelhos públicos da área de literatura, tem mais a ver com o que resta de um certo espírito europeu de reconhecimento do papel da literatura como motor de transformação da realidade.

O escritor brasileiro que mora em Portugal tem o mesmo reconhecimento dos que são “importados” do Brasil. Ele tem acesso às editoras portuguesas?
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Isso ainda é um problema. Por questão de lógica de mercado, as editoras portuguesas costumam publicar os autores best-sellers no Brasil, o que parece natural. Só que essa cultura gerou um problema, pois historicamente acostumou os leitores portugueses a lerem os escritores brasileiros em busca de notícias do Brasil, das mazelas brasileiras, da violência nos centros urbanos, nas favelas, no Brasil rural, na Amazônia, pois esses são os temas abordados pelos best-sellers brasileiros. Os autores brasileiros que cá vivem, como é o meu caso, têm dificuldade em furar essa bolha, pois não é esperado pelos leitores e ainda pelas editoras locais que um brasileiro venha, vejam só a ousadia, falar de um problema da sociedade portuguesa, mesmo que esse brasileiro vote e contribua fiscal e financeiramente nesse país. Há, sim, autores brasileiros que vivem e são publicados aqui, mas todos eles continuam a mandar más notícias do Brasil. Para os que desejam falar dos problemas portugueses, as portas seguem fechadas.